King and Lionheart escrita por senhoritavulpix, Lichiaw, Sitriga


Capítulo 7
Preparações


Notas iniciais do capítulo

Olá, amigo leitor! Ansioso para descobrir o que Elesis, Arme e Ronan irão fazer em relação ao lobo demônio agora que podem vê-lo, digamos, por uma outra perspectiva?
Vamos direto ao assunto: aqui está o novo capítulo, Preparações. Boa leitura!



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Elesis acordou com a cabeça pulsando. Levou uma mão à testa e afastou as mechas ruivas que lhe caiam sobre a face molhada de suor, suspirando em seguida. Outro pesadelo... desta vez, nada tivera a ver com seu pai, e sim com o lobo monstruoso que haviam enfrentado na Floresta Élfica — e que também era seu amigo, Ryan. Ela não fazia ideia de como o elfo pacífico e amável se tornara a criatura demoníaca que viram. Definitivamente, as coisas mudaram muito nos últimos anos, e ela não sentia-se pronta para encarar a nova realidade.

— Também não consegue dormir...?

— Como diabos você entrou aqui?

Ela não se virou, mas imaginava a figura de Ronan observando-a gravemente, de braços cruzados, sentado em uma das poltronas confortáveis e felpudas do quarto ricamente mobiliado.

— Pedi à uma criada que me avisasse se ouvisse algo fora do comum. Acabei de chegar... e caso você esteja preocupada, eu trouxe-a comigo.

A Justiceira resolveu se sentar, e só então virou-se para o amigo. Ele estava bem onde imaginara, mas um pouco menos sério. Era engraçado, na verdade — tinha olheiras de panda sob os olhos, com ares absolutos de sono mal dormido. Ao seu lado, de pé e com modos retraídos, a tal serviçal que ele citara.

— E por que eu estaria preocupada?

— Ahn... por nada. — ele corou levemente.

Entreolharam-se, relembrando dos acontecimentos anteriores. Um silêncio constrangedor se abateu no quarto. Tudo o que acontecera desde que saíram de Canaban foi uma sucessão de fatos estranhos e desencontrados. Uma briga por motivos tolos, o cavaleiro traindo a confiança da espadachim, o ataque inesperado na floresta que deixara ambos humilhados diante da facilidade com que se feriram. E, depois, ao chegarem em Serdin, o reino de luz e harmonia que outrora conheceram agora estava obscuro e decadente, e se tornara um lugar onde a população já não era a responsabilidade da rainha; ela, por sua vez, deixara seus subordinados às traças enquanto executava planos grandiosos e utópicos envolvendo acordos com outras nações.

O banquete que a rainha Enna ofereceu ao rei Aron havia sido digno de nota; suntuoso, mas não extremamente extravagante, à fim de não ofender os anões com demonstrações desnecessárias de superioridade. Havia hidromel e vinho em abundância, ao estilo dos povos ocidentais, e a carne fresca de caça — em especial de cervo — pingava de gordura e cheirava a condimentos e especiarias. Diversas frutas maduras — algumas de época, outras criadas em estufas especiais — , junto com nozes e castanhas enfeitavam o restante da mesa.

Anões são um povo barulhento por natureza. O jantar começou pacífico, como toda reunião oficial, mas bastou algumas canecas de um bom hidromel para a algazarra e a falácia se intensificarem. Riam e gritavam, batiam os punhos na mesa e comiam pedaços maiores do que podiam, encharcando as barbas densas e selvagens de óleo espesso e pedaços de carne sangrenta. Um convidado, em especial, chamava a atenção por ter todo um osso de ave brotando de uma ponta da barba. A suprema conselheira real tentava manter uma expressão agradável e cordial, mas algo mais forte que a razão lhe movia a face hora ou outra em caretas de nojo e desaprovação, como se observasse uma horda de animais de hábitos especialmente degradantes.

A rainha Enna, no entanto, parecia não notar o comportamento “reprovável” de seus convidados. No meio da festa, quando um guerreiro rosado e anormalmente bêbado subiu à mesa para demonstrar a excepcional mira com as facas, jogando-as em um companheiro postado na parede com um melão na cabeça, Enna ria e batia palmas como uma criança prestes a ver um show de mágica pela primeira vez — ainda que ela fosse a soberana de um reino especializado em magia.

Apesar de toda a euforia e alegria, o Erudon e a Sieghart permaneceram absortos nos próprios pensamentos ao longo de toda refeição. A revelação de Arme sobre os acontecimentos na Floresta Élfica havia tomado suas atenções como um tornado, destruindo qualquer possibilidade de distração. Era uma questão séria e triste demais. Teriam que lutar contra o próprio amigo enlouquecido para garantir a segurança de centenas de outras pessoas, e não tinham garantia alguma de que não haveria perdas maiores — como a eventual morte do antigo aliado.

Mal tocaram na comida, que lhes proporcionaria força e ânimo após viagem tão longa e cansativa; haviam perdido a fome o ânimo. Foram para os quartos tão logo quanto lhes foi permitido. Ficaram alojados um ao lado do outro, mas não trocaram uma palavra sequer até então.

— Não... não consegui dormir. — retrucou emburrada ao passar a mão no rosto.

— Eu também não.

Foi uma constatação meio cretina, pois era bem visível que ele estava exausto. A Gladiadora abriu a boca para alguma grosseria, mas deteve-se em tempo. Por um instante parou para pensar em por que insistia em ser tão rude sem motivo, às vezes. Ou então por quais motivos ele — o homem de cabelos tão azuis e profundos quanto o oceano — era tão inflexivelmente fleumático e pomposo, mesmo ante todos os impropérios dela. Elesis tratava-o como um cão, e como um cachorrinho repreendido Ronan se portava. O grande guerreiro sempre mantinha aquele par de olhos azulados e expressivos, como quem diz “perdão” mesmo sem ter feito nada de errado. Isso irritava-a deveras, mas ao mesmo tempo achava alguma graça naquela espécie de devoção.

A mulher de cabelos escarlates pigarreou e fitou insistentemente a servente, que, embaraçada, sugeriu retirar-se do quarto. O cavaleiro — não percebendo o jogo sutil de olhares — ficou com ar de interrogação. No entanto, concordou que seria uma boa ideia deixá-los à sós; e assim foi feito.

— Como... como diabos isso aconteceu? Digo... como nós deixamos que acontecesse? Por que... — as palavras pareciam dançar em seus lábios, escorregadias, e desorientavam a cavaleira. — O... o Ryan! Por Lisnar! Ele é... era... tão nobre, calmo e amável, e... era o segundo diplomata da Grand Chase, só perdia pra você…

— Os tempos mudaram, Elesis. — ele disse, lugubremente. — Mesmo para nós, “A Elite”. Não somos mais os de antigamente: Veja a amargura da Arme, ou o nosso despreparo para as batalhas... Não me surpreenderia que algo maligno pairasse sobre os outros, também. — ele desviou o rosto e se retesou, como se todos os anos de aventuras pesassem em suas costas. — Às vezes, eu... eu penso que Ernas não seja um lugar tão bom assim, afinal. Eu lembro do discurso de Týr antes de partir... e até mesmo o que Cazeaje falou quando a derrotamos.

— Cazeaje?! — enfureceu-se imediatamente com a lembrança evocada — Quer argumentar comigo usando algo que ela falou?! Você, que já foi possuído por ela, deveria saber melhor que qualquer um que nada de bom viria daquele... demônio!

— ...Perdão. — amaldiçoou a sua falta de tato para certos assuntos.

Ela apenas o encarou com cheias de irritação, mas não por muito tempo. Havia coisas mais importantes a discutir.

— Você acha que existe a possibilidade de trazê-lo de volta? Como o Ryan que conhecemos, quero dizer.

— Sinceramente, não sei dizer. Casos de posseção são difíceis de resolver em humanos, quanto mais em um elfo... Mas eu juro, pela minha honra, que tentaremos enquanto for possível.

Elesis sentiu-se satisfeita com a chama do olhar dele ao dizer isso. Aquele era o Ronan que ela melhor conhecia, o que faria tudo o possível em seu alcance para proteger outra pessoa. Seu título de Defensor sempre fizera muito sentido.



–-



O dia amanheceu pálido e cheio de nuvens escuras, anunciando chuva. O ar estava frio e úmido quando Elesis desceu para os jardins do castelo, desejando imensamente que tudo o que ocorrera até ali fosse apenas mais um de seus pesadelos, assim poderia acordar e voltar a dormir em uma cama macia e quente. Aquilo, na verdade, era uma grande injustiça; toda vez que tinha um lugar decente e aconchegante para deitar a cabeça, ele vinha acompanhado de notícias ruins com as quais teria que lidar — e o pior, resolver.

A área verde a qual a dama se dirigiu apresentava ser muitíssimo bem cuidada, e esbanjava beleza e diversidade, assim como todo o paço. Os melhores jardineiros de Serdin trabalhavam ali, e nem mesmo magia era capaz de superá-los: com muita maestria, canteiros de begônias rosas circundavam lírios e camélias; roseiras brancas se entrelaçavam às grades que separavam as alas do castelo; uma fileira de acácias amarelas formava um túnel na passagem que levava ao quartel dos Magos Violetas, e mesmo as moitas ornamentais eram cortadas em ângulos diferentes e interessantes. Plantas tropicais conviviam em harmonia com outras acostumadas à climas mais temperados, fazendo com que houvesse um enorme mosaico de organismos que, embora não coexistissem em condições normais, ali faziam um belo e agradável ambiente.

Ela caminhou para um banco, que ficava abaixo de um teixo coberto de hera e próximo a um frondoso ipê, cujos botões amarelados se abriam. Sentou-se para contemplar a natureza a sua volta e refletir sobre a vida. Arrancou um amor-perfeito que crescia solitário e ficou analisando-o durante algum tempo. Naquele jardim bem cuidado, as flores supostamente cresceriam em canteiros, porém aquela ali estava afastada das demais. Era uma pária, uma forasteira, que enraizara-se no lugar errado e mesmo assim florescera, apesar das adversidades. Quase sem perceber, começou a brincar de despedaçar as pétalas, que eram poucas, imitando algo daquele jogo infantil de “bem-me-quer, mal-me-quer”.

— Francamente, você só fica feliz quando está destruindo alguma coisa?

Elesis apenas se deu ao trabalho de levantar os olhos para encarar Arme e sua atmosfera ácida. A Maga, como boa integrante da realeza, já se encontrava completamente vestida para festa logo pela manhã: seu vestido de cetim violeta e branco tinha camadas e adornos dourados, que até mesmo uma leiga no assunto podia deduzir se tratar de fios de ouro.

— Bom dia para você também. — ela retorquiu mecanicamente, enquanto a feiticeira puxava o vestido e sentava-se ao seu lado. — Por que se deu ao trabalho de sair de seus reais aposentos para vir falar com uma cavaleira burra como eu?

— Acredite, não foi uma escolha fácil. Mas não é por você, de qualquer modo. — e estendeu a mão para apanhar os restos esfrangalhados da flor.

— Se gosta tanto dela, por que não faz um daqueles truquezinhos para fazê-la voltar ao que era?

— Você não entende, não é mesmo? Eu até poderia fazer isso, mas há coisas que não convém o uso de feitiçaria. — disse, ignorando o insulto da outra mulher, enquanto passava o mimo colorido e despedaçado por entre os dedos finos e ágeis. — Não se pode consertar o mundo com magia; não seria certo. As coisas às vezes tem que seguir o fluxo natural.

— Isso se aplica ao Ryan, também?

A Alquimista franziu as sobrancelhas até elas quase se tocarem e a boca repuxou para formar um arco para baixo, deixando seu semblante duro e sofrido. Então ela se lembrou que forçar tanto assim a pele poderia lhe dar novas rugas, e tratou de se desfazer da expressão mais do que depressa.

— Espero que não. — fechou as pálpebras por um segundo, como se aquela pergunta tivesse penetrado em algum ponto sensível — Vamos. Temos que achar o Ronan para que eu possa colocá-los à par da missão.

Levantaram-se e andaram por entre salgueiros e sabugueiros, cujos galhos jovens davam ótimas varinhas mágicas, e também entre azevinhos viçosos, cheio de bagas vermelhas que serviam como venenos poderosos — ou antídotos, dependendo da dose ministrada.

Um silêncio incômodo reinava, quebrado eventualmente pelo estalar das folhas sendo pisadas, no chão. Foram até o início do corredor de acácias — pois o Arcano havia manifestado o desejo de visitar os Magos Violetas — e encontraram-no encostado à uma macieira, examinando com atenção a Tirfing e o Coração de Luz na já desgastada luva de couro. Alguns esquilos brincavam ao redor, o que dava um ar um tanto engraçado para a cena séria.

Arme chamou-o, e ela os conduziu por entre caminhos do jardim, passando por um caminho de primaveras e petúnias e em seguida por carvalhos. Andaram muito até chegarem à uma elevação isolada das demais, onde uma velha árvore repousava. Tinha tronco e galhos retorcidos, e raízes tão grandes e grossas quanto um cavalo; estava cobertas de hera e, vez ou outra, algum cogumelo de cores fortes despontava, mostrando sua encantadora e mortal beleza. A folhagem era clara e comprida, cobrindo o chão e as diversas pedras do terreno. A maga contornou algumas raízes e parou onde uma em particular se extendia por uma pedra grande e partida ao meio. Ela desenhou no ar um círculo e o separou, murmurando algo que Elesis arriscava dizer que era élfico, e a fenda se alargou mais e mais, até se transformar em uma abertura em formato de triângulo, grande o suficiente para uma pessoa de porte mediano passar abaixada sem maiores problemas.

Sem dizer uma palavra, Arme passou pelo portal, sumindo na escuridão. Os dois guerreiros se entreolharam, e a ruiva tratou de segui-la primeiro, como era de seu feitio. O Draconiano foi logo depois.

Foram parar no que parecia o escritório de alguém muito mais velho e sábio do que a maga violeta: livros de todas as cores, materiais e tamanhos se encontravam em uma estante de madeira escura que tomava toda uma parede. Havia uma lareira de console de mármore branquíssimo, onde um fogo dourado ardia com ares mágicos, e ao seu lado um pequeno armário cheio de rolos de pergaminho, tinteiros e penas, e o que mais fosse preciso para se escrever relatórios e cartas. Na parede à frente da pequena biblioteca, uma escrivaninha da mesma madeira flutuavam sobre o chão, assim como as duas cadeiras dirigidas a convidados.

— Como ontem à noite vocês ficaram chocados demais para reagir, deixei para explicar os detalhes para hoje. Espero que já estejam melhor e acompanhem o que vou falar, e não me interrompam. Dúvidas serão respondidas no final.

“Aqui era onde vovô passava a maior parte do tempo livre, estudando e refletindo na complexidade das coisas. Quando morreu, eu herdei o seu antigo posto e fiquei com esse lugar; somente eu e a Enna conhecemos o feitiço de abertura. Não há em Serdin quem saiba da existência dessa câmera, e expressamente ninguém tem permissão para vir aos arredores da Árvore Velha, tanto que toda área verde em um raio de dezenas de metros é cultivada por mim. Aqui embaixo poderemos conversar sem que sejamos ouvidos ou observados, devido as poderosas barreiras impostas. Aliás, é aqui, Ronan, — e lançou um riso zombeteiro — que nós dois vamos passar a maior parte do tempo nos próximos dias.

Eu não tenho a obrigação de explicar nada para vocês, mas como estão com essas caras estúpidas de espanto, sinto que não prestariam muita atenção se eu não deixasse o mínimo claro.”

Elesis fez menção de responder, mas Ronan a conteve com a mão antes que sequer começasse. Arme arqueou uma sobrancelha, maldosa, e depois retomou a expressão de quem chupou um limão particularmente azedo.

— Quando... nós... nos separamos, — e falava num tom arrastado, como se explicar aquilo fosse extremamente maçante e desinteressante — Nossos dois elfos voltaram às florestas, como bem sabem. Suponho que a Lire tenha mandado cartas para vocês contando sobre isso. Algum tempo depois dos dois retornarem para os domínios da Floresta, Lire voltou à Eyruell, e daí partiu para o mundo, deixando nosso druida sozinho.

“Creio que se lembrem de como estavam as coisas, não? Os tempos de guerra trazem a tona o que há de pior nos homens, e ele viu muita coisa ruim naquele lugar. — seus olhos inexpressivos tinham um ar funesto, e a voz embargada dava um toque maior de escuridão — Ele ficou mortificado com a situação de Vermécia; na época, nós ainda não havíamos tido a real noção da destruição que as Tribos Demoníacas aliadas à Bardinard fizeram quando entraram em nosso continente pelos portais dimensionais redirecionados pra cá. Lembro-me das vezes em que o nosso Xamã veio até aqui... Questionava os humanos e sua maneira de resolver as coisas, destruindo tudo ao redor. Me contava dos inúmeros corpos de elfos que encontrava no que restara dos bosques, dos ladrões humanos que surgiam para saquear os mortos, das profanações, da destruição que causavam — ainda mais — nas árvores e mudas, aniquilando as chances de regeneração e prosperidade... Eu lembro de uma frase em especial que ele disse. ‘A floresta chora e sussurra em meus ouvidos, e às vezes grita estrangulada como um animal prestes a morrer. Eu preciso fazer alguma coisa. Qualquer coisa.’ Foi a ultima vez que o vi em Serdin.

Não sei exatamente o que aconteceu com ele, desde então. Quando começamos a receber notícias de um lobo demoníaco assustando os humanos que moram entre o fim do Vale do Juramento e a Floresta Élfica, admito que de início não demos muito atenção. Por um momento a dúvida de que poderia ser ele passou pelo minha cabeça, mas continuei com os afazeres, já que as aparições não eram efetivamente uma ameaça; talvez não fosse ele, talvez fosse só um animal encurralado e assustado. Porém, os anos passaram, e os ataques tornaram-se mais constantes e violentos, até as primeiras mortes e chacinas serem registradas. Eu... — um nó formou-se em sua garganta, mas lutou para que os dois não percebessem — eu acredito que, conforme o tempo passava, Ryan ficava cada vez mais em sua forma lupina, até que, de fato, um dia tornou-se um lobo e esqueceu-se de quem era. A ponto de atacar os próprios amigos, e tentar matá-los.”

Os heróis engoliram em seco a torrente de palavras. Como puderam deixar que uma coisa dessas acontecesse, bem debaixo de seus narizes? Os olhos de ambos umideceram ligeiramente; não haviam renunciado, mesmo sem querer, só a amizade de Arme, pelo visto.

— Precisamos consertar esse erro. Eu... Nós... não devíamos tê-lo deixado sozinho. Eu devia ter avisado-os, mas achei que os Magos Violeta seriam capazes de dar conta da situação. Infelizmente, mesmo nossos arquimagos não puderam conter o demônio que Ryan desenvolveu.

— E por que você, que é a Arquimaga mais forte do reino, não tentou nada?

— E quem disse que eu não fiz nada?! — explodiu, de súbito — Acha que eu fiquei aqui, de braços cruzados, esperando que Armenian descesse de Xênia e resolvesse a situação? Acha mesmo que fiquei sendo uma inútil, sem tentar nada? Que eu não queria salvá-lo? Eu não estou mal acostumada e mimada por percenter à Corte como vocês. Eu tentei tudo o que eu podia fazer.

“Pesquisei longamente sobre os rituais druídicos — o que foi difícil, pois eles não usam sistema de escrita — para selar o mal dentro dele e fazê-lo voltar ao que era. Junto com meus extensos conhecimentos, criei uma cerimônia própria e especial. E para ser realizada, precisarei da ajuda de vocês.”

A dupla inclinou-se para a frente, interessada. Aguçaram os ouvidos para não perder o que viria a seguir; o que acabou sendo um pouco decepcionante, em verdade. Violet explicou que apesar de Ronan ser um curandeiro ridículo, era excepcionamente bom nas artes das trevas, e que Elesis seria necessária para ajudar a capturar Ryan. A Gladiadora não contestou; asquieceu e deu o assunto como encerrado. O cavaleiro ficaria com a maga preparando o feitiço, enquanto a espadachim treinaria seus golpes e forma física. Ronan, no entanto, não convenceu-se, mas também não questionou.

A Arquimaga liberou-os para o restante da manhã, frisando que eles deveriam voltar logo, para o início dos treinamentos. Por mais que gostassem do luxo da realeza, estavam um pouco cansados daquela atmosfera pesada. Resolveram passear por entre as ruas feitas de gente simples e trabalho suado, o que não revelou ser uma boa ideia, no final.

Vestiram-se com roupas mais simplórias e capas para esconder as lâminas que sempre carregavam, e saíram para a avenida principal por um portão lateral, para maior discrição possível. A avenida tinha o pavimento de granito branco bem cuidado, e os guardas do reino passavam em vigia hora ou outra, cuidando das casas vistosas que se encontravam defronte ao fosso do castelo. No entanto, não era isso que os heróis queriam ver, e se embrenharam na primeira viela que encontraram. Lá, as coisas mudavam drasticamente: As casas acinzentadas se expremiam em um quebra-cabeça delicado e de aparência instável, que sugeria falta de planejamento e pobreza onde antes deveria haver uma situação melhor acomodada. O pavimento ali já fora branco um dia, mas estava tão encardido que não se distinguir mesmo as divisões entre um ladrilho e outro. E se aquela era uma rua adjascente à avenida, imagine o que não encontrariam se fossem mais fundo nos caminhos da cidade.

— Onde exatamente estamos indo? Você não me disse.

— Procurar uma feira ou loja de quinquilharias úteis. Além de um ferreiro…

Se estivessem em Canaban não teriam problemas em achar tais lugares, mas em Serdin a situação era problemática, especialmente porque não encontravam alma viva que pudesse lhes dar informações — os companheiros viam muita gente espiando desconfiada pelas janelas como se fosse perigoso sair, tirando um gato castanho que andava preguiçosamente pelo meio fio, e mais tantos outros felinos estirados no meio da rua. Depois de andar durante alguns minutos sem resultado algum, ouviram barulho de viola e risos, e concluiram que deviam estar perto de uma taverna. Procurando nas fachadas não era óbvio onde ela se encontrava à primeira vista, mas numa segunda olhada percebia-se que despontava uma portinhola de porão aberta no fim de uma estreita escadaria.

— Elesis, você quer mesmo... tudo bem, não precisa me olhar desse jeito. — suspirou, percebendo que não iria vencer qualquer eventual discussão.

— Finalmente diversão de verdade, e não aquela firula toda que vemos no castelo. Vamos. Vai ser divertido encher a cara depois de tanto tempo. — sorriu, mostrando os dentes brilhantes como uma fera e os olhos cheios de excitação. Tirou um pequeno frasco de dentro da roupa e o bebeu, limpando a boca com a manga da capa.

— O quê... é isso?

— Nada como um pouco de rum puro para entrar no clima.

A cavaleira adentrou primeiro no recinto, belicosa que era, e de peito estufado. O arcano veio em seu encalço, mais discretamente, porém todos já olhavam naquela direção. Elesis definitivamente conseguia ser notada quando queria.

A taverna era uma sala inóspita de madeira, cheia de bolor e mofo pelos cantos. Ninguém parecia se importar muito com isso, no entanto — as mesas estavam todas ocupadas por homens suspeitos de aparência malcuidada, ora jogando cartas, ora bebendo e rindo. Um bardo com dentes de ouro cantava as desventuras de um viajante que se deparara com um troll, e as bebidas alcoólicas não parava de sair do balcão para as mãos bêbadas das várias pessoas. Aquele lugar lembrava, de certa forma, as espeluncas por onde costumavam passar em sua jornada com a Grand Chase.

— Uma cerveja. — A moça pediu, sem rodeios. Os olhares ainda convergiam para ela, e Ronan percebeu que não era apenas por sua atitude. Ela era também a única mulher ali, tirando as garçonetes, que já eram muito maltratadas pelo tempo, por sinal. — Que foi? Anda logo!

— Elesis... — o Defensor cochichava, enquanto via os olhares caçadores lançados para a amiga — Acho melhor perguntarmos em outro lugar.

— Ronan, você está especialmente feminino hoje. Ah, obrigada. — Ela mais que depressa virou totalmente na boca o conteúdo da caneca de ferro que acabara de ser entregue. Tinha um gosto amargo... É, ela nunca gostara muito daquela bebida maltada, no fim das contas. Sentiu um leve torpor, por ter ingerido ainda mais álcool em jejum, e as maçãs do rosto formigaram suavemente — Ei, você por acaso sabe onde vendem umas bugigangas por aqui?

O homem atarracado e assimétrico a fitou desconfiado, o que fazia seu olho direito saltar e a respiração ruidosa inflar as narinas. Ele bateu uma mão grande e peluda no balcão, e se esticou alguns centímetros para encará-la melhor.

— Bugigangas de que tipo, madame? — Tinha uma voz arrastada e mansa, que disparava um alarme nos instintos dos guerreiros.

— Como assim, que tipo? Tipo mapas, cantis, velas, peles, facas…

— Ah, perfeitamente. — o sujeitinho esfregou as mãos. — Há um mercado na praça principal amanhã e depois, madame. Agora, se precisar de mercadorias mais... específicas... eu teria prazer em servi-la.

— Não velhote, mas obrigada mesmo assim. — Ela meramente o fitou enquanto terminava outro caneco. No entanto, antes que pudesse baixar o copo, dois homens a cercaram no balcão. — O que vocês querem?

— Olha só, que dama mais arisca. — Um zombou, passando com malícia as mãos calejadas no braço macio da mulher, enquanto ria sinistramente. — O que a mocinha faz aqui tão longe de casa e dos afazeres domésticos?

— E com esses cabelos vermelhos — o outro passou a mão nos fios acobreados. — tão cheirosos?

Ronan puxou o homem para longe antes mesmo que a ruiva pudesse pensar em lhe dar um belo soco entre os córneos, e o jogou com força para o outro canto do salão, chutando-o logo em seguida. Ela girou os olhos e socou violentamente o outro, abaixo das costelas, arrancando dele um gemido de dor que mais parecia um grunhido.

— Está tudo bem? — Erudon perguntou, observando-a pelo canto dos olhos, enquanto olhava hostilmente para os dois infelizes.

— Claro que sim. Não se meta nisso. — Ela percebeu que o sujeito em que batera se levantava, então tratou de acertar-lhe de novo com os punhos e cotovelos para terminar o trabalho. — E quero outra rodada de cerveja, agora.

— Você é bem forte, ruivinha!

Ela virou-se mecanicamente. Aquela palavra lhe lembrava o estúpido de seu tataravô, e lhe revirava o estômago de raiva — estava pronta para atacar quem quer que fosse o bastardo. Encontrou um homenzarrão de cabelos selvagens e olhos ferozes, que tinha um sorriso sincero e mostrava os grandes músculos do braço.

— Será que a mocinha quer tirar um braço de ferro?

Gargalhou. Um desafio era tudo o que queria.

— Só se for agora!

Essa pequena agitação acabou chamando a atenção de todos ali. Não era todo dia no qual uma mulher disputava um braço de ferro, ainda mais com um homem daqueles. Um pequeno círculo se formou ao redor dos dois, deixando Ronan praticamente de fora. Duas cadeiras e uma mesa foram arrastadas até o centro, para que os participantes pudessem medir suas forças. Sentaram-se e olharam um nos olhos do outro da forma mais brutal possível. O parrudo sorria de soslaio, o que deixava Elesis ainda mais empolgada. Encostou o cotovelo no tampo de madeira e fez um sinal para ela com os dedos, incitando-a a fazer o mesmo. A ruiva imitou o gesto, colocando sua outra mão na cintura.

O círculo começou a fechar cada vez mais até aparecer um moderador, sabe-se lá de onde, para validar a partida.

— Muito bem, muito bem! — dizia o homem. — Parece que temos dois adversários bem diferentes hoje, não? Pois então, maricas, não quero saber de trapaças, especialmente vindas de você. — e lançou uma repreensão sobre o brutamontes. — Podem começar!

Com o menor sinal do moderador os dois iniciaram a partida, seguidos de uma explosão de gritos e mensagens de apoio da plateia, e até o bardo parou para assistir. Ronan, contudo, mal podia ver a cena pois era empurrado para lá e para cá por homens embriagados e muito alegres. “Pelas deusas”, ele rogava com a mão no rosto, em desaprovação, “que tudo isso termine bem”. O dono do bar apenas lucrava com tudo aquilo; um evento inesperado de vez em quando era sempre bem-vindo.

Enquanto isso, no olho do furacão, a disputa ficava cada vez mais interessante. Quem teve a chance de testemunhar o ocorrido podia jurar que os dois braços não se moviam, sequer um milímetro, resultado do equilíbrio de forças. Como uma mulher poderia ser tão resistente? Aquilo deveria acabar logo, se não os dois cairiam mortos de exaustão.

Foi então que o adversário utilizou-se da velha tática onde uma onda potente de força acabaria com o inimigo em poucos segundos, mas seria fatal para ele, pois a energia findar-se-ia ali. Comprimiu os músculos do braço de tal forma que suas veias e artérias ficaram visíveis, para espanto geral. Ele deu tudo de si em um ataque para o qual Elesis estava preparada, e ela resistiu bravamente até que ele desse algum sinal de fraqueza. Seu braço vacilou uma ou duas vezes, mas não perderia, de jeito algum, para aquele homem.

— Eu... não vou...! Grr... Argh!! — A espadachim urrou a plenos pulmões: abusando da força e sendo envolvida por uma pálida e quase invisível aura avermelhada (que não passou desapercebida pelo Inquisidor), acabou rachando a mesa em duas partes, e isso sem largar a mão do oponente, que agora estava caído no chão.

Aqueles que estavam presentes mal puderam acreditar no que haviam assistido: primeiro o silêncio foi geral, mas logo em seguida o público estourou em palmas, assobios, gritos e urros, fazendo o caos imperar. O moderador, abrindo caminho pela multidão, foi checar o estado dos dois.

— É... estão todos bem? — Perguntou, enquanto tirava os vários pedaços de madeira sobre eles.

— Mais alguém quer me lembrar de que sou mulher? — Disse ameaçadora, puxando os lábios com desdém.

O clima naquela taverna começou a ficar um pouco menos tenso. Aproveitando a deixa, Ronan reencontrou-se com a brava amiga e sugeriu que eles deveriam sair dali o mais rápido possível. E assim fizeram em meio a diversas mensagens de respeito e até alguns pedidos de casamento. O bardo agora teria uma nova história para contar.

Voltaram ao palácio mais cedo do que esperavam. A Elesis levemente alterada foi imediatamente à sua suíte buscar o sabre para treinar com os poucos cavaleiros de Serdin, dentre eles, um de seus antigos desafetos. “Não será uma disputa nada mal, agora que sou muito mais forte que eles.” Com esse pensamento, foi bater lâminas e medir forças como um animal selvagem. Já Ronan e Arme regressaram ao esconderijo mágico, estudando com afinco e debruçados sobre a mesa iluminada por uma vela, e por ali ficaram até o cair da tarde.

— ...E por fim chegamos aqui: vê? Essas runas aqui terão que ser dispostas desse jeito — desenhava rapidamente o papel com uma pena. — estou somente com uma pequena dúvida; penso em colocar Solewu, o sol, aqui no centro. O que acha?

— Não sei... Acho que podíamos colocá-lo no centro, ali em cima, porque é o símbolo máximo de vitória, afastamento de trevas e força, e não vem acompanhado de sentido inverso.

— apontou para o alto do traçado de tinta — Aqui pode ser colocado dagaz, ou Ehwaz.

— Definitivamente, Ehwaz não! Sentido oposto de “reaparecimento de antigos problemas”?! — a alquimista exclamou, ofendida.

— E significado real de mudança de vida ou novos amores. Qual problema?

— Não. Pode ser Dagaz, ou então, Wunjo. — disse, com ares de sabedoria.

— Wunjo? Pelos céus, se quer colocar ela, pode trocar por kano.

— Kano? E os pontos ruins? E toda sua inconstância?

— Kano só é inconstante sentimentalmente... — ele bufou, injuriado.

— Há de ser a runa Wunjo. Representa novas energias, esperança, harmonia e felicidade; seus pontos negativos serão balanceados. Ela será colocada do lado direito de Solewu, no círculo mágico. Quanto as outras, tenho certeza que estão nos lugares mais acertados. Você é um dos maiores especialistas em Runas que conheço. O que acha?

— É, não está mal. E quanto aos sortilégios élficos?

— Isso veremos amanhã, mas não é nada que você não consiga gravar. Por enquanto, podemos voltar ao paço. Hoje não haverá jantar com Vossa Majestade, pois ela e Aron estarão discutindo assuntos importantes. Já pode ir.

Ronan vacilou, e abriu a boca ligeiramente, mas ficou calado. Não sabia se era o momento certo para perguntar.

— Fale logo. — surpreendeu-o, dando liberdade à uma conversa mais franca e pessoal.

— Desculpe-me, mas não acredito que precise de nós pelos motivos que alegou. Se você mesma desenvolveu o ritual, que está quase completo, tenho certeza que poderia executá-lo com a ajuda de seus magos. Não entendo o que fazemos aqui.

Arme enrugou a tez e passou as mãos nos cabelos violáceos com toques brancos. Emburrada, inclinou-se para trás em sua cadeira, e fitou o teto de pedra da estranha construção sob a terra por alguns minutos.

— É verdade. — desabafou, por fim — Aquela cretina desmiolada aceitou o que eu falei sem pensar muito. Sinceramente, uma atitude meio burra... Mas na verdade é ela de quem eu mais preciso, não é? — suspirou pesadamente, e os olhos tinham um brilho estranho — Eu pretendia contar isso pra você um pouco mais tarde, mas vejo que não vou conseguir enrolá-lo. Ela é parte fundamental da cerimônia. O rito com certeza não funcionaria só com o círculo e os sortilégios que lançaríamos. Precisamos de algo no qual possamos canalizar e acelerar os nossos encatamentos. Elesis será o nosso catalisador... — respirou lentamente, estruturando em sua cabeça as próximas frases com cuidado — ...De todas as pessoas que conheço, ela é a única que tem a personalidade bruta, forte, guerreira, leal e determinada o suficiente para aguentar as consequências do feitiço.

— ...Coração de leão. — sussurrou, em êxtase, relembrando palavras há muito tempo ditas.

— Hm?

— Ela... tem um coração de leão.

— É, acho que sim. Pode chamar desse jeito, se quiser. Parece um título mais propício, mas tanto faz. O que importa é que, se nossa espadachim continuar a mulher forte das Guerras, talvez possamos salvar Ryan. Me diga, é verdade que, mesmo com costelas quebradas e muito ferida, ela levantou para lutar, lá na Floresta?

— Sim. Eu não estaria aqui se não fosse por ela.

— Apesar de ter ficado meio ultrapassada, ela não mudou. — a mulher murmurou, mais para si mesma do que para ser ouvida. — E você, Erudon, ainda que seja um imbecil nas artes brancas, domina as artes negras como poucos. Infelizmente se descuidou bastante nos últimos anos, e a sua neglicência no treinamento deixou-o mais facilmente debilitável. — soltou uma risada escarnecedora — Cuidaremos disso: em poucos dias, ficará tão bom quanto antes. E aviso que doerá bastante.

— Não me importo, farei o que for preciso. Mas, e quanto as consequências do feitiço sobre Elesis, que citou...?

— Ah, isso? Banalidades... Se ela não conseguir ser mais forte que Ryan, e a vontade dele sobrepor a dela, ela sentirá a dor de ossos partindo e da pele queimando quando sua alma for devorada pelo espírito maligno.

— ...Como... você diz uma coisa dessas... nessa calma glacial?! — falou, estupefato de susto e mãos trêmulas.

— E esse é um dos motivos pelos quais preciso de você, Ronan. Para que isso não ocorra. Você é o Defensor e o Inquisidor. Além da sua gema de luz para controlar as trevas da Tirfing, você mesmo tem uma... alma cheia de bondade, coragem, e... justiça. — retorceu os lábios, ligeiramente constrangida em ter que admitir essas qualidades. — Será o nosso equalizador na batalha espiritual entre os dois. — gemeu imperceptivelmente, e passou as mãos esquálidas sob os braços nus, segredando de forma quase inaldível — Eu realmente não queria que as coisas tivessem chegado a esse ponto, assim como não queria ter que metê-los nisso... Mas... mas não confio em mais ninguém, nem mesmo em meus homens. Imagine os resultados que um simples boato sobre um ex–chaser estar atacando e matando pessoas poderia causar? Estou tendo tanto trabalho pra abafar o caso e esconder informações...

— Você acha mesmo que podemos salvá-lo? — Ele repetiu a pergunta que a ele foi feita de madrugada, e que se na hora fora respondida sem hesitação, agora já não tinha mais tanta certeza.

— Francamente? Não sei. Planejei tudo em pormenores, examinei cada falha, cada “porém”. Mas é um ritual novo, fruto de diversos outros, misturados, à fim de potencializar ao máximo os efeitos, porque todos os outros não deram certo... Entretanto, tudo é instável. Ernas já não é mais a mesma, e a magia está agindo estranhamente. Olhe pra mim; há três ou quatro anos eu ainda era vistosa e bonita, mas desde minha última falha... eu... — uma lágrima caiu no rosto marcado de dor — ...eu estou ficando velha e fraca, Erudon. Eu errei miseravelmente.

— “Todos os outros não deram certo”? — O rapaz arqueou uma sobrancelha, e repentinamente seu coração falseou. Como não percebera antes? O envelhecimento excessivamente precoce, de uma hora para outra, poderia ser sinal não do uso indiscriminado e extraordinário de magia, mas sim do emprego de uma forma dela, e que ele verdadeiramente não queria acreditar que Arme pudesse ter feito uso. Inclinou-se, e de forma gentil, segurou as mãos frias da mulher entre as suas próprias, cálidas e robustas, receando a resposta dela — ...Qual foi a sua “última falha”, minha doce Violet?

Ela começou a rir nervosamente, conforme o choro descia abundante pela face e molhavam suas vestes.

— Não lembra o que eu disse? “Tentei de tudo para salvá-lo”. Tudo. Meu erro foi ter sido precipitada... Assim que tive a certeza que o demônio era ele, fui sozinha ao seu encontro e fiz algo que me arrependo amargamente. Sou amaldiçoada agora, por isso tenho que carregar esse estigma, esse corpo. Minha alma está vendida aos demônios. Eu usei Magia Proibida.



–-



Ronan estava displicentemente sentado sobre o balaústre da varanda de sua suíte — ricamente adornado pelas colunas clássicas e coberto por heras —, polindo o Coração de Luz que já reluzia, enquanto repassava mentalmente os acontecimentos das últimas horas. Os cabelos azuis caíam sob a fronte suada, e seus olhos chispavam; não só de raiva, mas de impotência e angústia também. A revelação de Arme causara-lhe uma grande impressão, e ele não sabia o que pensar. Para qualquer leigo no assunto, todos os tipos de feitiços poderiam parecer a mesma coisa, mas a realidade era muito diferente — e sombria.

A magia branca, também conhecida como de defesa ou suporte, é a mais básica e elemental de todas. Consiste em conversar com os espíritos da natureza e convencê-los a cooperar com o iniciado que os invocou. Assim, em harmonia, magos e espíritos agem juntos para sarar feridas, criar barreiras protetoras, mandar mensagens e outras coisas benéficas. A magia negra, ou ofensiva, é usada por magos mais experientes, e funda-se no princípio de utilizar as mesmas forças dos espíritos bondosos para atacar os adversários. Por esta razão, é mais complicada de ser realizada, pois é necessário sempre respeitar a vontade e os limites das entidades e do usuário. Por fim, existe o último tipo de magia, que, como o nome sugere, é expressamente funesta, devido os prejuízos incalculáveis e responsabilidade incontável que trazia consigo. A Magia Proibida, ou em élfico, Umarth Templa, representa a corrupção da alma do utilizador, devido a alteração do equilíbrio natural do universo. Os espectros evocados são malígnos e oriundos das camadas mais perversas do Hades, e devoram a alma do invocador em troca da realização dos seus desejos. Completamente instável, esse tipo de encanto nem sempre funcionava bem, ou mesmo tem êxito. Por ser demasiadamente perigoso, sua utilização foi banida de Ernas após a Primeira Guerra Mágica, e poucos são os detentores do conhecimento necessário para saber usá-lo sem correr muito risco de vida. Entre eles, o já falecido Serre Glentisd, e sua neta, Arme. Todavia, apesar de escapar da morte, nem mesmo ela, com toda a sua experiência foi capaz de sair ilesa das forças do mal. — O preço pela desobediência fora o envelhecimento a olhos vistos, sem poder fazer nada a respeito. Além disso, no momento em que o ritual dera errado, firmara um contrato demoníaco vitalício com as potestades invocadas. Entrara em uma espiral de desespero, tentando procurar solução para o próprio problema e para o amigo elfo, também.

Em tudo isso o Defensor pensava, distraído, ao dar os últimos retoques na pedra preciosa em sua mão. Por mais que entendesse o frenesi da amiga, ainda assim não pôde deixar de ficar encolerizado. Se por ventura ela tivesse falecido nos rituais, iria direto para os últimos andares de Hades. Agora tinha sua alma vendida ao inferno, e eram poucas as esperanças de reconstituição. “Ao menos”, pensou, “ela ainda está viva".

Já estava tarde, e o sol descia por entre as montanhas, a oeste. Em breve seria a última noite de lua minguante; ela era, a essa altura, só um risco leitoso e curvado no céu. No dia seguinte, o astro luminoso noturno desaparecia por completo nos tecidos da escuridão por uma semana.

Desde o começo daquela peculiar viagem, Erudon havia lembrado-se com frequência de Týr. Quantos anos fazia que não o via? Seis, sete? Estava perdendo as contas. O crepúsculo que estava assistindo naquele momento, e que viria acompanhado de uma noite gelada e negra, remeteu-o à última vez que draconiano e dragão se falaram. A memória da despedida martelava em sua têmpora, e todos os detalhes estavam gravados em sua mente, como ferro em brasa marca a pele virgem.



–-



Em silêncio, contemplavam o magnífico pôr do sol sob os telhados de Canaban. Os raios do astro rei esticavam-se no horizonte, tentando tocar pela última vez naquele dia toda a extensão do reino. O céu parecia uma pintura, cujas pinceladas de fortes tons avermelhados eram atenuadas por delicadas nuvens brancas, que passeavam preguiçosamente pelo firmamento. Ambos observavam a paisagem em um misto de fascinação e angústia. Mesmo não tendo proferido uma palavra sequer sobre o assunto, eles sabiam, em seus íntimos, que seria a última vez que fariam isso juntos.

— Eu vou embora. — disse por fim a criatura, quebrando a longa quietude.

— Mas... por que, Týr?

— Porque estou cansado dos humanos, Ronan.

Permaneceram por mais alguns minutos com olhares perdidos na linha que divide céus e terras, até que o enorme guerreiro resolvesse continuar o discurso com sua altiva e profunda voz gutural, que amendrontava até mesmo os espíritos mais destemidos.

— Durante anos e anos eu lutei ao lado da sua raça, Erudon. Não porque eu concordasse com os métodos bárbaros de vocês, mas sim porque eu discordava dos caminhos sombrios que o mundo estava tomando. Temia pela vida de meus irmãos e irmãs, que poderiam morrer com o caos que se espalhava em Ernas. Muitos dos nossos foram mortos ou escravizados pelas forças malignas que reinavam neste lugar, e outros ainda se corromperam e juntaram-se a elas. Decidi aliar-me a vocês para que minhas garras e meu fogo pudessem ser úteis de alguma maneira na luta contra a Rainha das Trevas, e, como descobrimos mais tarde, Bardinard. Mas o mal que havia nos corações deles não é muito diferente do mal que governa o coração da sua raça. Durante anos de lutas eu vi muito sangue derramado sem nenhum significado. Centenas de seres de outras espécies foram exterminados somente para aliviar a fúria dos homens, sem que eles viessem a ser realmente uma ameaça; vocês só ficam contentes quando são os arautos da morte de outras criaturas. E não poupam nem os seus semelhantes. Eu vi e senti o horror da morte de muito mais pessoas do que você já pôde conhecer em vida. E todos os fins de vidas que presenciei foram terríveis e absolutamente vazios e sem significado. Sangue é a marca dos humanos. — o velho dragão fechou os olhos e respirou lentamente. Ao expirar, soltou duas pequenas nuvens de fumaça pelo nariz — A raça humana é a chaga do mundo, Ronan. Ela é o verdadeiro mal que contamina tudo e todos; ela perverte, destrói e estraga tudo o que as deusas fizeram de bom.

Aquelas duras palavras caíram pesadamente sob as costas do rapaz, que nada argumentou. Em resoluto silêncio e respeito, esperava que seu velho amigo terminasse a sábia e amarga mensagem.

— Estão constantemente em guerra; o corpo e o sangue dos inimigos são vosso alimento. Não se contentam com a paz. Intrigas estão por toda a parte, e maquinam o mal durante todo o tempo. Traições e ciladas são coisas comuns entre os de sua laia... Eu sou muitíssimo velho em termos humanos, apesar de ainda jovem para um dragão. Todos meus anos de experiência me permitem dizer que, mesmo após o fim da guerra, a violência e os homicídios não cessarão. A discórdia já está plantada em todos os lugares, mesmo onde deveria haver união. Veja o cenário ao seu redor: em breve, meu amigo, a Guarda Real e os Cavaleiros Vermelhos entrarão em conflito. E, temo dizer, essa altercação pode ter graves consequências em um futuro não tão distante. Endosso a sua decisão em deixar de ser o líder de uma dessas Ordens, que, se não mudarem de conduta, estarão fadadas ao fracasso.

— ...Nem todos são assim com você vê.

— Tem razão, meu pequeno. Apesar de tanto horror, ainda assim no meio do caos conheci pessoas por quem valia a pena lutar. Um pouco antes da guerra entre Serdin e Canaban, quando eu achava que sua raça não tinha mais salvação, eu te conheci. E você, criança, me fez repensar minhas impressões sobre os homens. Movido por um coração puro, valente e justo, fez coisas grandiosas para a honra de nosso reino. Selei um pacto com você há muito tempo atrás pois pude vislumbrar castidade em sua alma, mesmo em um período negro da história... Castidade, apesar de também ter visto um resquício de arrogância e prepotência, não? — a criatura, que olhava de soslaio, emitiu um som entre um grunhido e um ronco, oriundo de sua poderosa garganta. Ria do amigo, que havia ficado levemente ruborizado com o comentário incoveniente — E também há a herdeira dos Sieghart. Ela é um ser extraordinário. Admito que é uma das poucas humanas a quem tenho deferência e admiração, e até mesmo obedeço suas ordens. Seu poder de liderança e seu espírito justo e valente fizeram muito mais por Ernas do que nações inteiras. Com garra, ela mostrou-se mais digna que reis e rainhas. Sinto que vocês dois ainda terão muitos perigos e desventuras para enfrentar, criança. Guarde bem essas palavras, Ronan. Entre os seus, você é um Rei, Erudon. E ela, tem um enorme Coração de Leão.

O cavaleiro fitou profundamente os olhos do amigo. As respiração lenta e ritmada do grande réptil fazia suas escamas rubras subirem e descerem, e brilhavam vivamente com a iluminação do fim de tarde. Pôs a mão sobre o focinho do gigantesco animal, e um nó formou-se na garganta do rapaz. Uma lágrima sutil surgiu.

— Não entendo onde quer chegar, Týr. Por quê?

— Um dia entenderá, pequenino. Por hora, é tempo de partir. Apesar de nosso selo permitir que você me invoque, peço por favor que respeite minha decisão de ir e não me chame. Preciso voltar para o meu povo, para a minha própria raça. Lutei por tempo demais ao lado de vocês, e estou longe de minhas origens há muito mais tempo do que você possa imaginar. Os dragões também não escaparam da ambição humana, e muitos de nós foram dizimados ou perdidos para sempre no abismo da loucura. Fomos contaminados por vocês. É preciso a reconstrução, a renovação. — os olhos verdes encontraram-se com os olhos azuis, pela última vez — Quando for hora de voltar, você será o primeiro a saber. Enquanto isso, cuide bem do seu reino e de seu coração... de leão.

Dito isso, esticou as asas membranosas o máximo que pôde, e seu corpo todo fremia levemente. Olhou para o horizonte, onde o sol lançava seus últimos raios, e para todas as cadeias montanhosas que perdiam-se de vista e iam ainda muito mais além.

— Adeus.

Voou, em direção ao último resquício de luz alaranjada no céu. Seu corpo vermelho parecia ainda mais majestoso sob a tênue iluminação, e o bater de suas fortes asas e seu rugido feroz de despedida foram ouvidos por toda Canaban e arredores.

— Adeus, amigo.

O Arcano ficou observando durante muito tempo seu mais velho e fiel companheiro indo embora. E continuou ali, fitando o horizonte, mesmo depois do crepúsculo ter cedido lugar à noite fria e escura. Uma após outra, lágrimas desciam-lhe pela face.



–-



Sem perceber, as lembranças haviam feito Ronan chorar novamente. Ele enxugou os olhos com as costas da mão e guardou a pedra da luz em seu console. No entanto, sua mente ainda vagava longe dali.

— …Coração de Leão... — murmurou, absorto em pensamentos.

Arme o lembrara desse título àquela tarde, e desde então isso permeava as margens de sua mente como um gatuno, atacando nas horas mais oportunas. Týr havia lhe incumbido de proteger o Coração de Leão; de proteger Elesis. Não que ela precisasse de um guarda costas — ele riu com o pensamento —, mas de alguém ao seu lado. No entanto, não sabia dizer se poderia protegê-la do horror que estava por vir naquele ritual.

A missão era arriscada, e os perigos, incontáveis. Se algo desse errado, não haveria “amanhã” para nenhum dos envolvidos. Mas ele estava determinado em ser o Defensor; a ser o Rei a zelar pelo seu Coração.

Ronan Erudon não poderia saber, enquanto olhava o céu cor de sangue pouco a pouco ser tomado pela escuridão, que sua proteção seria nada mais que nominal dali a alguns dias. Ele seria um simples espectador do destino da amiga e confidente, enquanto ela enfrentaria — sozinha — a fera que um dia fora amigo deles.


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Notas finais do capítulo

Mais uma vez espero que tenham gostado do capítulo (este ficou um pouco maior que os outros, rs). Quais são seus palpites para o próximo, o tão esperado ritual? Depois de tanto treinamento, conseguirão eles salvar o amigo? Respostas serão dadas, não se preocupem!
(Aliás eu amei escrever a cena da taverna, rs)
~LichiaW



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