O Último Pendragon escrita por JojoKaestle


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Um bom filho à casa torna e estou de volta às fanfics (todos choram). Não tenho muita certeza sobre isso, apenas que uma vez que se escreve se torna real e eu não consegui soltar.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/310480/chapter/1


Esperei o golpe até que quase fosse tarde demais. Ergui a espada no último segundo e as lâminas finalmente se encontraram, mergulhadas no barulho metálico. Meu oponente se recuperou e deu um salto para trás, saindo do alcance do meu ataque. Via através da viseira o arrependimento em seu rosto. Deveria ter aceitado o escudo afinal, mas isso excepcionalmente não era minha culpa. Suava dentro da armadura, o sol de verão nos ofuscava sem compaixão alguma. Movimente os pés, lembrei a mim mesma quando o novo ataque veio, movimente os pés, não seja um alvo parado. Pulei para frente e fiz uma finta, tentando acertá-lo num movimento de baixo para cima. A espada desceu tão rápida em direção à minha que apertei a mão em volta do punho com mais força, que a colisão viesse. E quando veio foi com tanto peso que quase deixei a espada cair, no lugar disso aproveitei o impulso e me joguei no chão, levantando atrás do meu inimigo e encostei a ponta da lâmina em sua nuca.

- Desiste? - quis saber, esperando algum movimento sujo.

- Sim. - murmurou e quando intensifiquei o aperto repetiu mais alto - Sim! Merda, mil vezes sim!

Sorri triunfante e puxei o elmo para que também o visse. Dei alguns passos para trás e ergui os dois braços, o elmo em uma mão e a espada na outra, esperando uma ovação da minha plateia. Que não veio.

- Merda Avina, achei que dessa vez você tinha enlouquecido de verdade.  - disse o jovem, agora tirando o elmo e sacudindo os cabelos, fazendo os cachos ruivos dançarem.

- Não seja uma drama queen Leon. Eu tinha tudo sob controle.

Mais ou menos. Leon me lançou um último olhar indignado e afastou-se, mancando exageradamente. Eu o observei pegar a mochila e andar em direção ao que em breve seria um estábulo pronto. Mal podia esperar, em duas semanas aconteceria o primeiro festival medieval de Kimpton. Quando lera no jornal uma nota que convidava voluntários a participar na organização não pensei duas vezes e dois dias depois conheci Leon e os outros. Era bom estar entre pessoas que gostavam do tema tanto quanto eu e quando as tarefas foram divididas escolhi ficar com o tornei, óbvio. Por mais que Jay, o organizador principal que ganhara carinhosamente o apelido de rei, insistisse que era apenas algo demonstrativo eu e Leon havíamos passado a levar isso ao extremo. O que resultava em um monte de pequenos hematomas, galos e escoriações aqui e ali. Nenhum de nós se importava, era mil vezes mais interessante que preparar as guirlandas decorativas.

- Hey! - gritei quando vi que realmente não pararia antes de trocar de roupa - Hey Leon! Você vai querer uma carona depois?

- Você já me machucou o suficiente por hoje, obrigado. - foi a resposta, amenizada por uma piscadela - E eu tenho um encontro com Christa mais tarde.

Fiz minha melhor imitação de uma donzela em perigo arrancando uma risada dele e devolvi a espada à bainha. Era estranho como o movimento era natural, o leve chiado do aço contra o casulo de madeira me enchia de energia. Agarrei a minha bolsa e com o elmo debaixo do braço andei até o banheiro feminino da pequena hospedaria, O falcão caolho. Apesar de não conseguir levar o lugar a sério por causa do nome, tive que concordar que Jay não poderia ter achado um lugar melhor. A hospedaria ficava a quilômetros de Londres, longe o suficiente para que parecesse livre de todo tipo de poluição sonora e confusão urbana, mas perto o suficiente para meus pais me deixarem ir e vir quando desejasse, ao menos quando estava de férias. E como as minhas haviam começado no dia anterior achava que tinha tirado a sorte grande e que pela primeira vez as férias de verão não seriam uma completa perda de tempo. Havia aprendido a confiar em minha intuição, mas aquela se provaria mais verdadeira que seria o saudável.

Arrastei as botas pela grama macia, ouvindo os pássaros, o vento e a conversa do clube de arquearia não muito à frente. Estavam ao lado de uma das grandes tendas que tínhamos armado, a que em seu interior estaria totalmente decorada como uma das antigas tendas dos acampamentos de guerra. Abaixei a cabeça e me esforcei para parecer a mais distraída possível, mas mesmo assim Alex me viu e começou a acenar como se estivesse se afogando. Dei um sorriso amarelo, formando nos meus lábios as palavras preciso ir, desculpe. Nunca, nunca mesmo o deixaria me convencer a participar de uma das aulas de novo. Haviam sido os sessenta minutos mais vergonhosos de toda a minha vida e no final não sabia onde enfiar a cara. Alex havia sido legal e explicado a minha completa falta de talento com arco e flecha ao fato de eu ser mais chegada no combate corpo a corpo o que era tão errado que eu quase cai na risada em sua frente. Eu não era boa no combate corpo a corpo, na verdade me dava tão bem com a espada porque a usava para não tocar no corpo da outra pessoa. E as aulas de esgrima desde a segunda série me davam uma vantagem considerável. Eu odeio não ser boa em algo e quando isso acontece tendo a me afastar o mais rápido possível e nunca mais tentar de novo. O que não é a melhor tática para adquirir qualquer habilidade, eu sei, mas simplesmente é o meu jeito de lidar com as situações. Ou pessoas. Agora que paro para pensar, principalmente pessoas.

Abro a porta da hospedaria e dou um pequeno aceno de cabeça para a velha Marie, que tão amavelmente permitiu que o festival fosse realizado em sua propriedade. Na realidade sairia ganhando também, porque todos os quartos estavam reservados para os quatro dias de festival e eu tinha certeza que uma vez que as pessoas provassem a sua comida e passeassem na floresta iriam querer voltar mais vezes. Ela não protestou quando me viu pegando uma cadeira da grande e aconchegante sala de jantar, nem quando a arrastei atrás de mim até o banheiro. Enfiei o encosto da cadeira debaixo do trinco da porta, me perguntando se Marie não consertaria a tranca até o dia do festival. Eu mesma só havia descoberto que estava quebrado quando dois rapazes que trabalhariam com o ferreiro entraram conversando e rindo em voz alta. Ainda agora quando puxava as peças da armadura para longe meu rosto tingiu-se de vermelho ao lembrar do episódio. Não que havia muito para ver de qualquer forma. Evitei olhar para o espelho porque sabia o que encontraria lá e apesar de Dianne, minha melhor amiga, dizer que não é assim que enfrentamos os nossos problemas estava seriamente determinada a ignorar a minha aparência. Eu tinha, como minha mãe gostava de justificar aos outros, ossos largos. O que significa que meus ombros são mais largos que os de muitos meninos que conheço e o quadril grande demais para parecer apresentável em qualquer uma das calças que está na moda. Nos últimos meses havia perdido peso considerável por causa da intensidade dos treinamentos de esgrima, minha mãe gosta de espalhar que com um pouco mais de empenho estaria na equipe olímpica (risos). Na realidade apenas entrei na equipe de base nacional, o que, eu repetia tanto que me deixava frustrada, não me garantia lugar algum caso não melhorasse muito. O que também não ajudava no clima em casa. Dei um longo suspiro e afastei os cabelos do rosto. Há uma semana tive a brilhante ideia de cortá-lo como forma de comemorar o fim de mais um semestre na universidade, apenas não contei com a tendência irritante que ele tinha de ter vida própria e agora quando eu não parecia o membro perdido de alguma boy band de sucesso podia fazer cosplay do Espantalho do Mágico de Oz. Encantador. Troquei a camiseta suada por uma nova, decidindo tomar banho em casa.

- Bom dia ainda Marie - falei quando carreguei a cadeira de volta. A velhinha apenas sorriu e acenou.

Quando estava no pátio quase bati contra Jay. Os seus braços estavam carregados com três caixas de madeira, o que tornava impossível ver qualquer coisa à sua frente.

- Deixe-me ajudá-lo - sugeri depois de ter saltado para o lado.

- Ah Avina, obrigado, obrigado. - sem cerimônias enfiou duas das caixas em meus braços, perguntou se estava bom e logo continuou a falar sem me dar chance de responder - Estava mesmo querendo falar com você, acha que seu irmão pode pintar aquelas tapeçarias que combinamos no outro dia?

- Ahm - respondi sentindo os braços arderem debaixo das caixas - Morgan disse que seria um prazer.

Isso era dizer pouco. Meu irmão gêmeo quase chorara de empolgação e havia começado a fazer os primeiros desenhos em seu bloco de rascunho que deixaria muitos artistas consagrados envergonhados. Ele, claro, atendia a Universidade para as Artes Criativas. Ao menos alguém deixaria mamãe e papai orgulhosos.

Jay ficou muito contente com tudo aquilo e prometeu que deixaria os tapetes em nossa casa nos próximos dias. Anui com a cabeça, checando o relógio apenas para confirmar que estava terrivelmente atrasada. Yey.

- Os preparativos estão a todo vapor. Já falei que vamos ter uma cigana de verdade lendo a sorte? O clube de arquearia não vai fazer feio, os assisti antes de começar a carregar as coisas para o depósito - e aqui ele se referia ao estábulo parcialmente construído. Ele parou de falar por um momento, erguendo a cabeça que contava apenas com fios de cabelos nas laterais - Você disse que traria os cavalos de Kent, tudo certo nesse departamento também?

- Sim. - e isso não havia sido fácil. Convencer meu pai a ceder seis cavalos não foi o problema, arranjar o transporte, decidir onde ficariam e como os alimentaríamos, sim. Havia passado uma tarde inteira ao telefone falando com o nosso administrador no campo e assegurando-o que Brian, Selene e todos os outros estariam em segurança. Smoca também viria e isso me deixava ainda mais animada. Não via o garanhão apache desde o verão passado.

Depois de ajudar Jay a carregar as coisas até o depósito (e fazer mais duas viagens carregando todo o resto sozinha) finalmente estava livre. Gritei acenando um adeus para Jayson que já puxava a nossa princesa para o lado. Christa era realmente deslumbrante, com seus cabelos dourados caindo em ondas compridas nas costas e olhos verdes com longos cílios. Consegui entender um pouco a ansiedade de Leon, perto do tom de seu cabelo os meus eram realmente palha seca. Sacudi a cabeça afastando a auto-piedade e coloquei meu capacete, puxando uma jaqueta de couro maltratada pelo uso do compartimento da minha motocicleta. Era uma coisa grande, negra e brilhante e que parecia orgulhosa de si mesma. Era o único mimo que eu aceitara do meu pai e quando considerava o apartamento e o carro que Morgan ganhara em nosso aniversário de dezoito anos no ano anterior parecia bem simplória.

Quando a paisagem ao meu redor virou um borrão verde interrompido pelos tons marrons da cerca que se levantava em ambos os lados da pista rural respirei fundo e quis arrancar o capacete. Claro, se o fizesse até poderia ouvir o vento assoviando em meus ouvidos, mas a probabilidade de ficar seriamente machucada caso algo acontecesse era suficiente para me impedir. E claro, se caísse ouviria sobre isso durante o resto da minha vida, da minha mãe, de Morgan, do meu pai. Não, que os momentos de liberdade pura ficassem para quando pudesse galopar em Smoca de novo. A estrada era na maioria das vezes completamente deserta e de ambos os lados o campo deu lugar à floresta de pinheiros, aveleiras, castanheiras e todo tipo de árvore que eu não conhecia. Passei reto na rua lateral que dava em Kimpton, o vilarejo pequeno e que parecia perdido no tempo que dava nome ao nosso festival. Estive com Leon nela uma vez, um buraco de ruas asfaltadas há centenas de anos, um poço no centro da praça da cidade e até um velho moinho abandonado que saudava os visitantes logo na entrada. Havia sido uma tarde agradável e eu tive que confessar que o lugar tinha seu charme. Foi nessa tarde que soubemos de Aylmer, o pequeno monte que se erguia de uma clareira a algumas horas de caminhada do centro do vilarejo. O dono da sorveteria em que tomamos os maiores copos de sundae que havíamos visto em nossas vidas jurava que o lugar era sagrado.

- Pequenos duendes moram por lá. Na floresta. - ele falou, esperando algum tempo por uma reação. Quando ela não veio acrescentou - E há fantasmas, pequenas esferas de luz nas noites de lua cheia, é verdade! Eu vi!

- Aposto que sim. - disse Leon com seriedade genuína e afastou seu banana split do alcance da minha colher - Eu gostaria de ir lá uma vez.

- Se tem coragem, mas devem ir em uma noite de lua cheia, do contrário os seres não aparecerão!

Eu estivera mais ocupada com os morangos que escorregavam para fora do meu copo, mas a conversa me interessara. Hoje é noite de lua cheia. Pensei enquanto passava pela placa que indicava que faltavam 15 km até que eu alcançasse a autoestrada. Não sei se foi por olhar para ela por uma fração de segundo ou se o velho realmente apareceu do nada como parecia ser. Apenas tive tempo para frear, ouvir os pneus cantarem e a direção balançar entre minhas mãos até se libertar. Com uma chuva de faíscas minha moto deslizou para longe de mim e para mim não restou nada além de escorregar com as mãos contra o chão, tentando pateticamente parar. Naquela hora agradeci mil vezes pelas novas luvas que Morgan me dera e prometi não estressá-lo por dois dias. Escorreguei para o lado, rolei algumas vezes batendo a cabeça contra o chão e finalmente com uma última cambalhota pousei ao lado do velho que motivara o acidente em primeiro plano.

- Oh. - ele disse.

Devia ter cem anos. Não, devia ter ao menos cento e vinte anos, pessoas ficavam tão velhas assim? A longa barba branca ultrapassava a barriga e caso tivesse alguns quilos a mais e sua barba estivesse bem cuidada poderia se passar pelo irmão mendigo de Gandalf. Eu devia estar parecendo uma idiota encarando-o através do capacete, porque ele começou a rir. A viseira ficara rachada, minha cabeça dóia o suficiente para que um traumatismo não fosse descartado e a jaqueta rasgara na altura do cotovelo direito, o que o deixou completamente desprotegido contra o asfalto. Minha moto jazia alguns metros na frente. E ele estava rindo.

- Você está bem? - perguntou depois de se controlar - Eu sinto muito, apenas não gosto de motociclos. Ou de quem anda nelas.

- Escute, velho. - disse com raiva, tirando o capacete com cuidado suficiente para não arrancar a minha cabeça - Eu me joguei da minha motoCICLETA para não atropelá-lo. O mínimo que podia fazer era mostrar algum respeito.

Depois de fechar a boca percebi que havia ido longe demais. O ancião olhava para mim, petrificado. Seus olhos eram assustadoramente azúis, tão intensos que me deram medo. Levantei devagar e segurei o capacete debaixo do braço sadio completamente envergonhada.

- Olha, eu sinto muito. Você não parece ter comido há algum tempo, eu posso te dar dinheiro para uma refeição e

- Não pode ser.-  balbuceou - Isso está errado.

- Sim, eu concordo. -  falei apontando - Eu, você. Minha moto arranhada.

- Não pode ser. - repetiu o velho, cruzou os braços atrás das costas e começou a andar em círculo - Não pode ser, está errado. Mas a hora está certa, sim, a hora está certa.

Dei dois pequenos passos para trás, percebendo que o velho não carregava nada consigo. Nada de bolsa, mochila ou pano embrulhando com qualquer coisa que fosse. E a forma como andava de cima para baixo também não era um bom indicativo. Talvez estivesse bêbado. Mas não cheirava a álcool. Ou talvez drogado.

- Ahm, senhor?

- Sim? - respondeu, ligeiramente irritado por ter interrompido debate consigo mesmo.

- Bom, se não quer dinheiro então... Então vou indo, certo? Ou quer que o deixe em algum lugar? Um posto de gasolina talvez? De lá poderia ligar para alguém.

Tive medo que aceitasse, mas o olhar que dirigiu a minha moto deixou bem claro que preferia morrer. Segurei o suspiro de alívio e andei em direção ao veículo. Não parecia tão danificada, com sorte os arranhões eram o único problema.

- Adeus - falei para o velho e quando não obtive resposta revirei os olhos - Eu disse adeus - falei mais alto erguendo a motocicleta do chão.

Mas o velho não respondeu. E quando me virei soube por quê. Ele simplesmente havia desparecido.

Quando desci da motocicleta na garagem subterrânea da nossa casa estava convencida que havia sonhado. Havia caído da moto, batido a cabeça e imaginado tudo aquilo. Sim. Isso era o provável. Subi os degraus e fui direto para a cozinha, o alvo era a geladeira.

- Se continuar comendo assim vai poder servir de alvo para os arqueiros. - veio a voz zombadora de Morgan até meu ouvido.

- Não me importo. - respondi com a cabeça dentro da geladeira - Jay disse que entregaria os tapetes em dois dias. Quem comeu meu iogurte?

- Não é seu se não tem seu nome escrito cantarolou - meu irmão e quando ergui a cabeça para fulminá-lo fui lembrada mais uma vez de como o mundo era injusto.

Morgan tinha os cabelos negros da nossa mãe e os dele eram ainda mais brilhantes que os dela. Os usava amarrados em um coque baixo (preso na maioria das vezes por um lápis e às vezes, para o horror da nossa mãe, um pincel), o que deixava seu rosto estruturado ainda mais proeminente. Os lábios finos estavam quase sempre formando um pequeno sorriso, como se soubesse de algo que era segredo para todo o resto. Era alto e esguio, a pele alva contrastando com os cabelos escuros e olhos claros. Morgan era uma tela pintada à óleo por um artista minuncioso, eu uma cópia impressa por uma impressora que já não tinha todas as cores. Com uma pontada de felicidade vi seu rosto bonito contorcer-se de susto.

- O que é isso? Você caiu, não caiu? - não esperou a resposta e desapareceu, voltando com curativos e produtos para limpar feridas. Dobrou as mangas de seu pullover até os cotovelos Tira essa jaqueta. desafiou.

Afastei a garrafa de leite dos meus lábios.

 - Não é grande coisa.

- Tire.

Revirei os olhos e com cuidado deixei o ferimento livre, Morgan assobiou baixinho.

- É melhor garantir que lady Catharine não veja isso. comentou antes de começar o trabalho de limpeza e desinfecção.

Madame Catharine era o apelido carinhoso como chamava a nossa mãe. Nosso pai era lorde Jonathan Pendragon, mas todos o chamavam de John. De toda a família, apenas nossa mãe parecia completamente obcecada com toda essa coisa de nobreza. Já arranjara quatro pretendentes para Morgan, cuja única reação foi ficar indignado, e tentara me matricular em todo tipo de esporte que era bem frequentado. Muitas reclamações, o filho de um duque desmaiado em um campo de golfe, uma sobrinha da rainha chorando em uma quadra de tênis e ameaças de proprietarios de ambos os lugares depois lady Catherine teve que aceitar que sua única filha era uma falha ambulante. John acompanhara todas as tentativas de sua esposa com um olhar de pena sobre mim e um jóia depois de cada conquista sabotada, mas nem ele parecia saber os rumos que eu tomaria. O curso de História em uma universidade pequena e pouco prestigiada era o fim que nenhum pai almejaria para sua prole e disso eu sabia bem demais. Talvez isso me impulsionou a fazê-lo para começar.

- Está ardendo - falei baixinho e depois empurrei Morgan para trás - Está ardendo! O que você está esfregando em mim?

- Não estou esfregando nada. - retrucou ferido - É só para sarar melhor e na embalagem diz que não arde.

- Deixe-me cortá-lo e derramar por cima para poder testar.

- Sua espada não é afiada, você me disse uma vez.

- Estamos em uma cozinha Morgan, acha mesmo que não encontrarei nada afiado?

Meu irmão se afastou, levantando as mãos em rendição.

- Se morrer com alguma infecção não venha reclamar depois. disse e momentos depois ouvi seus passos na escada. Provavelmente iria direto para o sótão, onde montara seu pequeno ateliê enquanto passava as férias em casa.

Fixei os curativos com uma quantidade exagerada de esparadrapos, depois lembrei que precisava tirar tudo para tomar banho. O dia ficava cada vez melhor.

Quando descia as escadas com os cabelos ainda molhados minha mãe abriu a porta principal e entrou num mar de sacolas de compras. Eu vistira um dos meus mais velhos moletons e esperava que fosse o suficiente para esconder o cotovelo machucado, de qualquer forma a dor de cabeça sumira e não parecia valer a pena ouvir um sermão interminável apenas para ficar algumas horas no hospital para nada.

- Avina! Querida, me ajude um pouco - chamou levantando a cabeça em minha direção. Seus cabelos artificialmente impecáveis estavam presos em um coque alto e elegante, junto com as roupas e as botas que usava parecia ter saído de um desses seriados norte americanos sobre mulheres viciadas em compras.

- Não posso mãe, estou saindo. - desviei dela e aproveitei a porta aberta - Vou dar uma passada na casa de Felix.

- Você sabe que não gosto desse rapaz minha filha - ela já começava, a voz carregada de desgosto - Vou apenas deixar as compras aqui e visitar Josephine. Você sabe, aquela designer de jóias, venha escolher uma pulseira para você no lugar disso querida. Ele está muito abaixo de você.

- E muito acima de você, mãe. - respondi e não esperei para ouvi-la começar a gritar.

Não precisava de uma moto para chegar a casa do meu, como Morgan chamava, paquerinha. A verdade era que Felix fazia música na mesma universidade que eu e nos conhecemos em uma das festas comunitárias que uma amiga minha ajudou a organizar e por isso ganhara entradas livres. Anna me jogou para cima dele a noite inteira e para minha surpresa ele não parecia se importar com a minha aparência porque foi simpático e atencioso. Havíamos começado a sair desde então, o que fazia três meses. Três meses era o suficiente para um pedido de namoro oficial, mas eu não estava com pressa e ele... Às vezes achava que lhe faltava certeza.

Quando descia os degraus para o metrô o sol começava a se pôr, desenhando as sombras dos prédios contra o assfalto. Enfiei as mãos nos bolsos da minha jeans, para o começo do verão as noites ainda eram consideravelmente amenas. Para chegar ao apartamento que Felix alugava com um amigo eu precisava apenas pegar um metrô e esperar três pontos. Era rápido e fácil, muito mais rápido que com a minha moto com a qual teria que enfrentar a hora do rush nas ruas. No metrô, por causa das férias, o movimento era bem menor. Um gato disparou pela rua quando sai do subterrâneo e por um momento hesitei. A rua que normalmente estava movimentada me encarava vazia. Uma sensação incômoda tomou conta de mim, a sensação de ser observada. Virei o rosto em todas as direções, não havia ninguém. Bom, se não havia ninguém ao menos significava que não corria nenhum perigo. Sem querer as manchetes dos jornais vierem de novo à tona 3 desparecidos em Saint Jamess Park, mãe de dois filhos ainda é procurada ou pais desistem da busca pela pequena Abbie. Eram notícias perturbadoras, liberadas de forma eficiente pela mídia que parecia eufórica sempre que algo ainda pior era descoberto. Como urubus rodeando a carcaça. Comentara Leon nauseado e eu concordei. Não sabia o que era pior: se o aumento de desparecimentos ou a forma como os repóteres caíam em cima das famílias afetadas. Silenciei aqueles pensamentos quando a porta do prédio de Felix surgiu diante de mim. Era um prédio antigo, exprimido entre tantos outros na rua. Um coração estava desenhado ao lado da campanhia dos dois, uma aposta que Paul perdera algum tempo atrás.

Foi ele quem desceu para abrir a porta, me fazendo achar que algo ruim tinha acontecido.

- Felix não está. - apressou-se a se desculpar - Ele está tocando na Pollux hoje à noite, ele não te contou?

- Não. - a sensação ruim voltou, mas agora bem diferente - Foi algo de última hora?

Paul hesitou, claramente não queria comprometer o amigo.

- Na verdade desde a semana passada. Eu estou indo lá, só preciso tomar um banho. Por que não sobe e espera?

- Obrigada, mas acho que vou para casa. Tive um dia cheio hoje, sabe como é.

- Eu entendo - respondeu, era alívio por trás das palavras? - Bom, tchau Avina, eu aviso que você passou por aqui. Se cuida.

Anui em silêncio e virei as costas para que não visse a confusão estampada em meu rosto. Talvez Felix estivesse vendo outra menina, por isso seu amigo parecera tão desconfortável ao me convidar para ir também. Qual outro motivo teria para não me convidar para vê-lo tocar, quando sabia que eu adorava esse tipo de programa? Típico. Bom, já tinha durado tempo demais. Pensei enquanto descia a rua, pronta para embarcar no primeiro metrô, voltar para casa e me enfiar debaixo das cobertas. Quando estava a mais ou menos duzentos metros da escadaria para o metrô a luz do poste em que estava debaixo começou a falhar, até se apagar completamente. Olhei para o fino brilho que permanecia de imediato depois do desligamento, mas não me importei muito. Afinal esse tipo de coisa acontecia sempre. Foi quando a segunda lâmpada começou a piscar que congelei. Lentamente ela também se apagou e como se fosse em sincronia, todas as luzes da rua fraquejaram e me mergulharam no escuro.

Lembro de pensar algo como wtf, mas então veio a lufada de ar gelado que trouxe vida de volta às minhas pernas. Corri em direção aos degraus sentindo que alguém, algo me seguia. E chegava mais perto, cada vez mais perto. Quase me joguei para baixo quando alcancei as escadas e com uma onda de esperança vi que dentro do metrô as luzes estavam acessas. Desci as escadas correndo e ainda corria quando alcancei a minha estação. Sentei em uma das cadeiras, olhando para o painel luminoso Heron Quays: 2 minutos e suspirei de alívio. Só mais dois minutos, vamos Avina, você consegue.

O gato pulou das sombras dos trilhos diretamente na minha cara. Gritei e bati contra mim como se lutasse contra um enxame de abelhas raivosas, mas o gato já se acomodava no colo de uma senhora. Ela era a única pessoa na estação, além de mim. Estava completamente vestida de negro e usava um lenço negro na cabeça que a fazia parecer uma daquelas bruxas dos irmãos Grimm. Quando abriu a boca vi que só tinha três dentes:

- Salve Pendragon, nossa vez finalmente chegou! - as palavras eram pouco mais que um grasnido. Sua mão enrrugada acariciava o gato, os dedos longos e finos desaparecendo no pêlo sedoso.

- O quê? - consegui dizer. Em breve poderia abrir um asilo para idosos psicologicamente perturbados - Quem é você, como sabe meu nome?

A velha sorriu.

- Quem é você? - devolveu a pergunta e com um barulho ensurdecedor meu metrô entrou na estação.

Olhei do metrô para a velha, que ainda mostrava a falta de dentes através de seu sorriso. O gato olhava diretamente para mim, como se me desafiasse a responder. Ouvi alguém perguntar se eu entraria ou não e quando me virei vi a impaciência no olhar do motorista. Andei em direção ao metrô, mantendo os olhos na velha. Quando me sentei ainda olhava para ela, apenas para ter certeza de que não despareceria no ar também. Mas a velha ficou lá, sentada, em carne e osso.

Nesse ponto estava completamente perturbada e a idéia de um traumatismo craniano já não parecia assim tão absurda. Caminhei até a minha casa, lutando contra a vontade de voltar para a estação e perguntar à velha como sabia o meu sobrenome e quem ela pensava que era para assustar pessoas assim. Tentei ficar mais calma, controlar a respiração. Mas logo quando parecia conseguir vi que uma figura alta e magra esperava em frente à minha casa.

- Eu juro, se eu encontrar mais um de vocês lunáticos hoje - eu comecei, com a voz muito mais firme que achei que fosse possível.

Quando a figura se virou percebi que era o irmão de Gandalf de mais cedo. Um desaforo estava pronto em minha língua, mas algo em seu olhar fez as palavras morrerem em minha garganta.

- É você! - ele quase gritou, numa mistura de choro e riso. E sua voz estava completamente diferente - É realmente você!

Consegui dar três passos para trás até que me alcançasse e eu estava pronta para desferir um dos golpes que aprendera nas aulas de autodefesa quando ele simplesmente me abraçou. Me abraçou com força e de repente eu não conseguia mais me mexer. O velho havia começado a chorar.



Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

vou logo avisando que não é garantido continuar, na verdade o mais provável é que não, bjus