Andere Ich escrita por Blumenkranz


Capítulo 2
Os Olhos Azuis




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13 de dezembro de 2088

Acordei com os olhos inchados, piscando incomodado com os raios de luz do sol que adentravam pela minha janela entreaberta. Olhei em volta de minha cama e vi diversos lembretes holográficos pairando sobre a mesa de estudos.

— Kazuki, você tem dez minutos para descer daí e vir tomar café! - Ouvi a voz de minha mãe, abafada pela porta que estava fechada.

Levantei-me cambaleando, sentia meu rosto inchado por causa de mais uma noite mal dormida. Eu sabia que aquele dia não seriam um dos melhores, pela décima vez consecutiva eu havia praticamente virado a noite dentro dos meus RPGs.

Saí de dentro da suíte com minha escova de dente na boca, e fui olhar o relógio. Eu estava há meia hora atrasado para a semana de provas no colégio. Não entendia o motivo de ter que continuar estudando, já que nossa família recebia uma pensão robusta vinda do além. Do além, pois há 12 anos meu pai não nos mandava noticias, apenas desapareceu de casa quando começou a pesquisar sobre um composto químico encontrado no solo radioativo no Vietnã. Pouco tempo depois o exército alemão mandou um comunicado para nós, dizendo que sentiam muito e que a partir daquele dia nada mais nos faltaria - uma historia tão mal contada que até hoje eu não acredito.

À propósito, eu não me lembrava de nada disso. A dois anos atrás eu simplesmente acordei em uma sala branca com uma iluminação que ardia meus olhos. Eu não sabia quem era, o por quê de estar ali, quem me esperava, quem não me queria por perto, nem sequer o meu nome ou minha idade. Me disseram que eu havia sofrido um acidente e que havia ficado dois anos em coma – até me arrepiei ao saber disso na época. Era como se eu houvesse nascido novamente, e era uma outra pessoa, sem lembranças. Eu logo fui acolhido por uma mulher de cabelos negros longos, que quando me viu pela primeira vez correu até mim atropelando os médicos e chorando muito, dizendo ser minha mãe. E esta mulher quem “cuida” de mim até hoje. Tenho certas dificuldades em me relacionar com as pessoas – sou meio antissocial, por assim dizer, e ela me ajudava com isso.

Sentei em minha cama e comecei a me trocar preguiçosamente, quando ouvi o barulho da porta se abrindo e a figura nervosa de minha mãe aparecendo do outro lado com um airhand nas mãos.

— Pensei que tinha criptografado a porta. - eu disse, sem levantar os olhos para ela.

— Bom dia - disse ela, ignorando meu comentário. - Você passou a noite estudando? Está péssimo.

Ela não esperou minha resposta. Apenas olhou em volta e viu meu headset jogado em um canto do quarto e a TV no stand by.

— Mãe...

— Eu não direi mais nada, Kazuki. Talvez você deva passar uns tempos na casa de sua tia. Já estou de saída, tem café pronto na cozinha para você.

Ela saiu batendo a porta e descendo as escadas ruidosamente. Eu a entendia. Desde que meus amigos haviam sido transferidos para outra capital por causa do exército, eu deixei de me importar com a vida. Não tinha mais nenhuma companhia além de minha mãe que gostava de se embriagar por causa do emprego que não gostava de ter. E quando ela não estava bêbada, estava estressada. Nada demais, eu achava. Mas aquelas sensações guardadas tinham que ser estornadas de alguma forma, e eu acabei aproveitando a pensão que recebíamos para comprar os melhores videogames do mercado.

Desci as escadas sem me importar com o tempo e fui em direção da cozinha, onde encontrei um pequeno bilhete de minha mãe, me desejando um bom dia na escola.

Não quero você indo para os fundos da escola depois do horário. Continue sendo o melhor aluno da escola. Eu te amo”

— Como ela sabia...?

Não tinha muito que comentar a respeito disso, pois em 2088 era difícil uma informação não correr rápido. O mundo não era mais como antes, metade do planeta havia sido devastado por causa de uma guerra nuclear, e o que sobrara havia sido unificado para manter a “ordem”.

Peguei o que tinha para comer e joguei dentro de minha mochila, me dirigi para a sala e passei o dedo indicador no leitor em forma de losango que havia no portão para trancar a porta. Tudo em nossa época deveria ser registrado com base na identidade da pessoa.

Ao sair de casa percebi o quão enrascado eu estava. Não havia ninguém nas calçadas andando apressadamente para ir para a escola. Os ônibus flutuantes que transportavam os estudantes, antes cheios e abafados, agora eram um mar de silencio e depressão de fim de ano.

Olhei para o relógio e percebi que haveria um ônibus em 5 minutos no terminal subterrâneo do centro da cidade.

Ao chegar, passando pela rampa rolante que me levaria ao escolar, olhei para trás aleatoriamente e avistei uma garota de vestido azul marinho e olhar observador, andando cautelosamente pela entrada do pátio. A menina parecia ser turista, pois andava pelo passeio de um jeito muito peculiar. Ela não parecia estar perdida na cidade, pelo contrário, sua forma decidida de caminhar mostrava que ela tinha um destino, mas ao mesmo tempo era como se ela não estivesse com muita vontade de seguir seu caminho.

Achei interessante aquela figura, e permaneci observando de lado a menina, que de vez em quando lançava olhares de relance para mim. Quando estava fazendo uma das voltas na enorme rampa de acesso, olhei minha mochila e percebi que havia deixado meu telefone no silencioso, e nos registros dele havia três chamadas perdidas. Logo mudei o status e depois de guardá-lo, olhei para trás instintivamente, encontrando os profundos olhos castanhos da menina de azul.

Havia algo errado ali, pois a menina não estava mais andando calmamente pela rua, e estava parecendo um pouco apreensiva de estar ali, ficava o tempo todo olhando para os lados, e para mim, inquietamente.

A rampa fez mais uma curva, e foi para o subsolo, eu chegara ao ponto onde pegaria o escolar, e não pude ver mais a garota que estava no nível da rua.

Enquanto esperava o meu escolar, eu podia ouvir os ruídos distantes dos carros comerciais um nível abaixo de onde eu estava, carros de transporte de matérias-primas e etc.

Subi no escolar e para minha surpresa, havia muito mais alunos lá do que eu imaginava, Sentei-me no ultimo banco do segundo andar do ônibus, e peguei meu timer para ouvir musica, enquanto não chegava ao meu destino.

Ao chegar à escola e atravessar o portão principal, avistei um garoto alto de cabelos lisos brancos e esvoaçantes, um pequeno brinco de ouro na orelha, óculos escuros de descanso encaixados no alto da cabeça, cintos com detalhes prateados pesados e longas botas negras, com um dos pés apoiados na parede atrás de si, e lendo uma revista digital de mecânica quântica e respirando fundo o ar debaixo de uma das poucas árvores que havia no colégio. Aproximei-me do rapaz e dei um chute de leve em seu pé que estava no chão, fazendo o garoto quase deixar o aparelho de leitura cair no chão.

— Se esse handbook caísse no chão, eu faria você comer toda a grama sintética desse colégio – disse o rapaz, tirando o pé da parede e dando um passo a frente para me cumprimentar.

— Bom dia, Zack. Como vai a vida?– eu disse.

— Vai indo... Essas provas de fim de ano me enchem de preocupações. Nem estudei nada.

— Você nunca se esforça. Só fica mexendo em seus projetos e lendo revistas de tecnologia no horário de aulas. Não vai passar mesmo.

— Olha quem fala, Sr. Gamer. Pelo menos eu faço algo útil.

—Algo novo pra contar? - dei de ombros.

— Tenho sim, você não faz ideia do que eu consegui concluir ontem, depois de tanto tempo!

Olhei para ele e seus olhos estavam brilhando. Parecia que tinha descoberto um elemento novo químico que poria fim às doenças do leste do mundo.

— Sabe aquele módulo que eu estava trabalhando há bastante tempo?

— Sim, o que tem?

— Eu consegui aprimorar a capacidade de reconhecimento de sons e gestos, adicionei mais algumas bibliotecas de conversações, e agora o meu Hiro está apto para interagir melhor do que antes!

— Hum.

— O que foi? Não parece muito interessado... - disse Zack, se curvando para pegar a mochila no chão, deixando os cabelos brancos caírem para frente, derrubando os óculos.

— Na verdade, eu não entendi nada.

— Ah normal... Deixa pra lá.

Zack, apesar de ser considerado um delinquente pela sua aparência, era um gênio em física e mecânica, e seu hobby era construir robôs horríveis, mas com altos índices de interatividade.

— Sim. E porque não trabalha para o governo com sua genialidade?

— Você é louco? Não posso compartilhar meu conhecimento puro com essas pessoas que só estão preocupadas com dinheiro - disse Zack, cheio de si.

— Se você diz. Vou entrar para sala, até mais.

— Certo, mais tarde passa lá em casa pra ver o meu H.i.r.o.

— O seu o que...? - franzi as sombrancelhas.

— H.i.r.o, minha nova invenção, você nem prestou atenção no que eu disse, não é? - respondeu Zack, contrariado.

— Ah, vou pensar.

— Que seja, vai se quiser. Fui. - disse Zack, dando de ombros.

— Até mais - sorri.

De acordo com a minha mãe, éramos amigos desde pequenos, quando a minha família Meihiro se mudou para Ikebukuro, por não achar um lugar mais barato pra comprar uma casa boa e espaçosa, e logo que entrei no colegial, conheci o Zack, em circunstancias normais até.

Entrei na sala de aula onde iria fazer as ultimas provas do ano, torcendo para que conseguisse passar, e ficar livre daquele ambiente cheio de pessoas.

Sentei-me no meu lugar e uma garota ruiva de saia curta e sandálias abertas demais para aquele tempo frio se aproximou de mim e pôs suas mãos macias nos meus ombros, atrás da minha cadeira.

— Como vai o meu gênio favorito?– disse ela no meu ouvido.

Olhei para o lado, e ela piscou para mim.

— Não encha a minha paciência, Lily, só vim fazer essa maldita prova e voltar pra casa.

— Voltar pra casa? Ou voltar pra sua realidade virtual, jogando aquelas coisas estranhas no computador?

— Não te devo satisfações.

— Hum, que grosso. Yukimura-sensei está na sala ao lado, espere só um minut... - foi interrompida com o barulho da porta se fechando - Eu já havia saído.

Saí pelo corredor pisando duro, não acreditava que teria que aturar aquela menina até o ultimo dia de provas, e para completar, saber que no ano seguinte ela provavelmente estaria na mesma sala que eu. Por um momento quis repetir o ano letivo, só para me livrar da menina. Apertei o botão de chamada na porta da sala do professor, e depois de dez segundos esta se abriu, revelando uma sala aconchegante com cheiro de flores de primavera. Era a sala dos professores, e os estudantes tinham acesso àquele lugar apenas em casos especiais.

— Yukimura-sensei. Desculpe o atraso. Vim fazer a prova. - eu disse.

O professor, que estava sentado em uma cadeira acolchoada fazendo o balanço dos resultados do semestre, olhou por cima dos óculos velhos para mim, e largou o handnote enorme que estava mexendo em cima da mesa, e levantando-se, disse:

— Hã, só vou te avisar uma coisa. É melhor que tire uma nota bem grande, senão irei lhe reprovar por faltas, e sua mãe ficará sabendo disso.

— Não se preocupe, estou preparado.

Ele olhou para mim com olhar de desdém.

— É o que veremos. Sente-se aí logo. Estou com pressa de sair de férias.

“Estou com pressa de sair de férias”, esse maldito. Aposto que fez a prova mais difícil para mim, só para me reprovar.

O professor jogou o arquivo para a minha mesa e eu comecei a ler a prova de matemática, cujas questões de múltipla escolha eram escolhidas com apenas um toque na superfície da mesa, e me perdendo em pensamentos, fui marcando as opções de forma decidida.

Apesar das faltas, e de não estudar nada, por algum motivo eu sempre me lembrava de cada coisa que caia nas provas, sempre tirava nota máxima, e por diversas vezes eu era chamado em reuniões para explicar o motivo de estar numa faculdade se eu já sabia tudo. Geralmente eu falava que queria o diploma – mas sinceramente, minha vida era tão monótona que eu não me importava com isso. Fazia tudo no automático. O fato de eu não me recordar de nada de mim mesmo me deixava frustrado, e eu não encontrava um sentido para minha existência. As pessoas ao meu redor se negavam a responder minhas duvidas. O que eu fazia era me contentar mesmo.

***

Estava caminhando pelos corredores da biblioteca, esperando Zack sair de sua sala, quando o telefone começa a tocar.

— Sim mãe?

— Terminou a prova? Queria que comprasse umas coisas pra mim, na volta.

— Tudo bem, mande para mim a lista do que quer.

— Você é o melhor Kazuki que eu conheço, filho! Já vou te mandar, beijo.

Os pedidos de minha mãe chegaram quase instantaneamente. Fui deslizando os dedos para baixo da tela e vi que a lista era bem grande. Meu celular estava deveras cheio de arquivos, pois estava demorando a carregar tudo. Durante a tela de loading, eu me debrucei na sacada do prédio e olhei para baixo. Não tinha medo de altura, e eu estava no segundo andar. Mas o que vi no pátio da escola me fez ter calafrios. A mesma garota que vi no terminal escolar estava apoiada em uma arvore, do lado do portão de entrada da escola. Sua presença não perturbava ninguém que passava, na verdade ela não tinha sido detectada por nenhum transeunte. Mas o que me deixou paralisado foi o olhar fixo dela dentro dos meus olhos. Minhas pernas começaram a tremer e eu percebi que eu conhecia aquela pessoa.

Imagens começaram a aparecer como um furacão dentro da minha cabeça. Um consultório, um homem alto, muitas ferramentas cirúrgicas, uma mulher de aparência jovial olhando de forma doce para mim, cristais de espelho quebrado voando na minha direção, e sangue. Muito sangue. Junto da fumaça nas imagens eu podia ouvir gritos de socorro, choros de crianças e bebês, vozes estridentes querendo estourar meus tímpanos. Aquela névoa misturada com imagens e sons aterradores dentro da minha cabeça faziam eu ter a sensação que iria explodir, e eu deixei meu celular cair no chão, apoiei minhas duas mãos na cabeça e comecei a gritar de dor. Minha visão estava turva e eu só via vultos nos corredores. Ninguém parecia ter me notado naquele canto, e eu continuava a ver aquelas imagens que pareciam sair daqueles olhos azuis fulgurantes e decididos. Eles pareciam uma metralhadora de informações bombardeando minha mente com o que pareciam ser lembranças.

Lembranças! Exatamente o que eu procurava naqueles três anos de vida pacata com minha mãe. Caído de joelhos naquele chão frio e me contorcendo de dor, abri os olhos e tudo ao meu redor estava avermelhado. Continuei gritando e a cada segundo que passava minha cabeça doía mais, eu via gotas de sangue no chão e sabia que eram minhas. Eu estava desesperado, desejando que alguém aparecesse ali para fazer alguma coisa, nem que fosse para me desmaiar, pois aquela dor estava mais do que insuportável.

De repente Zack apareceu correndo da sala dele e tentou me socorrer. Eu não podia ouvir sua voz, os gritos e choros dentro da minha cabeça abafavam qualquer tipo de reação externa ao meu redor.

Ele correu para dentro de uma das salas e logo depois voltou com uma garota de jaleco branco com várias seringas na mão com olhar aterrado olhando para mim como se tivesse vendo um monstro na frente dela. Por um segundo os gritos desesperados dentro da minha mente abrandaram o volume e eu consegui ouvir os sons ambientes.

— Kazuki pelo amor de Deus, o que está havendo!? - Zack estava quase chorando de aflição.

— Saia daqui! Não preciso de vocês, saiam agora!! - as palavras saíram da minha boca sem eu pedir ou querer, eu nem havia pensado nelas. Estava totalmente perdido, meus olhos sangravam, eu não conseguia controlar meu corpo.

Zack empurrou a enfermeira que estava tremendo no canto perto de uma das portas, e veio correndo na minha direção, se ajoelhou ao meu lado e colocou a mão no meu ombro.

Nesse momento eu movi o braço involuntariamente em direção ao peito do meu amigo e o empurrei para trás. Mas o que senti naquele momento foi algo surreal. Zack foi atirado a mais de oito metros de mim, batendo as costas na parede e parando quase no fim do corredor, desacordado. Meu braço tremia com o impacto e minha pele parecia ser de aço. Sentia uma energia correndo pelos tecidos do meu corpo como se eu tivesse vindo de dentro de um meteorito e acabado de pousar naquela sacada. A enfermeira saiu correndo gritando e eu apoiei o antebraço no chão. Depois daquela descarga de força no Zack, as minhas dores começaram a diminuir e eu relaxei, minhas pálpebras estavam pesadas demais, eu não conseguia reagir a nada. Em meio à surpresa, cansaço repentino e ao susto, eu desmaiei.

***




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