O Feiticeiro Parte I - O Livro de Magia escrita por André Tornado


Capítulo 2
I.1 O castigo da ambição.




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O vento levantou um remoinho de poeira.

Zephir caiu de joelhos, tonto e sem forças. A dor era insuportável e apertou o estômago numa tentativa de amenizar o sofrimento, evitando o gemido que indicaria que o tinham vencido.

No horizonte recortado pelos picos agrestes das montanhas, o sol punha-se e a Terra entrava de mansinho na escuridão. Abanou a cabeça, de olhos fechados, negando a derrota. Não o iriam derrotar... Pelo menos, não daquela maneira tão inglória.

A imagem difusa do Templo da Lua bailou-lhe na memória. A sua casa!… Fora a sua casa por tanto tempo que mal se conseguia lembrar do dia em que aí entrara pela primeira vez. Era apenas um miúdo órfão, com o olhar perdido e confuso pela grandeza dos muros que se erguiam em seu redor. Mas apesar da aparência frágil, já nessa altura tinha dentro dele a ânsia do oculto e das forças sobrenaturais.

Lembrava-se agora, a dor do ferimento que carregava a misturar-se com a dor da alma magoada. O Templo… Os monges em oração, aos pés da escultura negra da Deusa Suprema da Noite ornamentada com um colar de flores brancas. O cheiro do incenso, as sombras a alongarem-se pelos cantos. Ele era um desses monges, seguidor devoto dos ensinamentos do Templo.

Acreditava nas suas preces e dizia-as com fervor, pois sabia que um dia seriam atendidas. Na boca tinha a ladainha habitual que acompanhava cada madrugada. Na mente tinha o mais proibido dos sonhos, aquele que se confundia com as orações matinais e com o pedido à Deusa. Zephir queria atingir o nível máximo da ordem, queria ser o Sumo-Sacerdote que presidia aos destinos daquele lugar. Sabia que a esse senhor da magia eram revelados os segredos do Universo e de todas as correntes de vida que o governavam, que lhe eram dados os poderes invisíveis das estrelas e dos planetas. O corpo então estremecia com a possibilidade de um dia experimentar um tal poder. Saboreava deliciado a sensação de ter o mundo nas mãos, curvado a seus pés.

Não era um caminho fácil de percorrer, nem tão-pouco um pedestal ligeiro de se alcançar. O Sumo-Sacerdote do Templo teria que ser meritório de carregar as Insígnias Sagradas da Lua, provar ser um mestre superior de magia, conhecer todos os ensinamentos da Deusa Suprema, conseguir gerir o Templo, escolher com sabedoria os novos aprendizes e os novos monges, ser humilde perante o poder que lhe era entregue.

Zephir considerava possuir todas as qualidades para assumir o posto, menos a última. Não compreendia por que razão teria de resignar-se e esconder quão poderoso era o Templo da Lua nas artes do oculto, pois bastava o que ele sabia de magia para subjugar facilmente as mentes mais fracas dos restantes humanos. Quando chegasse a ser Sumo-Sacerdote, estaria na posição única de reinar sobre o planeta sem contestação e colocar o Templo num lugar mais apropriado a todo o poder desmesurado que encerrava. Mas o seu mestre insistia que havia outros poderes para lá daquele que eles conheciam no Templo. Zephir nunca acreditara no mestre naquela questão e foi assim, paulatinamente, que a rebelião começou no seu pérfido coração.

Enquanto soava o gongo que anunciava o começo do dia, Zephir perdia-se nos seus planos ambiciosos. O seu momento chegaria… Seguia os outros monges para iniciar os exercícios diários de concentração e magia, obediente e anónimo. Ninguém conhecia os seus desejos mais íntimos e apenas o sorriso cínico, por detrás do capuz negro, o denunciaria se o pudessem ver.

Até aquele dia…

- Malditos! – Exclamou entre dentes.

Um fio de sangue escorria-lhe pela cara. Começava a sentir frio. Viu ao longe, por entre os rochedos, o que lhe pareceu uma gruta. Passaria aí a noite que se aproximava. Umas boas horas de sono, era o que precisava, contando que não sucumbisse aos ferimentos.

Levantou-se. As pernas tremeram com o peso inesperado do corpo. A túnica branca esfarrapada e o manto vermelho feito em pedaços ondularam com o vento. Zephir venceu mais uma tontura, apoiou-se nas rochas que ladeavam o caminho pedregoso e dirigiu-se para a gruta.

Até aquele dia…

Ele fora um verdadeiro fenómeno. Destacava-se entre os da sua idade, mas nunca lhe ligaram muito porque diziam que todas as crianças tinham uma inclinação especial para a magia, enterrada no seu subconsciente e longe do seu controlo direto. Com ele não se passava assim e quando cresceu aperceberam-se disso. Os dotes infantis não eram fruto do acaso. No Templo, começava a ser admirado pelas suas capacidades invulgares. Quase venerado. Os mais novos seguiam-no, os mais velhos escutavam-no. Zephir acumulava carisma.

O oculto sempre fora a sua paixão. Desde pequeno que Zephir sabia que possuía dentro de si uma possibilidade espantosa – mesmo misteriosa – para conseguir ver para além das coisas físicas. Para ele, o mundo sempre fora uma mistura de coisas vivas, unidas por mil espíritos que conhecia na perfeição. No Templo, aprendera a controlar esses espíritos e o mundo fora-lhe revelado.

Lentamente, convencia-se que estava destinado a governar o mundo. O primeiro passo havia sido dado. Tinha sido ordenado, naquele dia, sacerdote do Templo da Lua. Ao pescoço, usava o colar de contas de coral vermelho e os ombros cobriam-se com o manto da mesma cor. Já não era um aprendiz invisível, ignorado pelos sacerdotes mais velhos que desdenhavam do seu talento por sentirem inveja.

Começou, nessa altura, a estruturar o caminho que o levaria ao topo. Contava com o importante apoio de muitos monges do Templo, aumentara consideravelmente as capacidades para dominar os mistérios do Reino dos Espíritos, era inquestionavelmente um poderoso feiticeiro. Bastava apenas uma oportunidade, no momento certo, e o Templo seria conquistado. Saberia governá-lo com a sabedoria devida e com a visão exigida. Como Sumo-Sacerdote ocuparia o Trono de Marfim que dominava o Salão da Luz, conseguiria a Chave de Cristal que abria a Sala Sagrada onde se escondiam as respostas de todos os mistérios. Numa palavra, poder! Seria o Senhor da Terra! O Imperador do Universo!

Até aquele dia…

O último raio de sol perdeu-se por detrás das montanhas.

Perdeu as últimas forças quando chegou à entrada da gruta. O cansaço e as feridas que lhe cobriam o corpo engoliram-lhe o ânimo. A cabeça latejava, plena de memórias. O ódio enchia-lhe o coração.

- Hei de vingar-me! – Murmurou, a boca seca. – A minha vingança será terrível! Malditos…

Jogou uma mão trémula à cabeça calva, limpando o suor. Nunca iria esquecer aquele dia.

Toynara adorava-o. Para o miúdo de dezassete anos que entrara no Templo havia menos de um mês, Zephir era como um deus. Nada se comparava à magia de Zephir, nada poderia vencer os feitiços de Zephir. Toynara dizia a todos os outros monges que partilhavam a sua ala, que Zephir controlava o Outro Mundo.

- Ele é o Senhor das Trevas – dizia, cheio de temor reverencial.

Fora por isso que Zephir escolhera-o como discípulo. Decidira fazer dele a sua sombra e ensinar-lhe todos os seus segredos. E seria o primeiro a ser favorecido quando o mundo lhe pertencesse.

Enganara-se…

Toynara prezava acima de tudo o Templo da Lua. Ficara incomodado com os planos de Zephir de controlar o planeta e o Universo, quando este lhos revelara numa tarde de confissão e de confiança. Zephir, cego de orgulho, não se apercebera.

Numa noite escura, dois monges foram aos aposentos de Zephir e deixaram no chá uma droga que adormecia os sentidos e diminuía os reflexos. Quem tomasse aquela substância ficaria acordado, mas completamente indefeso.

No dia seguinte, fora chamado ao Salão da Luz. Toynara estava ao lado do Trono de Marfim, enquanto o Sumo-Sacerdote usava de toda a sua eloquência para enumerar um sem fim de acusações contra ele. Não dissera uma palavra. Dormente devido à droga que bebera no chá, os olhos vermelhos cravavam-se na figura altiva de Toynara coberto pelo manto vermelho dos sacerdotes. O fedelho passara de aprendiz a sacerdote e Zephir sabia qual havia sido o preço da consagração…

Depois do discurso do Sumo-Sacerdote, um grupo de cinco monges levaram-no para o pátio da vergonha, um sítio exíguo que ninguém visitava por ser terreno desgraçado. Retiraram-lhe o colar de contas de coral vermelho e atacaram-no selvaticamente. No fim da sova, mal se podia mexer. A raiva apoderara-se do corpo moído por ter sido incapaz de se defender. A droga não o deixara reagir, nem mesmo a magia conseguira convocar e recebera a punição corporal como um cão vadio.

As portas do Templo da Lua fecharam-se para o exilado. Os cinco monges levaram-no para longe, para muito longe. Quando chegaram a um deserto de montanhas rochosas, deixaram-no lá para morrer. Era esse o castigo para quem desonrara o Templo. A própria desonra!

Zephir caíra inconsciente. Antes, marcara cada um dos rostos dos cinco monges que o tinham abandonado. Perdeu os sentidos no meio de uma nuvem de sensações dúbias, de dor e de ódio.

Os dias passaram.

O feiticeiro acordava, finalmente.

Ainda não o tinham derrotado e naquele momento crítico em que lutava entre a vida e a morte, o seu sonho de poder absoluto, o seu desejo intenso de ser o imperador do Universo, fazia mais sentido do que nunca.

- Vingança… - murmurou.

A imagem de Toynara, ao lado do Trono de Marfim, azedou-lhe a alma.

- Tu serás o primeiro… a sentir a minha ira…

Deixou cair o corpo na terra dura. Um suspiro saiu-lhe dos lábios, os olhos fechavam-se. A mão direita tentou alcançar alguma coisa palpável e quando encontrou uma pedra, agarrou-a com ganas. Focou a mente na sensação da pedra no punho fechado. Era um sinal de que ainda vivia se podia sentir a pedra.

O vento rodopiou à sua volta. Estranhamente, a brisa vinha quente.

- Queres ser poderoso, Zephir?

A voz sobressaltou-o. Abriu os olhos, mas não levantou a cabeça, e aligeirou a pressão sobre a pedra.

- Queres ser poderoso?

Um espírito falava-lhe. Por entre a confusão da mente enfraquecida, conseguiu relembrar o que significava a brisa quente que o embalava. A magia ajudava-o, naquele momento derradeiro.

Reuniu as últimas energias e ergueu ligeiramente os olhos na direção da voz, que tornou a perguntar.

- Queres ser poderoso, Zephir? – E acrescentou num silvo – Muito poderoso?

Uma figura franzina agitava-se à sua frente. Nunca a tinha visto. Era um espectro invulgar, completamente diferente daqueles que costumavam visitá-lo no Templo.

- Quem és tu? - Perguntou.

Mas o espírito insistia:

- Queres ser poderoso?

Engoliu em seco. Era o seu sonho, não era?

- Sim… Quero.

O espírito sorriu.

- Muito poderoso?

- Sim…

A seguir, a figura feita de nada desapareceu com o seu sorriso enigmático. Zephir abriu a boca, desesperado. A mão direita largou a pedra e esticou os dedos no vazio, querendo agarrar o espírito que ia embora.

- Volta! - Gritou.

O esforço foi tremendo e perdeu os sentidos.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Dois rapazes na universidade.



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