Cárcere Das Almas escrita por Wendy


Capítulo 4
Capítulo 4 - Five story fire as you came




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Alguém chegou a tentar segurá-la pela mão, delicadamente, mas qualquer toque ainda era demais.

- Por favor, você parece desesperada... Deixe-me ajudá-la. – Disse uma menina escondendo-se atrás de uma das portas do corredor.

- Eu não posso ficar mais tempo aqui, desculpe-me...

E puxou o punho com força deixando a menina a ver navios, parada, lá dentro do quarto, talvez nua, talvez vestida, talvez esperando seu cliente. Percorreu o corredor com rapidez e nem percebeu se Pietro notou sua mão arrastando o dinheiro até a beirada do balcão, fechando as notas dentro do punho.

Engoliu o choro aquele dia. O mundo tinha problemas maiores e não eram as suas lágrimas que o fariam voltar os olhos para ela. E nem desejava isso. Já tinha recebido atenção demais por todo o mês. Das dores de uma mulher arrependida nem um psicanalista aguentava mais ouvir. Converteu todo sofrimento em orgulho e sentiu o sabor amargo descendo pela garganta quando decidiu gastar todo dinheiro no que visse pela rua.

Aquele seria sua recompensa e gastaria até que as lembranças do que tinha acontecido aquela tarde fossem embora.

Passou na venda da esquina e encheu uma cesta de vime com alimentos. Grãos, frutas e até alguns doces em compota. Alguma coisa haveria de ser doce em meio aquele mar de desilusão. Não abriu mão de visitar a padaria e comprar alguns croissant, um pelo pedaço de queijo e fatias grossas de presunto.

- Prepare dois para agora, por favor, e duas canecas de chocolate também. – Disse ao Seu Manuel procurando o troco da mercearia no fundo da cesta de vime.

- A senhorita deve estar com muita fome... – Comentou partindo o queijo.

- Estou mesmo com muita fome, Manuel. Mas esses não são para mim... – Disse colocando a quantia estipulada sobre o balcão.

Poderia não ser muito boa em contas com vírgulas, mas sabia cortar uma conversa fiada como ninguém. Deu meia volta no meio fio e agachou frente aos mendigos, estendendo o embrulho com os pães e o leite.

- Acho melhor a senhorita não ficar muito tempo perto de nós. Vão pensar mal... Reconsidere. – Pediu Oscar movendo as mãos - Ainda dá tempo...

- Olha, se continuar me espantando daqui, como um pombo fedido, eu me sento e canto “Três ratos cegos” até o seu ouvido explodir! – Exclamou a mulher equilibrando-se sobre os sapatos.

Hatim começou a rir abraçando o amigo pelos ombros, com a mesma cara de bêbado encardido de sempre.

- Então o que uma senhorita tão bela e jovem quer com esses dois pobretões que não tem onde cair mortos? – perguntou Oscar acomodando-se embaixo do cobertor.

- Venho lhes trazer comida... – Começou antes de ser interrompida.

- Ah! Então é caridade! Já estamos no Natal, Hatim? Essas mulheres pensam que nós só sentimos fome do final do ano!

- Oscar, quer parar de implicar com a moça? Deveria estar, pelo menos, contente de ser ela e não aquela viúva com cara de maracujá podre.

A relação dos dois a arrancava sorrisos. Era impossível não achar graça dos dois estrangeiros malucos. Mas ainda assim, insistia em tentar se explicar.

- Não é caridade. E estamos longe do Natal. Mais do que gostaria... Gostaria que aceitassem o pão que trago.

Hatim estendeu a mão para pegar o pacote e Marie quase vomitou ao notar suas unhas sujas. Reprimiu a sensação e continuou formulando frases que explicassem o que nem ela conseguia entender.

- Nós sabemos que a senhorita mora naquele casarão há anos e desde de o dia em que uma ambulância parou frente a sua casa, nunca mais vimos o senhor seu pai. Era um homem muito bom, sempre jogando piadas de inglês para o meu lado...

- Resumindo, garota. O que o meu amigão Oscar quer saber é o que a senhorita pretende dando comida para nós nessa altura da vida.

Ela ficou parada por um momento pensando. Na verdade, agiu por impulso. Saiu da mercearia, viu os homens apodrecendo na calçada e achou que se ajudasse poderia contribuir com o resgate do mínimo de dignidade dos dois.

- Achei que se oferecesse uma mão amiga os dois poderiam voltar para casa. Se o que dizem é verdade, claro.

Eles se entreolharam, com os olhos esbugalhados. Oscar, que ia começar a comer o pão, embrulhou-o de volta no papel e fechou as mãos em concha entre as finas e delicadas da dama.

- Eu não tenho palavras para lhe agradecer. Não sei como vai fazer isso, mas eu estou disposto a qualquer coisa.

Os olhos azuis do inglês começaram a brilhar sob os cílios grossos e empoeirados e quem se esforçasse muito conseguiria ver uma beleza quase enlouquecedora naquele azul céu.

- Que é isso, meu velho? Uma garota te estende a mão e na primeira oportunidade esquece de mim? – Disse Hatim com a boca cheia.

- Mas não era você quem queria ouvir o que ela tem a dizer?!

- Ouvir. Não acatar. Vai que ela transforma sua ajuda em trabalho escravo depois? Olha, senhorita, não estou fazendo desfeita do seu bom coração, mas depois de ser chutado por tanta gente, prefiro pensar sobre. Podemos te dar a resposta em três dias?

Hatim tomou uma posição ereta, recostado a parede, exibindo pela primeira vez a soberania de um príncipe primogênito, como dizia ser. Oscar, que era o mais durão o olhava com perplexidade. Acabou por ficar ao lado do amigo, soltando a mão da moça.

- Tudo bem. Volto na sexta-feira.

Marie se levantou do chão recolhendo a cesta de vime e massageando os joelhos, cansados de ficarem agachados sobre os saltos. Caminhou até a direção de casa com um plano em mente. E a impossibilidade desse plano era o que mais a atraia.

Seria o responsável pela ocupação de seu tempo, espantando assim, toda e qualquer lembrança do seu emprego desprezível.  


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