O Espírito Da Montanha escrita por RTM


Capítulo 1
O espírito da montanha




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             Resistindo à fina chuva gelada que batia contra os rostos descobertos, as pessoas continuavam seu trabalho diligentemente enquanto a fraca claridade do fim do dia ainda permitia enxergar com alguma nitidez as formas cinzentas sobre o campo aberto. Apesar da dificuldade do trabalho, do frio e da fome, aquelas pessoas pareciam satisfeitas, pois uma boa colheita garantiria um inverno aquecido e seco. Mulheres e crianças, em sua maioria esfarrapadas e subnutridas, disputavam espaço com as pequenas aves negras que ensaiavam uma animada melodia metálica e rouca, enquanto descreviam uma sinistra coreografia no ar, ansiosas pela promessa de uma farta refeição. Às vezes um corvo mais temerário descia sobre uma carcaça de cavalo e começava a rasgar fiapos de pele e carne, sendo timidamente seguido por mais dois ou três. Mas antes que o restante dos corvos tomasse coragem, pedras e pedaços de paus voavam de todos os lados e, com alguma sorte, uma criança levaria para casa uma ave para o jantar.           

            Foi em meio a uma dessas chuvas de pedras que Kenta recobrou a consciência, sentindo um gosto metálico na boca. Ele passou alguns momentos de olhos fechados, tentando expulsar a cacofonia de grasnados que ecoava em sua cabeça enquanto tentava se lembrar do que lhe havia acontecido. As memórias voltavam de forma caótica e em ondas, acompanhando o ritmo da dor que latejava dentro de sua cabeça. Ele abriu os olhos ao sentir algo cutucando sua bochecha e a primeira coisa que viu foi um rosto pálido deitado sobre a lama. Aquele era o rosto de um homem jovem, tinha o olho esquerdo arregalado, olhando estaticamente em sua direção, mas o outro lado do rosto já estava coberto por lama, que entrara pela boca semi-aberta. Kenta analisou aquele rosto, tentando se lembrar se já o vira antes, mas se afastou atrapalhadamente quando percebeu que àquele homem faltava um pescoço e também um corpo. Tentou ficar de pé, mas o mundo girou para o lado errado e o forçou a cair sentado. Viu um graveto cair em uma poça de água ao seu lado e uma criança suja e descalça sair correndo assustada para se agarrar à saia de sua mãe. Alguns olhares se desviaram por alguns momentos, mas apenas por tempo o suficiente para se certificarem de que podiam continuar o trabalho.

            Obtendo sucesso após algumas tentativas desajeitadas de se pôr de pé, Kenta olhou ao seu redor. Ele sufocou um vômito ao ver os corpos espalhados pelo chão. Cavalos, samurais e soldados rasos se misturavam em uma planície coberta de sangue e lama. Um cheiro nauseabundo de morte o atingiu com força, levando-o a perder o equilíbrio novamente. Só então percebeu que aquelas pessoas não pareciam se importar com o cheiro e nem mesmo com a morte. Elas só se importavam em colher objetos caídos no chão e cortar pedaços dos corpos para despojá-los dos valiosos metais que carregavam. Saqueadores de cadáveres, Kenta ouvira dizer, só apareciam após as batalhas, quando os exércitos cediam à dor e ao cansaço e se retiravam para deixar a honra e a glória para um outro dia. Cadáveres de pessoas importantes e entes queridos geralmente eram levados pelos soldados, bem como montarias ainda inteiras e armas em bom estado, mas todo o resto era abandonado aos saqueadores. E estes sobreviviam arrancando dos corpos algumas moedas que porventura encontrassem e vendiam a ferreiros o que conseguissem carregar de metais torcidos e quebrados.

            Ao olhar para baixo, Kenta reparou que ele próprio já havia sido saqueado, provavelmente por alguém que o tomara por um cadáver ou que simplesmente não se importava se ele estava vivo ou não. Descalço, desarmado e apenas com sua roupa de baixo, tropeçou em alguns cadáveres, procurando algo que pudesse usar como arma, ou ao menos uma sandália, mas não havia nada útil que já não tivesse sido levado. Ele então se afastou sob os olhares desconfiados daquela gente maltrapilha, que temia um aumento de concorrência, e voltou até a trilha que levava à sua aldeia. Os três dias de viagem de volta foram mais longos e penosos que os de ida. A partida da aldeia havia sido às pressas, após ouvir a notícia de que lorde Sakamoto avançava contra um senhor de terras rival. Armado com uma lança de ponta suja pela ferrugem, sua coragem e o sonho de servir no exército de um influente senhor feudal, Kenta deixou para trás a aldeia, seus tios e o que restava de sua infância. Sendo de nascimento baixo, ele sabia que não poderia jamais alcançar o status de samurai, com direito a honrarias, armadura e um soldo, mas se conseguisse a cabeça de algum oficial ou comandante inimigo, poderia obter uma boa recompensa, certamente mais do que conseguiria trabalhando sua vida toda nos campos de arroz. Outros dois rapazes da aldeia também expressaram desejo de guerrear e partiram com ele, mas a um deles faltou coragem, ou sobrou sensatez, na metade do caminho e o outro desapareceu na confusão da batalha. Eles haviam entrado no combate atrasados e acompanhados por uma tempestade. Kenta apenas se lembrava das flechas, dos gritos e da perturbadora expressão de pavor irracional na cara de um cavalo que correu em sua direção com uma lança atravessada no pescoço. Depois disso, as lembranças eram de escuridão, dor e frio.

            Exausto, ferido e derrotado. Kenta já podia imaginar os olhares de reprovação dos vizinhos e de decepção de seus parentes. Mas pelo menos estaria seco, quente e alimentado. Enquanto subia a colina que levava à aldeia, observou uma fraca claridade contrastando com o céu noturno coberto por nuvens. Ainda é cedo para o festival de inverno. A última safra ainda está a duas semanas de ser colhida. Ou seria uma semana? Um arrepio cruzou suas costas quando viu uma grande fogueira, a maior que jamais vira em qualquer festival. O assombro se transformou em desespero ao perceber que fogueiras foram acesas sobre as casas, muitas das quais já haviam se apagado em ruínas de carvão. Kenta correu o mais rápido que pôde, ignorando as feridas das bolhas estouradas sob seus pés e o fato de estar desarmado. A casa de seus tios ainda ardia ferozmente do outro lado da aldeia, iluminando o campo de arroz e alguns homens que saíam montados a cavalo. Eles carregavam grandes fardos em suas montarias, que atrasavam seu movimento. Um deles avistou Kenta, que corria alucinadamente em sua direção, e com grande rapidez puxou o arco e lançou uma flecha. Ela se fincou no chão, bem em frente aos seus pés, e o fez tropeçar e rolar para fora do caminho, no meio do arrozal e longe de uma segunda flecha mais certeira.

            Mesmo tomado pela fraqueza e pela tristeza, Kenta reuniu energia para seguir o som dos soluços e gemidos, procurando por sobreviventes daquele massacre e ajudando a buscar por alimentos e remédios. Um dia depois, voltou ao que restava de sua casa para recolher as cinzas dos tios. Mortes, estupros e pilhagem. Quando um exército perdia uma batalha, eram sempre os camponeses que sofriam as consequências, enquanto o senhor de suas terras se refugiava confortavelmente dentro de seu castelo, por trás de fossos, muralhas e centenas de lanças e flechas. Kenta afastou com repugnância de sua mente o pensamento de que, se o resultado da batalha fosse outro, ele é quem estaria partindo de uma aldeia em chamas com todo o estoque de inverno empilhado sobre um cavalo. Aqueles  pensamentos eram inúteis. Naquela situação era mais importante sobreviver, não havia tempo para arrependimentos ou lamentações. Ele trabalhou quase sem descanso pelas três semanas seguintes, ajudando seus vizinhos a construir um abrigo improvisado de inverno para algumas pessoas que não puderam ser espremidas dentro das poucas casas que não foram queimadas e também ajudou a realizar a última colheita de arroz. Mesmo com o que sobrara da colheita, eles teriam apenas o mínimo para passar o inverno sem morrer de inanição. Kenta havia perdido tudo e sabia que os aldeões o culpavam por sua atitude intempestiva de querer se tornar um soldado. Por dentro, eles o culpavam por ter perdido a batalha e o acusavam com olhares sombrios por não ter tido a decência de morrer. Mas morrer com honra era algo reservado só aos nobres e samurais e Kenta ainda era forte e pôde ajudar na recuperação da aldeia. Ele acompanhava em silêncio a conversa dos mais velhos, que reuniram na casa do chefe da aldeia todas as pessoas com força suficiente para erguer uma enxada, que lamentavelmente mal chegavam a uma dúzia.

            – Não há mais tempo! – disse a velha Oshin, esfregando um grande hematoma em seu braço. – A neve chegou cedo demais e o seus sobrinhos ainda não voltaram.

            – É o peso que deve estar atrasando eles. Lorde Sakamoto deve ter enviado vários sacos de comida e roupas. – respondeu Goro, que havia sido escolhido como novo chefe da aldeia no lugar de seu falecido irmão.

            – Que nada! Você não ouviu o que o bonzo disse quando passou por aqui anteontem? Os ladrões estão atacando todas as estradas e vilas da região! E o covarde Sakamoto está escondido no castelo dele com medo de um contra-ataque do lorde Ikeda. O que acontecerá se um grupo de bandidos resolver nos atacar?

            – Cale-se, velha idiota! Aquele monge não sabe de nada. Nós teríamos mais chance de sobreviver na montanha, cheia de árvores, pedras e neve, do que levando toda a aldeia em uma semana de viagem até o castelo de lorde Sakamoto. Você aguentaria caminhar até lá com essa tempestade de neve?

            Oshin cruzou os braços e baixou os olhos. Sua boca tremia enquanto falava.

            – Eu não quero ter que enterrar mais filhos e netos.

             O silêncio que se seguiu deixou todos desconfortáveis. A fogueira parecia mais fraca e do lado de fora o vento soprava revoltoso, com assobios que lembravam uma alcatéia uivando para a lua. Kenta virou os olhos para a velha sacerdotisa, que se sentava sobre uma almofada, um lugar de honra na sala. Ela vivia no templo no sopé da montanha, a quase um dia de viagem da aldeia, e aparecera ali na manhã daquele dia, sem que ninguém tivesse ido chamá-la. Era magra e encurvada, tinha os cabelos cinzentos e secos como palha, o rosto fino e enrugado e os olhos cobertos pela catarata. Seu ajudante era um jovem alto e robusto, forte o suficiente para carregá-la nas costas por longas jornadas. A velha tinha os braços cruzados por dentro das mangas do kimono branco e parecia estar murmurando algo inaudível. Os olhares dos demais também se desviaram em sua direção quando ela se ergueu sem aviso, apoiando-se em seu ajudante. De uma das mangas tirou um cordão feito de fios vermelhos entrelaçados. Ele estava amarrado a um grande canino branco e pontudo. A presa tinha dez centímetros de comprimento e refletia a luz da fogueira como uma pérola. Kenta se encolheu ao tentar imaginar o tipo de fera que um dia fora a orgulhosa proprietária daquele instrumento de morte. A sacerdotisa ergueu o cordão, aproximou-se da fogueira, posicionando-o sobre as chamas, e quebrou o silêncio, com uma voz rouca e soturna:

            – Os deuses estão descontentes. A última colheita de outono foi violada com o sangue de inocentes. O inverno será longo e sombrio, pois os deuses demandam compensação, demandam justiça.

            O grande canino parecia pulsar sobre as chamas. Uma das línguas da fogueira tocou a ponta da presa e produziu um estalido alto. Alguns homens se encolheram e uma das mulheres soltou um grito abafado. A sacerdotisa ergueu o cordão mais alto e moveu a cabeça de um lado a outro, como se estivesse olhando ao redor. Kenta sentiu um aperto no estômago quando viu os olhos cegos da velha encontrando os seus. Ele desviou o olhar para o canino e piscou os olhos de surpresa ao vê-lo mudar para uma cor cinzenta para logo em seguida ficar completamente opaco como carvão. Um murmúrio ao redor o convenceu de que os outros também enxergavam o mesmo.

            – A ira dos deuses! – vociferou a sacerdotisa – A divina retribuição não pode ser completada pelos homens. Apenas espíritos sombrios podem fazer isso. Mas é necessário um sacrifício.

            O murmúrio subitamente silenciou. Olhares apavorados vagavam para vários lados, exceto na direção daqueles imperiosos olhos esbranquiçados. Kenta sentiu novamente seu estômago apertar. Os pelos de seus braços estavam arrepiados e suas mãos suavam, apesar de estarem geladas. Será o medo? Não, não é só isso, tem algo diferente. O dente amarrado àquele cordão não refletia mais a luz, pelo contrário, parecia feito de escuridão, como fosse um vazio profundo e voraz, capaz de engolir qualquer coisa que o tocasse. Kenta sentiu a força que comprimia seu estômago ser transferida ao seu peito, obrigando-o a soltar o ar de seus pulmões. Ele podia escutar as batidas de seu próprio coração ecoando no fundo do ouvido. Num instante de clareza, recordou-se dessa sensação, daquele breve momento em que depositou sua vida na ponta da lança, quando experimentou pela primeira vez o sabor da batalha com seus músculos e nervos. Lembrou-se do gosto amargo e ácido no fundo da garganta, da respiração irregular, do terror, da fúria e do desejo.

            Um homem deu um resmungo de protesto quando foi empurrado para o lado e uma criança tropeçou ao se desviar de Kenta, que abria caminho até a velha sacerdotisa, ajoelhando-se em sua frente. Ele sentiu dedos frios e ásperos tocarem seu rosto. Ela passou o cordão em torno de seu pescoço, amarrando firmemente as pontas, de forma a parecer um colar vermelho com uma jóia de obsidiana. Kenta sentiu o peso daquela gema negra sobre sua roupa, puxando seu pescoço para baixo. Sentiu o calor ameaçando queimar seu peito, a escuridão tentando absorvê-lo. As demais pessoas presentes na reunião estavam atordoadas demais com aquela aura de medo e sombras para questionar o que acabara de acontecer, de forma que a velha e seu ajudante puderam partir sem serem incomodados. Kenta seguiu atrás deles, logo depois de pegar um longo cajado de madeira que poderia servir como uma lança improvisada.

            Durante a viagem, o grande canino voltou a ficar branco, tão pálido quanto a neve, e quase não era possível sentir seu peso ou qualquer calor vindo dele. Por outro lado, a sacerdotisa parecia muito cansada e passou a maior parte do tempo dormindo sobre as costas largas de seu taciturno ajudante. À distância, parecia um pai carregando a filha  pequena e frágil nas costas através de uma estrada coberta de neve. O vento trazia um frio cortante, que penetrava fundo na carne, e Kenta só podia contar com um manto de peles sobre suas roupas. Tentava se distrair pensando na presa negra. Aquela era a sua chance de se redimir, mas não apenas isso. Ele sentia que aquilo pendurado em seu pescoço chamava por ele. Quando fechava os olhos, podia sentir o longo dente pontudo como uma presença sutil embrenhando-se no fundo de seu peito. Aquela sensação era um pouco como o sentimento de saudade de algo que se fora há muito tempo, mas ao mesmo tempo era inquietante, como uma mancha persistente que se podia ver com o canto do olho, mas nunca de frente.

            Pelos próximos dias, Kenta acompanhou a velha sacerdotisa na preparação de cerimônias e nas rezas. Ele não entendia a necessidade daqueles rituais e não obteve resposta quando perguntou sobre o seu papel naquilo tudo. Mas ele observou aquela pequena senhora gastar toda a energia que lhe restava naqueles dois dias. Ela parecia cada vez mais fraca, seu cabelo assumiu um tom mais próximo da neve, tornando-se ainda mais frágil e quebradiço, e suas rugas pareciam mais profundas. Às vezes ela deixava escapar uma careta de dor ou apoiava as mãos na cintura e soltava um suspiro, que era o sinal para seu ajudante substituí-la no ritual. Na manhã do terceiro dia a cerimônia chegou ao fim. Kenta sentia-se cansado por duas noites mal dormidas, mas sabia que o desgaste era ainda maior na velha sacerdotisa, que só se mantinha de pé porque seu ajudante a segurava pelos ombros. Na entrada do templo, ela apontou para uma lanterna de óleo sobre uma mesa de pedra e em seguida na direção da montanha.

            – Pegue isso e suba a montanha. Siga a trilha entre as árvores até encontrar a Pedra Guardiã. Ela protege a entrada da prisão do espírito sombrio. Use o dente para libertá-lo.

            A velha sacerdotisa perdeu a consciência antes que Kenta tivesse tempo de fazer perguntas. Foi prontamente carregada para dentro do templo por seu ajudante e ele foi deixado ali, com as roupas brancas cerimoniais a lanterna e a lança improvisada. Apesar da neve chegar aos seus joelhos, encontrou a trilha com facilidade e iniciou a subida com passos lentos, mas firmes.

            Enquanto subia, Kenta sentiu a inquietude pressionando seu peito. Ele apertou com a mão a presa, que mantinha no colar sob as vestes, e a sentiu fria. Um vento gelado soprava contra a montanha, derrubando neve dos galhos das árvores sobre a sua cabeça. Apesar da cobertura de nuvens cinzentas, a claridade do dia permitia enxergar longe, de forma que depois de subir quase um quilômetro, Kenta já podia ver a Pedra Guardiã. Era um enorme bloco de rocha sólida de cor avermelhada, com um formato que lembrava vagamente o rosto de um tengu, um espírito que nas lendas tinha nariz fino e comprido e dois olhos redondos esbugalhados. Do ângulo em que estava, o rosto do tengu parecia um sorriso sarcástico.

            Chegando mais perto, a pedra perdeu a semelhança com um rosto. Parecia apenas uma grande rocha pontuda e vermelha. Ao seu redor estava amarrada uma grossa corda onde se prendiam pequenas placas de madeira, com inscrições incompreensíveis. Dando a volta por trás da rocha, Kenta encontrou uma abertura estreita na montanha. Era larga o suficiente para permitir a passagem de um homem e quase tão alta quanto a rocha que a escondia, que tinha quase cinco metros de altura. A caverna no interior era bem mais larga que a entrada e não havia nenhum sinal de animais habitando aquele lugar. Uma brisa fria soprava de dentro, produzindo um uivo baixo, profundo e ressonante.

            Carregando a lanterna à sua frente, Kenta caminhou para dentro da caverna. Estava escuro e frio e ele podia sentir o cheiro do musgo que crescia nas paredes e um outro odor mais doce e enjoativo. À medida que caminhava, estranhos sons ecoavam ao seu redor, juntando-se aos ecos de seus próprios passos. Ele sentiu a presa ficar mais pesado e, ao tocá-la com a mão, sentiu calor. Kenta desconfiava que o canino havia voltado a ficar totalmente negro. Mantendo a palma da mão fechada firmemente sobre a jóia obsidiana, sentiu seu próprio sangue pulsar através dos dedos.

            Depois de algum tempo caminhando em direção à escuridão da caverna, Kenta ficou sem fôlego e parou para descansar. Quase como em resposta, a brisa aumentou bruscamente de intensidade e a escuridão começou a lançar uivos ferozes e cada vez mais altos. O peso do canino negro parecia deixá-lo ainda mais cansado, puxando-o com mais força para baixo, até que não teve escolha senão se curvar e ajoelhar no chão. Kenta sentiu a bile subir por sua ganganta, seus olhos ardiam e lacrimejavam com o vento gelado e cortante, que ameaçava apagar o fogo da lanterna. Aos uivos se juntou um rosnado rouco e intenso, que pareceu fazer o chão tremer. Paralisado pelo cansaço e pelo medo, Kenta tentou se mover, lutando contra o peso absurdo da jóia em sua mão. Sentia seus joelhos presos ao chão e suas costas arqueadas até o ponto de causar dor.

            Com a outra mão, Kenta tentou alcançar a lança de madeira, que rolara a alguns passos de distância, mas subitamente seu olhar foi atraído para um ponto mais à frente. A escuridão parecia condensada, quase tangível. Ele quase podia distinguir um par de olhos e apêndices que pareciam braços compridos e delgados se movendo em uma dança alucinada. A escuridão emitia uma presença poderosa, como a de uma fera ameaçadora e insaciável que se preparava para dar o bote. Kenta sentiu o calor de seu corpo se esvaindo e seu fôlego sendo sugado pelo espírito de sombras. Uma força irresistível pressionava suas costelas, quase a ponto de quebrá-las. Em sua mão, a presa negra parecia uma brasa viva e pesava mais que todo o seu corpo, mas ele não conseguia nem mesmo abrir os dedos para largá-la. Ele ouviu um gemido carregado de angústia, que reconheceu vir de sua própria voz. Talvez eu esteja louco. Talvez estivesse mesmo louco. O vento na caverna parecia carregar sussurros, risos e lamentos.

            Quando estava a ponto de se entregar ao conforto da insanidade ou da morte, Kenta chocou sua cabeça contra o chão duro da caverna em uma tentativa desesperada de clarear seus pensamentos. A dor o fez gritar e tombar no chão, rolando de lado. Ele sentiu os dedos afrouxarem e, reunindo todas as suas forças, bateu violentamente a mão presa ao canino negro contra o chão, ignorando a dor pungente de pele se rasgando e ossos sendo partidos. Quando terminou, sua mão estava coberta de sangue e alguns dedos pareciam fazer ângulos estranhos. Ele procurou pelo canino e o encontrou no chão quebrado em vários pedaços sangrentos, junto a um pedaço do cordão vermelho. A ventania se acalmou e voltou a ser apenas uma brisa, levando embora suas vozes e uivos. A massa de escuridão também não existia mais. Aquela presença opressiva que comprimia suas costelas desaparecera completamente, restando apenas a dor física bastante palpável da mão quebrada e a sensação lúcida de resfolgar ao acordar de um pesadelo.

            Na manhã do dia seguinte Kenta retornou cambaleando ao templo no sopé da montanha. As vestes brancas estavam rasgadas e sujas de musgos, lama e sangue. Após chegar totalmente exaurido, em estado febril e com a mão quebrada inchada como um enorme caqui arroxeado, levou uma semana e meia para se recuperar. A sacerdotisa lhe fez muitas perguntas e pediu várias vezes que contasse o que se passara na caverna. Ela mesma tinha mais perguntas do que respostas para dar. Por fim, Kenta resolveu retornar à aldeia quando as nuvens voltaram a ficar brancas.

            Quando se aproximava pela estrada, Kenta avistou uma concentração de pessoas se agitando no centro da aldeia. Temendo pelo pior, correu até atravessar os campos de arroz, e parou ao ver um boi sendo liberado do peso de enormes sacos de algodão. Do lado do boi viu os dois sobrinhos de Goro, que mal o reconheceram. O mais velho foi o primeiro a saudá-lo:

            – Veja lá, saindo do arrozal. Não é Kenta, o soldado?

            – Não, meu caro irmão. É Kenta, o ferido. – respondeu o mais novo, apontando para a mão enfaixada.

            – Pois parece mais, Kenta, o atrasado. – brincou o mais velho –  Venha logo se quiser a sua parte das roupas e alimentos!

            Kenta suspirou aliviado, juntou-se aos aldeões e ajudou-os a separar e carregar os sacos para dentro das casas. Além da ajuda bem vinda, os sobrinhos de Goro também traziam notícias de que há pouco mais de uma semana lorde Sakamoto decidira abrir as portas de seu castelo para recrutar e treinar soldados para uma nova campanha contra seu rival. Eles achavam que Kenta receberia a notícia com excitação, mas sua reação foi apenas de interesse cortês. Para ele, os dias de soldado haviam terminado. O canino negro deixou-lhe uma marca profunda em sua mão torta e rígida, mas ele sentia-se redimido.


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