Lágrimas De Um Gatinho escrita por Tatymoriam


Capítulo 1
Na janela


Notas iniciais do capítulo

Este capítulo é inteiramente do ponto de vista do ratinho.



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Estou na janela.

Não sei o que me levou a estar aqui, nesta exata janela, que está nesta rua, nesta noite. Não sei o que passa no fundo do meu peito, que doi. Um dor sem sentir, uma dor ilógica, já que machucado algum há aqui. Talvez tenha um, mas eu não sou capaz de ver. Talvez ninguém seja capaz de ver.

Sou somente um ratinho.

Um ratinho sozinho, com frio, na chuva, em uma janela, de um casa. Em uma janela de uma sala, que há uma mesinha, bem no centro dela, com várias coisinhas para comer. Parecem deliciosas.

Não sinto vontade de me jogar desperadamente no lixo para comer, não sinto vontade de abrir a boca para o céu e tomar da água desta chuva, não possuo a menor vontade de tentar pegar aquela migalha que há naquela mesinha para só fazer meu estômago pedir por mais. Aquele mais de um ratinho que não come quase a vida toda.

Não sei dizer porquê. Eu olho para janela, há um gato. Um gato preto, com pelos brilhantes, robusto, forte e saudável. Tem sua comida, uma cama quentinha, perto da lareira. Está frio, muito frio, mas perto do fogo, ele só sente o quão bom é viver. Eu queria saber como é viver.

Pois eu nunca vivi de verdade.

Nunca tive ninguém, nunca pensei em ter alguém, em nenhuma parte da minha vida alguém me teve, talvez só minha mãe.

Minha mãe, uma ratazana acabada, mas grande e forte, ela era tudo que e tinha. Mas não sinto vontade de chamá-la de mãe, ela me abandonou. Não sei porquê. Um dia disse que não tinha o que me dar para comer que eu deveria sair e me virar, que ela não precisava dar satisfações para gente.

A gente. Meus irmãos.

Nos ajudamos por um tempo. Não sabemos como, talvez fosse algo natural, nós sobrevivemos, não todos. Alguns já morreram, estraçalhados entre os dentes de algum cachorro, gato. Não é difícil isso acontecer. Atropelados pelos carros dos seres humanos. Esses também, adoram nos matar.

Enquanto tentamos desesperadamente matar nossa fome, enquanto sofremos com frio, só, acabados e maltratatos, tentando pegar uma migalhinha se quer, eles nos matam. As vezes deixam a gente comer. Veneno. Nos enganam, nos dizimam, um a um.

E já não há escapatória, tudo que eu consigo sentir é um calor no meio do meu peito. Minhas patinhas no vidro gelado desta janela, meus dedinhos se fecham num punho. Minha cabeça encosta na janela, eu fecho meus olhos. Não há como fugir. Não tem para onde fugir. Talvez não tenha nem do que fugir. Não há solução.

Não há mais nada de minhas soluções da qual posso recorrer, e já não há mais, pessoas sábias para que de suas conclusões eu possa implorar. Meus irmãos, se foram. Um a um, eles me abandonaram, assim como minha mãe. Não sei onde ela está, não quero saber.

Só queria um abraço, dedos passando pela minha cabeça, em frente uma lareira, com toda a comida e água que eu pudesse e alguém para me abraçar. O principal.

Que era tudo que aquele gato ali tinha.

Ele me observava.

Quando eu olhei, lá estava ele. Erguido, me olhando com seus olhos felinos, verdes. Verdes eu posso ver, seus olhos de fenda, me encarando, enquanto aquela menininha, está toda entretida passando os dedinhos em sua cabeça.

Não sei explicar, o que eu senti. Sentir um fogo maior acender dentro de mim, meus olhos se estreitaram, as minhas patinhas se fecharam com mais força. O que será que ele me faria?

Ele, me pegaria com os dentes e me mastigaria, enquanto eu agonizo desesperadamente? Me bateria, me machucaria.. me mataria.

Não desgosto totalmente deste fim. Morrer. Talvez seja minha única saída, talvez seja minha única solução, não consigo pensar em mais nenhuma. Não há ninguém para me dar mais alguma.

Naquele momento tudo que eu senti, foi que eu queria apertar aquele gato contra meus dedos, eu queria que ele fosse eu. Eu queria morder seus pescoço e ver ele agonizando, queria ver seu sangue no chão, até imaginei como deve ser a carne de um gato. Eu tinha ódio.

Eu tinha ódio de quem tinha tudo. Eu tinha ódio de quem podia. Eu tinha ódio de quem era feliz. Eu tinha todo esse ódio. Eu tinha ódio da situação dele, enquanto ele está, com amor, com carinho, com tudo. Eu tinha esse ódio, pois eu era alguém que não tinha nada. Melhor, eu era um ninguém, que sobrevivia para ninguém. Não era culpa dele é claro, não nasceu rato, nasceu gato.

Mas eu sabia que nem todo gato tinha um teto. Mas eu sabia que todo gato matava um rato. Havia gatos que não matavam, mas todos que eu conheci matavam. Esse não é diferente, minha sorte não pode ser mudada, nada nesta vida faz sentido, tenho uma vida da qual não sei viver, só sobreviver. Não quero essa vida, quero dar minha vida a alguém que saiba usá-la melhor do que eu. Quero abandonar todo esse nada que eu tenho, toda essa incrível "dádiva" que me foi concedida pela minha mãe. Eu não deveria estar aqui, chorando para a janela, de tanto ódio.

Escutei um latido. Eu não me mexi, não me assustei. Talvez esse latido venha de um cachorro alto, forte, e que se sente o tal. Sim, um cachorro que vai pular nessa janela, me pegar com os dentes e acabar com essa tão penosa vida que me foi entregue, essa vida pela qual eu não pedi.

A chuva ficou mais forte. Caia em mim e mal conseguia manter meus olhos abertos. Eu ouvia a correria na chuva, a água espirrando, ele vinha me pegar. Minha vida ia se acabar, finalmente. Esta ideia, me era a melhor do mundo.

Mas aquele gato pulou, de sua confortável caminha. Ele correu, assustando a pequena menininha, ele pulou na janela. Ele estava do outro lado. Eu estava deste lado. Eu não corri da janela, vi um gato preto, maior do que eu, com os longos pelos brilhantes, bonito, com aqueles olhos verde me encarando.

Ele encostou a pata dele, na janela. Ele colocou a pata dele, na região onde ela poderia ficar do lado oposto da minha patinha. A patinha dele e a minha de algum modo estava, conectadas. Olhei para os olhos dele, ele olhava para os meus.

Meus vazios olhos negros, totalmente negros, sem vida, sem emoção. Ele encostou o focinho dele onde eu tinha encostado minha cabeça a um tempo atraz para chorar. Eu imitei. O latido lá fora estava do meu lado, o cachorro pulava do lado de fora.

Não sei o que há com esse gatinho, ele me observava. A pata do cachorro conseguiu raspar, no lugar onde eu estava, uma hora ele ia me pegar, eu ia partir, deixar o gatinho sozinho.

Gatinho, você nunca está sozinho, não é mesmo?

Você, sempre tem uma menininha para te fazer carinho certo? Sempre teve uma caminha, carinho, comidinha e água, não é verdade? Você nunca esteve sozinho, nunca vai saber o que é estar sozinho. Gatinho, você não me entende.

Do mesmo modo que eu não te entendo.

O Gatinho pulou da janela. Correu de lá para cá, subindo no sofá, descendo, subindo na mesa. O cachorro latia, muito, pulava e tentava me pegar. Eu só observava o gatinho. A marca da respiração dele ainda estava lá.

Não sei porque, não sinto ódio, não sito um fogo, só sinto um gelo. Uma dor que pressiona meu pequeno e imundo coração entre meus próprios dedos, um gelo na minha barriga que eu não consigo compreender. A morte se aproxima, eu sinto isso. A morte está aqui do meu lado.

Minhas duas patinhas abertas contra a janela, lágrimas, estas que eu não sei de onde chegaram, começam a cair. O Gatinho some daquele cômodo. Como todo mundo, ele me abandonou, como todos outros.

Mas o Gatinho nunca me teve. Aquele Gatinho, jamais me terá, não me compreende e em nenhum dia virá a me compreender.

Mas eu ouvi passos na chuva, leves, mas desesperados. Eu ouvi uma menininha gritando, o som escapando pela janela. Eu vi um gato preto, todo molhando, cansado pela correria da qual não está acostumado, eu vi o me pegar rapidamente pela boca e pular apressado. Eu ouvi um cão, latindo, muito perto para nos pegar.

Um medo brutal tomava conta de mim. Eu não estava sendo mastigado, não estava sendo torturado, não sentia dor, não sabia o que eu sentia. Medo, felicidade, angústia, desespero. Eu não sabia, só que aquele Gatinho não me abandonou.

Eu sabia que, ele não tinha nada a ganhar com isso. Eu sabia que, tudo que ele ia conseguir era sair molhando, cansado, com uma bronca. Todos sabem que gatos não gostam de água, da chuva, de cães. Gato nenhum se jogaria numa janela para pegar um rato, arriscar sua vida que poderia ser pega por um cão.

Eu me sinto tão arrependido. Tão arrependido por sentir raiva deste Gatinho. Sentir raiva de um bichinho que não tinha culpa da minha situação, e por este motivo eu chorei.

Não chorei por mim, não pelos meus falecidos irmãos, para ninguém. Chorei pois eu estava arrependido de ter julgado aquele amiguinho. Era uma dor sem cabimento, uma dor que eu nunca senti antes. Era uma lágrima que jamais derramei, para alguém em toda minha vida, em toda minha sobrevivência.

Ele tentou pular. Pular para se salvar, em algum lugar que eu não podia ver. Ele tentou entrar. Aqueles humanos não queriam deixar ele entrar. Eles o abandonaram agora que tanto precisa deles. Eles o deixaram. Eu podia sentir suas perninhas tremerem, sentir sua boquinha se abrir, o impacto do meu corpo contra o chão. Quando eu olhei para cima, podia ver um lágrima em meio o sorriso, eu podia sentir.

"Não posso deixar você partir sozinho."

Pois ele sempre esteve lá.

Eu sempre estive naquela janela, nos dias chuvosos, me escondendo, olhando para ele sendo feliz daquele jeito. Nunca me passou pela cabeça que ele não se sentia parte de uma família. Recebia ordens, ele não era família, era um objeto de diversão.

Era assim que os humanos faziam. Quando eles não querem mais um bichinho, eles jogam fora. Pois você vive no mundo do inimigo. Vivendo no mundo do mais forte, os fracos não podem viver neste mundo.

E nós somos fracos. Nós não temos esse direito.

Mas a vida dele era alguma coisa para ele, mas a minha não era nada para mim.

Eu levei minhas patinhas ao focinho dele. Num breve sussuro eu parti, eu escutei um miado ao longe. Ele não tem coragem de me seguir, pois é covarde. Uma covardia que agradeci aos céus por ele ter. Agora eu sei que a pessoa que eu sempre odiei, sempre foi tão sozinha quanto eu. Não tenho o que perdoa-lo, ele nunca me fez mal, pelo contrário.

Sempre esteve lá, quando eu estava na janela. Sempre me fez compania.

Nem todos os gatos são ruins, nem todas as pessoas são boas.

Eu passei pelo cão raivoso e chamei sua atenção. Ele esqueceu do gato, me perseguiu. E quando eu não vi mais saídas, vi o gato ao longe, me olhando, miando.

Eu pedi silêncio.

Aquele cachorro tinha me pego, e eu agreci.

Agradeci por saber que no final das contas, eu morri e tinha alguém ali para chorar por mim.

Eu descobri que, eu nunca estive sozinho. E para mim, esse foi o melhor presente do mundo.

Eu amei aquele gatinho.

Aquele gatinho me amou.


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Notas finais do capítulo

Eu tenho problemas.
É essa a verdade.
Senti vontade.
Escrevi.
Desculpa a inutilidade.



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