Por que? Que raiva! Ela não podia me ver. Ninguém podia me ver, mas, por que ela? Não parava de me perguntar. Estava na casa de veraneio dos meus pais, era um pouco afastada de Londres, mas pela beleza da natureza era um lugar a ser apreciado. 

A casa, era na verdade uma pequena mansão, desde da morte dos meus pais ela foi esquecida aqui, abandonada, sozinha, deixada para apodrecer, mas de certa forma, ela foi um sobrevivente, igual a mim. Sua faixada, tirando por algumas manchas, estava quase intacta, mas o seu interior foi o que estava mais prejudicado, devido as diversas tempestades de invernos, as janelas foram empurradas pelos ventos e os resíduos do exterior começaram a entrar, poucos quartos se salvaram.

 Fora da casa, a grama já estava imensa, quase na altura dos joelhos, indo para a parte de trás da casa a grama ia acabando para dar lugar a uma viscosa lama, apesar da sujeira, era ali que se encontrava a verdadeira beleza daquele lugar, aos pés da lama nascia um lago. O lago era imenso, e nele de algum jeito, a alegria e a tristeza se misturavam. No final daquele esplendor, uma floresta densa se alastrava, pulsando vida.

Dentro da casa, eu estava num dos poucos cômodos restantes, a biblioteca. Ela não era muito grande, não possuía janelas, a iluminação era quase breu, mas era um bom lugar para pensar. Sebastian sabia dessa minha urgente necessidade, então o silêncio era mortal.

Meus pensamentos gritavam dentro de mim, já tinha perdido a noção do tempo, mas como estava no mundo humano, a lentidão que o tempo passava me enlouquecia ainda mais, não sabia o que estava esperando e os meus pensamentos estavam me deixando cada vez mais louco.

Lizzy, ela tinha que me esquecer, ela precisava me esquecer. Sua preocupação comigo naquele momento que a vi me abalou de certa forma, ela era o único resquício que me sobrara daquele tempo, o tempo em que eu era feliz. Eu estava morto, morto por dentro, sentia que era assim que eu queria ficar, seria tudo muito mais fácil se o Sebastian tivesse devorado minha alma, era o que eu merecia... 

Pensei na imagem de Lizzy chorando no meu túmulo. Essa imagem, minha imaginação, meus pensamentos, por que que eles me abalavam se eu estava morto? A raiva cresceu dentro de mim, mortos não deveriam sentir. O sangue desse corpo de demonio foi áspero pelas minhas veias. Dor, minha velha conhecida, as vezes adormecida, ela nunca me deixou. Qual o sentido deu estar aqui, nesse mundo? Ele não precisa mais de mim.

A porta da biblioteca rangeu, os passos foram se aproximando.

-Meu Lorde.- Disse Sebastian enquanto fazia uma simples reverência.

-Sim, Sebastian.

-Trouxe o seu chá da tarde.- Não o respondi, ele simplesmente veio e colocou o chá sobre a mesinha do lado da poltrona em que eu me encontrava. Eu ainda tinha o meu velho hábito do chá, apesar de não precisar mais consumir comida humana, estranhamente, a comida ainda tinha gosto para mim. 

Eu lembro, que um pouco depois da minha ascensão como demonio, Sebastian veio falar comigo sobre devorar almas, eu não queria ser como ele, e nunca servirei ninguém, pelo menos nunca mais. Então, eu não pretendia fazer um contrato com ninguém, e muito menos começar a devorar almas, já basta eu ver o meu próprio sofrimento.

-Meu Lorde, se me permite, eu tenho uma pergunta a fazer.- Eu assenti com a cabeça.-O que o jovem mestre pretende fazer sobre a senhorita Elizabeth?

-Sebastian... O que os demonios tem para fazer nesse estúpido mundo?

-Os demonios ficam nesse mundo fazendo contratos para devorarem almas. Pelo menos, quase todos os demonios.-Disse com a sua voz impecável me encarando na última parte.

-Almas, só isso que os demonios pensam? Almas?

-Quando se tem uma vida eterna pela frente..., o que o jovem mestre gostaria que pensássemos?- Fiquei encarando a xícara com o chá intocado a meu lado.

-Que horas são?- Perguntei ao Sebastian, mudando de assunto.

-São cinco horas e dois minutos. A senhorita Elizabeth deverá chegar apenas amanha a noite, ainda temos bastante tempo para pensar o que fazer.

-A questão é essa, Sebastian, odeio isso mas eu não sei. Eu não sei o porque que estou aqui, não sei para onde eu vou, nem o que eu passaria a eternidade fazendo. A única conclusão que tirei é que estou morto, para mim e para o mundo.

-Não para a Lizzy.- Encarei meu chá novamente após estas palavras de Sebastian. 

-Só sei de uma coisa, ela deverá e vai ser a primeira e última pessoa a saber da minha existência.

-Jovem mestre, Eu sei que o jovem mestre sabe, que com a Elizabeth sabendo que você continua vivo que ela nunca irá o deixar, ela nunca o irá esquecer ,então mesmo assim, você aceitará ela sabendo da sua existência? 

-O que você está insinuando? Sebastian. Quer que eu a mate? é isso?

-Não, jovem mestre. Eu apenas considero a Senhorita Elizabeth um problema, além de ser uma perturbação a sua privacidade, ela é o seu ponto fraco.

-Nesse mundo apodrecido, pelo menos eu teria alguém por perto que não iria querer devorar a minha alma.- Falei sarcasticamente.

-Então, meu Lorde, você não se importa com a falta de privacidade que a sua vida irá ter se ela continuar a te ver?

-Eu não disse isso, também não gosto dessa ideia. Mas não gosto de ve-la triste...- A última parte da minha frase foi quase inaudível, tanto que ouvidos humanos nunca teriam sido capaz de ouvi-las. Sebastian fez um leve sorriso com o canto da boca.

-Pretenderá ficar aqui, então?

-Por enquanto.

Sebastian se curvou e foi lentamente saindo do quarto. O tempo foi perdido de novo, o único som era dos meus gritos internos novamente.

O breu da sala parecia se transformar em fantasmas do meu passado, e pareciam que lentamente iam ganhando forma, fechei os olhos, não queria reviver isso, essas memórias, são elas que nos destroem. Eu já fui corrompido, era como uma grande ferida aberta no coração, como se já não bastasse essa imensa dor, parecia que alguém vinha e colocava cimento na ferida, e ele ia entrando profundamente em cada veia, te paralisando, te matando, mas no meio disso tudo você, sua alma, está lá, viva, sofrendo. 

Eu gritei, mas dessa vez um grito real, tão cortante como uma navalha, como se a minha alma pudesse se separar do meu corpo. As sombras, trapaceiras, me enganaram novamente, como sempre, me fazendo abrir os olhos e ver o que eu não queria. Vi Lizzy morta, pendurada por uma corda, ao seu lado, na mesma situação, estavam meus pais. A única coisa que diferenciava era a posição dos corpos na corda, meus pais estavam presos pelas mãos, e a Lizzy pelo pescoço.

Ao fim do meu grito, percebi que eu não era a única coisa que estava tremendo, estava tendo um terremoto, outro, que nem aquele que eu presenciei quando fui para o mundo dos demonios, mas parecia mais forte. Eu achava que esses tremores só aconteciam no outro mundo, mas pelo visto estava errado.

As prateleiras começaram a balançar, vários livros caíram, eu sabia que eu era um demonio mas eu instintivamente me abaixei e me encolhi na poltrona. Pouco a pouco os livros pararam de cair, e a terra parou de tremer.

Quando levantei minha cabeça percebi que Sebastian estava imóvel ao meu lado, me protegendo da queda iminente de livros que acontecera. 

Sebastian encarava o nada, mas a sua expressão estava séria, mais do que o normal.

-O que está acontecendo Sebastian?

-Aconteceu que houve um terremoto, jovem mestre.- Ele falou mudando sua expressão para um sorriso.

-Nunca teve terremotos assim na Inglaterra.

-Ninguém pode controlar a natureza.- Eles fez um sorriso de canto de boca e saiu lentamente da biblioteca, me deixando novamente com os meus fantasmas.