Lembranças de Uma tarde em Nova York escrita por Kaleidoscopio


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

POV do Paul McCartney.



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Existem dias em que não te importas se tu vais se molhar ao sair na chuva quando saires do trabalho ou se tua mulher vai brigar contigo porque perdeste o emprego porque tu estás feliz, extremamente feliz, completamente... Feliz. Não feliz como te sentes quando ganhas um carro ou qualquer coisa material que tu ansiavas a muito, mas tão feliz quanto alguém que acabou de casar-se ou de ganhar um filho. E tal sensação é tão boa que queres gritar aos quatro ventos o motivo para tanta felicidade e aproveitá-la até o último minuto de teus dias.

Mas existem motivos que, mesmo querendo gritar a todos, não se pode confiá-los a todos. Não que sintas vergonha deles, afinal, algo que te faz feliz há de envergonhar-te? Não. Mas porque, de um jeito ou de outro, tal motivo te incrimina de um crime imperdoável.

E creio que eu me encaixo perfeitamente nesta categoria.

Perdoe-me, padre, porque eu pequei...

Mas não me arrependo nem um pouco. Pelo contrário, tal pecado faz-me encher o peito de orgulho, mesmo que involuntariamente, faz-me sentir-me um adolescente preso à primeira paixão, faz-me sorrir maliciosamente para o nada e imaginar, com certa satisfação, o amante completamente despido à minha frente, à minha mercê... E eu, à dele.

Foi numa típica tarde de verão em que um amigo de longa data e antigo parceiro, John Lennon, ligou-me, convidou-me a ir ao apartamento dele, a sair por aí junto com ele, vagabundeando pelos cantos. Nada demais.

Mas às vezes nada pode significar tudo para alguém. E foi esse espírito de coisa natural dado ao convite que me fez aceitar sem hesitação. Andava cansado, estressado e com saudades dos tempos em que tinha a companhia de John em tempo integral. Era só uma tarde, mas quem disse que é preciso muito tempo para lembrar-se, pelo menos um pouco, dos tempos de rebelde? Não, uma tarde bastava. Seria uma pequena e bela eternidade.

Saí às uma hora da tarde, cheguei às uma e vinte e cinco. Fui prontamente recebido por John, que me esperava na recepção.
Melhor assim, pensei. Sem enrolações, sobraria mais tempo para nós.

Fomos caminhando por aí, ora falando de coisas banais, ora indo a assuntos mais sérios como política. John, como sabes, já havia escrito “Imagine” e “Working Class Hero”. Mudara e amadurecera muito desde os tempos em que nos conhecemos, tornara-se mais politizado, mais consciente de si e do mundo em que vivia. Sabia julgar, sabia escolher bem as palavras para defender seu ponto de vista, estando bem diferente também daquele John Lennon inseguro consigo e com as palavras que se apresentara à imprensa para explicar sobre incidente em 1966. Enfim, havia mudado radicalmente, sem perder aquele humor ácido e aquele sorriso que lhe era típico. E esse novo John atraía-me com mais intensidade do que o antigo.

Andamos por mais de duas horas nas ruas de Nova Iorque, entrando e saindo de lojas, atendendo aos fãs que iam aparecendo no caminho a pedir autógrafos, fotos ou um aperto de Mao, a tagarelar alegre e distraidamente. Os tempos de banda apareciam freqüentemente na conversa, e falávamos deles como um piloto de fórmula um fala de seu novo carro, com orgulho e carinho. “Sim, esse carro é a máquina mais potente em que os olhos humanos já pousaram!” Diz o piloto, todo orgulhoso e cheio de si. “Não há piloto que vença de mim!”
Falávamos até das brigas, das insatisfações, da rivalidade, do ódio. Com bom humor, mas também com certa sem-gracisse, como o mesmo piloto fala de uma derrota a muito esquecida.
“Sim, perdi daquela vez...” admite, sem graça. E logo completa: “Mas qual piloto nunca perdeu uma corrida, não é?”

Assim que achamos um banco vazio num lugar tranqüilo e ao ar livre, nos sentamos e deixamos nossas pernas descansarem por um tempo, pois, afinal, até que elas mereciam. Deixamos também nossas cordas vocais repousarem depois de tanto falar e discursar, deixando no ar apenas o silêncio. John ficou a admirar a paisagem tranqüila que se exibia em nossa frente. Já eu, preferi admirar ele mesmo.

Fitei seus olhos de coruja, que teimavam em esconder-se na armação arredondada que repousava em sua face. Estavam lindos iluminados pela luz serena de um sol de fim de tarde, assim como sua pele, seus cabelos, seus gestos, seu falar. Quis mergulhar naqueles olhos, e não somente neles, mas em todo aquele corpo – nos seus lábios, nos seus braços, até chegar à sua alma. Quis tê-lo e ser tido. Quis beijar-lhe ali mesmo, naquela avenida movimentada, a ignorar os olhares de censura das pessoas que assistissem àquela cena. Mas não era tão destemido quanto queria ser e o quanto era necessário para tal ação, e acabei contentando-me em apenas pegar-lhe a mão. A mão direita, para ser mais exato. E passei a observar nossas mãos, nossos dedos e as alianças que ali dormiam tranqüilas.

“Linda...” murmurei melancólico para mim mesmo. Linda... e Yoko. Nossas esposas. Nossas amantes Embora nossa paixão fosse mais velha e mais duradoura que a paixão que tínhamos por elas, nós prometemos aos céus, ao nos casarmos, que iríamos ser fiéis uns aos outros. Talvez, no pensamento, fosse fácil sair correndo e fugir para bem longe e esquecê-las. Mas na alma... Na alma, na alma algo morreria. Não sei se por pena, se por carinho, ou se por, inconscientemente, amá-las; não importa. O problema é que machucaria tanto a nós quanto a elas. Mas, ainda sim, a idéia de adultério parecia cada vez mais sedutora...

Olhei para o céu, distraído. Já começava a escurecer...
“Precisamos ir!” Disse, de repente, como se a escuridão crescente tivesse de repente jogado um balde de água fria em mim e me fazendo despertar dos meus devaneios. “Está ficando tarde...”
“Como se isso fosse problema pra você!” Disse John, aborrecido.
“Mas Linda...” comecei eu, mas ele logo me interrompeu.
“Linda o quê?” Perguntou ele. E logo acrescentou, em tom de troça: “Linda não deixa você ficar fora de casa depois das seis? Ou ela não quer que o seu maridinho fique com medo do escuro?”
Murmurei um “engraçadinho”, aborrecido. Ele riu com gosto.
“Tudo bem então...” falou ele, levantando-se e ajeitando as roupas. Acompanhei-o e levantei também. E nós nos pusemos a caminhar de volta ao prédio de John.

A volta foi tranqüila. A brisa do início do anoitecer estava fresca, dando um aspecto agradável à caminhada. Íamos conversando alegremente, falando, na maior parte do tempo, sobre música. Uma hora ou outra um de nós apontava alguma mulher que nos chamara a atenção e lançávamos um para o outro um olhar malicioso, pondo a imaginação para trabalhar, imaginando o que fazer com tanta beleza, tanta formosura. Não falamos sobre nossas famílias. Não falamos sobre Sean, Julian, Mary, Stella ou Heather, nem sobre Linda e Yoko. Para falar a verdade, evitávamos falar sobre isso. Naquele momento, nós queríamos somente aproveitar a presença um do outro e jogar conversa fora, esquecendo, por pelo menos um minuto, das responsabilidades e dos problemas que tínhamos nas costas.

Quando estávamos a quatro quarteirões do prédio, John, deixando um espírito de garoto levado vir à tona, quis apostar corrida comigo. Claro que recusei o desafio rapidamente. Ora, vejam só! Dois quarentões correndo em plena Nova Iorque! Nossas pernas, nossos pulmões, enfim, nosso corpo não agüentaria, argumentei. Mas quem disse que ele me ouviu? Nada! Pois John Lennon pôs-se a correr o mais rápido que suas pernas permitiram, rindo loucamente e sorrindo o típico sorriso Lennon.

Não pude fazer nada a não ser segui-lo. Corri com certa dificuldade, pois há muito não fazia exercícios. Mas duzentos metros depois lá estava eu, correndo desajeitado, a tropeçar nas próprias pernas e desesperado para alcançar John, que ia mais rápido que a luz!
“Espere! Espere!” Gritava eu, tossindo e rindo e me desesperando ao mesmo tempo. Mas ele nem queria saber de ouvir-me. Que diabo!

Por fim, chegamos ao prédio, respiração ofegante, corpos fracos, mas rindo como loucos da brincadeira, um do outro e por fim de nós mesmos. Ficamos mais ou menos uns quatro minutos tentando recompor-se. Respiração normal e vestes arrumadas, entramos na recepção.

“Boa noite, senhor Lennon, senhor McCartney” disse a recepcionista.
Retribuímos a saudação com um aceno com a cabeça. John, que ia à frente, chamou o elevador.

Está uma noite agradável lá fora, não está?” Perguntou a recepcionista, tentando puxar assunto. Olhei para ela, sorri em simpatia a sua pessoa e confirmei com a cabeça. Sim, estava uma belíssima noite lá fora. Uma bela noite para amantes, eu diria...

Enquanto o elevador não chegava, tornei a analisar a figura da recepcionista. Tinha pele clara, olhos castanhos, belos, nariz e boca delicados. Tragava o uniforme do prédio. No crachá que estava preso em sua blusa estava seu nome, Carla. Carla, Carla... Que segredos trariam aquela jovem? Comecei a pensar com meus botões, tentando adivinhar algo sobre ela. Comecei a observar seus gestos, jeito de olhar e falar... Mas os pensamentos duraram pouco já que, infelizmente, o elevador chegara. Mas não era de todo mal, já que a veria novamente, pois eu iria descer depois.

Entrei no elevador junto de John. Este deu alguns passos à frente e apertou a tecla “12”. Décimo segundo andar, apartamento número trezentos e oitenta e dois era o nosso destino.

Não continuamos a conversa que tinha sido interrompida pelo desafio na metade do percurso. Mas, quando a tela que estava localizada em cima dos botões que determinavam os andares marcou quinto andar, começamos uma brincadeira idiota, boba, infantil de bater um no outro com socos e tapas não muito carregados de força... Mais uma vez, começamos a rir feito idiotas enquanto brincávamos de bater um no outro feito dois adolescentes de quinze anos. Sim... Eram risadas idiotas, porém essa era a beleza delas. Embora fossem idiotas, eram risadas de felicidade genuína em uma pequena eternidade de uma tarde inteira longe dos problemas acarretados na vida real... Sim. Eram belas aquelas risadas. Verdadeiramente belas. E foram as últimas risadas belas e verdadeiras que dei.

Tudo corria bem, idiotamente bem, até que...

“Até que o quê?” Você pergunta.

Pois bem, eu lhe respondo...

Tudo ia bem, idiotamente bem, até que John Ono Lennon, o cara que com quem mais briguei e me reconciliei na vida, me beijou.

Não, não foi um beijo belo, poético ou romântico. Muito pelo contrário! Foi um pouco rude... E desajeitado, diga-se de passagem. John pegou-me pelos braços num momento de desatenção minha, puxou-me para perto de si e roubou de mim o tal beijo. Durou um pouco mais que uns quinze segundos, penso eu... Mas não importa! Ele beijou-me, e é isso que realmente importa! E que fossem apenas quinze segundos nos relógios terrenos, pois, nos relógios do paraíso - e eu aposto a minha vida nisso - quinze segundos aqui fora tempo o suficiente para completar uma eternidade! Mas, de todo jeito, o beijo não poderia ter durado mais que os tais quinze segundos, já que as portas do elevador se abriram e anunciaram que havíamos chegado ao nosso destino: décimo segundo andar!

Quando John se afastou de mim, trazia o seu típico sorriso Lennon, misturado à satisfação e a boas pitadas de prazer, pregado aos seus lábios, que dizia “É, Paulie, eu sei que você queria isso. E eu sei que você gostou disso!” Naquele tom de deboche que só ele sabia fazer.

Se pensas que me irritei com tal brincadeira, se enganas, leitor. Pois, do mesmo jeito que John sorriu tal sorriso quando ao afastar dos nossos lábios, eu também o trazia comigo. E ria em cumplicidade.

John saiu do elevador rapidamente. Ajeitou os óculos, os cabelos e a vestimenta, que haviam se desarrumado pela violência e surpresa do ato que passara, virou-se para mim e disse, ainda com aquele sorriso Lennon nos lábios:
“Adeus Paulie”.
E foi-se.

Eu, ainda chocado por ter sido pego de surpresa pelo beijo, e meio avoado, não lhe retribuí o adeus. Não, ainda estava com a cabeça nas nuvens e distraído demais para pelo menos lhe acenar... Mas não fazia mal; outras oportunidades viriam.

Fiquei ali, junto à parede do elevador, por um bom tempo, ainda saboreando os últimos minutos que estive com John. Tinham sabor de morango... Um morango cujo sabor há de ser eternamente doce...

Enquanto isso, o elevador andava e desandava, subia e descia, indo a todos os andares e apartamentos que existiam no prédio. Milhares de milhões de bilhões de pessoas passaram por mim sem notar a minha presença. E eu fiquei lá, abobado, imbecil e sonhador, feito um jovem em seu primeiro amor... Como se eu não tivesse me apaixonado antes! E como se John já não tivesse me beijado antes! Não, nada disso era novo, mas mesmo assim, a sensação que persistia era a mesma que Betinho experimentara quando Capitu lhe dera o primeiro beijo...

O tempo foi passando, mais milhares de pessoas foram vindo e, junto delas, a necessidade de ir para casa. Permiti-me acordar por um tempo de meus devaneios e saí do elevador. Infelizmente, não era Carla que me esperava, mas um moço bem jovem, que aparentava uns vinte e poucos anos. Uma pena. Adoraria ver aquele corpo apertado no uniforme de trabalho novamente.

Chamei um táxi, dei-lhe meu endereço e cheguei em casa depois de vinte minutos. Quando entrei em meu quarto, troquei rapidamente de roupa e deitei-me junto com Linda, que já dormia há muito tempo. Dormi maravilhosamente bem, como não fazia há anos, e acabei até sonhando com os anjos! E, de longe, John observava tudo, com aquele sorriso Lennon pregado nos lábios...


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