Shamandice escrita por Prana Zala


Capítulo 5
Um copo para se afogar


Notas iniciais do capítulo

FELIZ 2013!!!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/269442/chapter/5

Um copo para se afogar

"Ainda queria que aquele copo tivesse profundidade o suficiente para se afogar..."

Era o terceiro copo de vodka que engolia numa virada. As pessoas ao seu redor aplaudiam sua força. Força? Bem, resistência seria uma palavra melhor. O balcão a sua frente mal tinha espaço para mais copos. Bebera tanto assim aquela noite? Por que ainda não perdera a consciência?

– Mais um copo... – pediu ele, murmurando.

– Garoto, não acha que já está bom...? – perguntou o barman, inclinando-se para o menino que tentava se embebedar.

– Estou pagando por quanto eu quiser beber... mais um!

Uns homens ao seu lado aplaudiram quando ele pegou o quarto copo de vodka e virou na boca de uma só vez. "Uma criança que bebia como homem", disseram. As pessoas eram mesmo incapazes de não opinarem sobre os outros, de não julgar seu caráter a partir de dados fáticos. Como as pessoas que o conheciam o estariam julgando agora? Provavelmente, quase todos não o viam com bons olhos.

– Hey, Barman, traz mais uma dessas para o garoto, por minha conta! – bradou um dos bêbedos que o acompanhavam no bar. Tudo tão surreal, tão ilógico, tão embriagado.

Ele ainda bebeu mais um, dois, três, dez copos de vodka pura. E nada da sua consciência adormecer! Nada o fazia esquecer aquilo que o fizera ir até lá para esquecer! Talvez devesse beber algo mais forte. Pegou o menu de bebidas para escolher sua próxima dose, algo que poderia, definitivamente, derrubá-lo.

Se lhe perguntassem, ele não saberia explicar como aquilo chegara àquele ponto. Gostaria de não ter se encontrado com Afrodite aquele determinado dia, de não o ter olhado nos olhos durante aquela fatídica confissão. O sueco tivera a coragem que ele próprio não tivera. E pior: confirmara o que ele mesmo vinha tentando convencer-se do contrário.

Quando viram Camus naquela tarde, Milo repetiu para si, como há tempos vinha fazendo, que o que sentia era apenas empatia, admiração, uma forte amizade; continuaria repetindo as mesmas palavras se Afrodite, naquela tarde, não tivesse suspirado um "e o pior é que eu também gosto dele". Não que ele tivesse esperança de esconder algo do melhor amigo, mas tinha esperança de o que sentia não ser amor.

Pensava, ali, tentando se afogar em vodka, o quanto mudara em menos de meio dia. Até a tarde da confissão, não admitia o que sentia; depois, tão logo constatara ser uma irreversível verdade, ao ouvir as palavras de Afrodite, decidiram jogar limpo para conquistar o francês; porém, à noite, apenas lutar por seu amor já não lhe parecia suficiente. Desde que aceitara seus sentimentos eles pareciam crescer mais e mais a cada instante. Inundavam seu peito e afogavam seu coração. Agora que os havia deixado transbordarem, sentia que nada podia detê-los.

Viu o gelo assentar-se no copo de whisky que acabara de pedir. Não queria perder Camus, de maneira alguma. Mas não acreditava ter chances se Afrodite, de fato, entrasse sério na jogada. Não teria como competir com ele, ninguém podia vencê-lo. O único jeito de Camus não se apaixonar por Afrodite seria se jamais se aproximasse de verdade dele...

Balançou a cabeça, afastando aquelas lembranças repugnantes. Ao pensar em Camus cedendo ao amor de Afordite, Milo sentira o peito sufocar. Naquela época, o aquariano era amigo apenas de Milo e mal reparara no sueco, mas o grego sabia que seria impossível mantê-los afastados se Afrodite estivesse tentando conquistá-lo. Camus teria que odiar profundamente o outro para nunca permitir tal aproximação, independente do quanto ele tentasse...

Sim, aquilo era enojante. Ele próprio sentia nojo de si. Se alguém o acusasse de fazer aquilo, ele negaria veementemente; se soubesse de alguém que tivesse feito aquilo, ele desprezaria profundamente a pessoa. No entanto, ele fizera aquilo...

Afrodite era seu melhor amigo de infância. Confiavam mais um no outro do que em qualquer outra pessoa. Tinham prometido sobreviverem juntos. Tinham sido o porto seguro um do outro até aquele momento... Embora amasse o sueco mais do que a qualquer outro amigo, amava Camus mais do que qualquer outra pessoa. Como poderia suportar perdê-lo? Podia suportar perder qualquer outro...

Foi com esse tipo de pensamento que ele tomou aquela decisão: jamais desistiria de Camus. Jamais dividiria aquele sorriso, aquele colo e aquele afeto, nem que tivesse que passar sobre os sentimentos da segunda pessoa que mais amava no mundo. E aproveitando-se de sua vantagem, fator crucial, começara a salientar todas as características de Afrodite para Camus, especialmente as que ele odiava. E, surpreendentemente, Camus mordeu a isca e acreditara em todos os exageros ditos por Milo. E, aquele dia de manhã, Milo fora capaz de ver o quanto conseguira fazer o aquariano desprezar o sueco.

Ele sempre soube o quão baixo o golpe era e que Afrodite ficaria extremamente magoado com aquilo. Ele só nunca imaginara o quanto afetaria o amigo. E o quanto o olhar traído do pisciniano iria feri-lo. Tinha valido a pena? Ok, conseguira fechar as portas para o rival, mas isso não era sinônimo de vitória. Camus não dera, até o momento, nenhum sinal de paixão, nem de algo além da amizade. E se tivesse afastado o único que conhecia por completo e por quem era conhecido e, ainda assim, acabasse sem Camus?

Culpa, culpa, culpa. Sentia-se culpado pela dor que causara ao outro. Ele não gostaria de estar em seu lugar. Sentira vontade de correr até o alojamento de Afrodite, jogar-se a seus pés e implorar por perdão. Sabia que nunca teria alguém como ele e que nunca confiaria tanto em alguém como nele; mas, por conhecer demais o sueco, sabia também que o perdão não viria tão facilmente. Provavelmente, para tal, teria que desistir de Camus e contar todas as podridões que fizera. Ponderara essa opção diversas vezes aquela tarde, inclinara-se para Afrodite, para esquecer o aquariano, mas, ao encontrá-lo pela segunda vez naquele dia, doeu-lhe menos a perda do que a simples possibilidade de perder Camus. E, além do mais, em menos de um dia, o Santuário inteiro já comentava do rompimento da amizade daqueles dois cavaleiros.

Para os outros cavaleiros e aprendizes, a relação de Milo e Afrodite sempre chamara a atenção e fora motivo de curiosidade. Não era comum dois aprendizes chegarem juntos e terem se conhecido durante a infância sendo de países diferentes. Acontecia, mas não era algo que se via com frequência. Afrodite ainda treinara na Groenlândia e Milo na Grécia, mas todos sabiam que eles passaram os dois anos de treinamento mantendo contato por cartas, outra coisa incomum. Ninguém sabia quem levava as cartas da Grécia para a Groenlândia e vice-versa. Havia até quem dissesse que eles chegaram a se encontrar na Grécia, escondidos, durante aquela época. "Ridículo", diriam uns, pois seria impossível o pisciniano despistar o mestre, visitar o amigo e voltar sem que ninguém desse por sua falta. Se bem que ele conseguia passar despercebido até por cavaleiros de ouro quando não queria que o vissem... Talvez ele tivesse um talento nato para ser espião. Ninguém sabia, ninguém podia ter certeza do que o garoto faria quando ficasse mais velho. Mas os amigos inseparáveis era frequente assunto nas rodas de bate-papo.

Porém, aquele dia... Todos perceberam que algo rompera entre eles. Passaram um pelo outro como se não se conhecessem, ou, quem sabe, como se muita mágoa os mantivesse afastados. Ninguém ouvira uma briga, uma palavra de confronto, um sinal de inimizade. Acontecera tão silenciosamente, tão sorrateiramente, mas tão visivelmente...

Quando Milo decidiu beber ele acabara de ouvir comentarem sobre o assunto. E Milo era, de acordo com as fofocas do mais alto clero da central solidária de informações do Santuário, o responsável pelo rompimento. Diziam que ele deveria ter feito algo imperdoável ao doce Afrodite, coitado, que era incapaz de machucar uma mosca...

E era, de fato. Era exatamente o que diziam. Milo puxara o tapete da única pessoa que estava sempre com a mão estendida para segurá-lo. E Afrodite era a pessoa amável e doce que todos pensavam; como os pais dele costumavam dizer, "alguém perfeito em corpo e gênio". Alguém que era tão especial que despertara o interesse do Grande Mestre em tê-lo como um dos nobres cavaleiros que protegiam a deusa Atena. Alguém que entraria na frente de um grupo de brutamontes somente para proteger um amigo ou um indefeso, que não se calava perante as injustiças e era sempre bondoso com todos. Alguém com o sorriso mais lindo do mundo...

... apagado agora pela fria traição. Culpa de Milo. E a culpa pesava tanto nos ombros do escorpiano que o levara a um bar com a esperança de esquecê-la. Tinha que esquecer. Tinha que seguir em frente, tinha que conquistar Camus sem remorso, tinha que fazer valer a pena aquela apunhalada certeira naquele coração gentil. Se tivesse sorte, morreria de coma alcoólico e poderia ficar feliz por saber que as duas pessoas que ele mais amava e que desejava que fossem felizes podiam ser felizes juntas. O que era impossível com ele estando vivo.

Sentia-se a pessoa mais desgraçada e miserável do mundo. Por que tiveram que se apaixonar pela mesma pessoa? Por que tivera ele que fazer primeiro amizade com o amado? Se tivesse sido Afrodite, tinha certeza que o outro não iria jogar tão sujo e talvez pudessem achar um meio de conciliar a amizade e o amor e viverem em paz, os três. Sentiu-se mais miserável ainda quando percebeu que, apesar de saber-se culpado, não se arrependia do que fizera. Era tão desgraçado que não conseguia nem sentir remorso por ter trapaceado?

Olhou para o líquido translúcido em seu copo. Seria tão bom se pudesse se afogar naquele líquido...

Não teria que ver as lágrimas da alma de Afrodite, não viveria para ser rejeitado pelo cara que amava, não seria discriminado por nutrir um amor homossexual e nem seria condenado pelos que viviam com ele no Santuário por ter apagado o brilho aconchegante do sueco. Aquele era, sem dúvida, um ótimo momento para desaparecer, enquanto tinha vencido a primeira luta pelo seu amor e ainda havia pessoas que gostavam dele.

Ah! Seria tão bom se pudesse se afogar naquele copo! Se fosse mais profundo...

– Hey, não acha que já passou dos limites? – perguntou-lhe um recém-chegado.

Ele não respondeu. Não podia responder para ele. Abaixou a cabeça, meio encabulado, meio zonzo. O mundo girava diante de si, mas tudo continuava estático em sua consciência.

Shaka suspirou. Não tinha jeito mesmo. Puxou o amigo para fora da cadeira e longe do balcão regado a álcool. Não entendia como um estabelecimento podia vender tanta bebida a um garoto. Tudo bem que Milo não parecia ter os 13 anos que carregava nas costas, mas não passava por mais de 16 de maneira alguma. Atirou dinheiro para o Barman e arrastou o grego para fora do bar.

Milo não resistiu. Deixou-se ser levado pelo amigo preocupado. Devia ser uma imagem patética a sua. Na certa o Grande Mestre reprovaria sua atitude, se ficasse sabendo. E Camus também... Mas nenhum deles ficaria sabendo, pois Shaka jamais contaria a qualquer um. Nunca contara, nunca contaria. O indiano podia ser muito "certinho", mas era fiel demais para delatar o melhor amigo. É claro que isso não o pouparia do sermão.

Pegaram um taxi até os arredores do Santuário. O corpo de Milo pesava e parecia responder a seus comandos atrasado. Apoiou a cabeça no ombro de Shaka e fechou os olhos, tentando descansar. O virginiano passou a mão em seus cabelos ondulados, carinhosamente. Não estava bravo, apenas estava preocupado. Milo sabia que tudo o que o amigo queria é que ele ficasse bem. Será que um dia acabaria ferindo-o como ferira Afrodite? Teria ele o dom para ferir aqueles que lhe eram caros? Se fosse para ferir Shaka e Camus também, seria melhor que tivesse realmente morrido afogado naquelas dezenas de copos de vodka, whisky e Martini.

– Hoje você vai dormir comigo, ok? – sussurrou o virginiano, mais para si do que para o amigo – Não posso deixá-lo sozinho nesse estado. Você também, hein? Só me deixa preocupado...

Milo, de olhos fechados ainda, sentiu o beijo carinhoso em sua testa. Tinha Shaka a seu lado ainda. Tudo ficaria bem.

Continua...


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Espero que tenha dado pra ver que esse capítulo é um flashback... O próximo já volta ao tempo "presente". Milo e Shaka na parada aí, gente! E MUITA coisa para rolar! No próximo capítulo, um segredo importante da vida dos dois amigos vem à tona e eles tomam uma improvável decisão, que mudará muito o relacionamento entre eles e o modo como são vistos pelos outros cavaleiros, principalmente Camus. Dizem que "uma maçã podre numa cesta contamina as demais"... Será?
Obrigada aos que leram, têm lido e pretendem continuar lendo essa fic. 'Bora 'bora rumo ao capítulo 6! o/