Shamandice escrita por Prana Zala


Capítulo 2
Onde o rio deságua




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Onde o rio deságua

"Porque dizem que o mar só é completo por causa do rio que nele deságua"

Era estranho acordar de manhã e não vê-lo a seu lado. Era estranho dormir à noite sem seu calor. Era mais estranho ainda encontrar tudo no lugar quando voltava para casa, do jeitinho que havia deixado ao sair. Mas por que voltar para casa? Ninguém o estava esperando, não tinha pressa. Nos fins de semana, sair para onde? Não tinha companhia; ficava em casa, lendo algum livro novo, ou treinava mais ou adiantava serviço atrasado. De vez em quando encontrava Afrodite pelo meio do caminho, mas desde o ocorrido não tinham se falado mais. E já contavam dois meses disso. Às vezes era interceptado por Aldebaran, que o convidava para sair com os outros, mas ele sempre ficava. Convidavam-no por consideração, porque ele era um dos cavaleiros de ouro? Nunca dera abertura para que os outros pudessem considerá-lo um amigo; nunca falara de si ou da sua vida para eles, muito menos perguntara da deles ou de seus gostos. Sabia apenas o que estava nas fichas dos colegas; dados banais, como idade, local de nascimento e treinamento, discípulos treinados, confusões causadas. O a mais que sabia sobre a vida pessoal dos outros cavaleiros de ouro era através de fofocas, comentários circulando as doze casas, informações trazidas frescas por Milo, que era sempre muito bem informado. Estariam eles apaixonados? Teriam muitas cicatrizes no coração? Tinham família antes de irem para o Santuário ou eram órfãos? Não sabia, nunca se interessara em saber. Na verdade, o único que despertara seu interesse fora Milo, mas, parando para refletir, nem do ex-amante sabia muito. Por exemplo, não sabia sobre a família e a infância dele, exceto o fato de ser conhecido antigo de Afrodite. Conhecia bem o escorpiano pela convivência, não por confissões. E sem o único amigo por perto, começava a pesar a solidão.

Por que era assim? O que lhe custaria falar as palavras que Milo tanto queria ouvir? Eram só palavras, não faziam mal. Deveria culpar seu treinamento ou seu mestre? Talvez o único culpado fosse ele mesmo e seu medo das conseqüências. Amara Milo desde garoto, mas ensurdecera a voz em seu peito por medo de ser rejeitado e por acreditar que, se por acaso fosse correspondido, enfraqueceria pelo amor. Amar não era racional, e Camus era a racionalidade em formato humano. Não queria sentir falta de alguém, não queria depender emocionalmente de alguém, não queria hesitar ao ter que escolher entre o bem de Atena e outra pessoa. Fora treinado para servir à Atena e apenas a ela, dedicara sua vida a protegê-la, a lutar em seu nome. Se tivesse mais alguém no jogo... poderia distraí-lo, enfraquecer sua dedicação. Isso era o pior que poderia acontecer, ensinara-lhe seu mestre. Sentimentos só atrapalhavam numa batalha e ele vivia em luta constante.

Por isso recusara o pedido do coração a abrir-se para Milo. Achou que passaria rápido, coisa de adolescente, mas não: aumentara cada vez mais, cada contato a mais, cada sorriso a mais. Descobrira o ciúmes ao encontrar o amado ao lado de várias mulheres, sempre uma nova companhia, sempre se entregando ao prazer junto a alguém que não o cavaleiro de Aquário. Às vezes desejava ser uma daquelas que se deitavam na cama do escorpiano apenas em busca do prazer de uma noite, e nessa noite ter o amigo só para si e deixar-se entregar ao mesmo prazer. Espantava esses pensamentos luxuriosos tão logo se dava conta de sua existência e continuava repetindo para si que Milo era e que deveria sempre ser apenas um amigo. Mas Milo aparecera com aquela história de amor, de desejo, de entrega ao Aquário, e rasgara sua casca protetora para, enfim, aninhar-se dentro do peito do francês.

Sim, doía ficar sem Milo. Só que doía mais não saber ao certo o porquê perdera seu amigo, o que o levara a utilizar uma desculpa esfarrapada como aquela para se separarem. Em sua mente, nem passara perto seu caso com Afrodite como possível razão do rompimento; para ele, somente ele e o sueco sabiam do que acontecera na casa de Aquário naqueles dias, e não havia meio de Milo ter descoberto. Talvez acabasse a vida sem saber.

Poderia nunca achar uma resposta a seus questionamentos, mas sabia que ficar se perguntando, ficar remoendo os fatos em busca de uma lasca de motivo não levaria a nada. Aprendera isso com seu mestre. O que passou, passou. O que acabou, era passado. Amores e amizades vinham e iam, o que ficava e que deveria sempre ficar era sua devoção à Atena. Ele mergulhou nos papéis de seu escritório e tentou ocupar a mente com requerimentos, memorandos, solicitações e relatórios. Conseguira parcialmente seu objetivo por pouco menos de uma hora e sua mente foi trazida novamente ao escritório ao ouvir batidas na porta.

– Entre - autorizou ele, tentando conter as batidas do coração, que esperavam por Milo atrás daquela enorme porta.

Mas não foi o escorpiano que entrou. Do outro cômodo, vinha uma moça jovem, de longos cabelos douro e olhos verdes, segurando uma bandeja com uma xícara de chá e biscoitos. A serva dos aposentos de Atena, Minerva.

– Pensei que talvez estivesse com fome - disse ela, aproximando-se do cavaleiro.

– Ah, obrigado, Minerva. Pode deixar aí.

Ela pousou a bandeja na mesa ao lado do aquariano e colocou a xícarae o prato com biscoitos ao lado do ruivo, mas em vez de sair na sequência ficou parada ali, como se esperasse algo.

– Algum problema? - perguntou Camus, após alguns minutos de silêncio, quando pareceu reparar que ela continuava no recinto.

– Camus... há algo errado? - perguntou ela, quase repetindo a pergunta dele.

– Não, nada. Tudo absolutamente normal respondeu ele, tomando um gole de chá.

– Então por que não vi Milo essa semana?

– Porque ele deve estar da sexta casa pra baixo.

– Vocês brigaram...?

– Não, não!, Minerva, ninguém brigou! De onde tirou essa idéia?

– Milo só passa tanto tempo na casa de Shaka quando vocês têm um desentendimento. E como ele está lá...

– Ele estava com saudades de passar um tempo com Shaka, só isso.

– Camus, sabe que eu o considero muito, não? E o conheço bem, muito bem, e que, comigo, não precisa manter essa compostura toda. Somos amigos, não? - perguntou ela, colocando a mão no ombro do cavaleiro, ternamente.

– Sim, somos... É que, Minerva, eu não sei se quero falar sobre isso ainda.

– Ok, eu respeito...

Ela pareceu que iria sair, mas antes de chegar à porta voltou para perto de Camus, que a olhou de soslaio, esperando-a falar.

– Camus, posso contar uma coisa que falavam na minha aldeia? Ou está muito ocupado?

– Não, tudo bem, pode falar - respondeu o cavaleiro de Aquário, sem entender o porquê ela decidira falar sobre aquilo naquele momento.

– Na minha aldeia - começou ela, sentando-se ao lado do amigo - eles veneram os rios. Dizem que são eles que nos dão a vida, pois nos fornecem água para bebermos, peixes para comermos e terra fértil para plantarmos. Os rios também são admirados por sua força, por ultrapassarem obstáculos e continuarem sempre a sua marcha até o fim, o oceano, ainda que ele esteja a quilômetros de distância. Assim, as pessoas mais bravas, mais fortes, mais importantes para a sobrevivência da aldeia, recebem a tatuagem dos rios, duas ondas, mais ou menos assim - e ela desenhou no ar duas ondas - Parece o símbolo de Aquário, não? É a maior honra que alguém pode receber na minha aldeia. Lá, você seria uma das pessoas a receber a tatuagem, porque você é forte, vai até seu objetivo atravessando o que quer que esteja na frente, abrindo seu caminho, ajudando as pessoas a sobreviverem. Mas, lá, também dizem que, assim como nós, o rio tem que escolher qual caminho seguir. Ele pode ir sempre em frente, até o oceano, sua morte, sozinho; ou ele pode unir-se a outro rio e, juntos, caminharem até o infinito oceano... - e o olhar dela pareceu se perder um pouco, como se estivesse mirando a imensidão dos mares.

"Quando - continuou ela -, quando o rio opta por se unir a outro, os dois juntam suas águas, unem suas forças, e tornam-se duas vezes mais poderosos. Aí sim eles podem ultrapassar qualquer obstáculo, cavam vales, abrem montanhas, desbravam áreas, e, juntos, eles morrem no oceano. Uma vez que se unem a outros rios, eles podem até se separar mais pra frente, mas sempre carregarão parte do outro e terão perdido parte de si, porque não é possível separar as águas que se misturaram. Na verdade, eles raramente se separam, porque não vão lutar contra os próprios corpos, que querem permanecer unidos. E, por isso, eles também são símbolo de sabedoria.

"Sabe, eles dizem que o que diferencia os rios que cortam a minha aldeia e outros que percorrem até desertos dos outros que secaram no caminho foi a escolha. Quando dois rios unem as suas águas viram um só rio, mas abundante, e quando um está fraco o outro recarrega suas forças com as águas vindas de outra região, principalmente quando nasceram em lugares muito distantes e que têm diferença na época de chuvas. Veja bem, um rio sozinho, por maior que seja, nem sempre consegue sobreviver à estiagem se não receber as águas do companheiro. A diferença é apenas onde o rio deságua... Por isso dizem que todos os grandes rios só conseguem atravessar grandes extensões de terra por causa de seus afluentes, que não deixam suas águas secarem...

Camus não falou nada, ficou processando em silêncio o conto. Parecia uma das fábulas que ele ouvira no orfanato, uma das lições das odiosas freiras. Minerva também se calou, esperando, ou talvez apenas pensando em sua aldeia novamente. Após um tempo, ela levantou-se, despediu-se e saiu, sem perguntar o que ele achara ou se entendera o porquê ela contara aquela história para ele. Ele abandonou os papéis, recostou-se na cadeira e massageou a têmpora com os dedos, cansado.

"Ele pode ir sempre em frente, até o oceano, sua morte, sozinho, ou ele pode unir-se a outro rio, e, juntos, eles morrem no oceano... A diferença é apenas onde o rio deságua...

Ele escolhera ir sempre em frente, sozinho, não? Fizera essa escolha quando criança, quando conhecera seu mestre, quando se tornara cavaleiro. Nascera sozinho, crescera independente, lutara sozinho... por que deveria escolher morrer acompanhado? A solidão fazia parte da sua vida. Desejara-a ardentemente na infância, quando as freiras batiam nele, tentavam exorcizar o espírito demoníaco apossado do garoto devido a seus cabelos de fogo, excluíam-no, temiam-no.

Foi em busca dessa solidão que fugira, ainda pequeno, do orfanato, horas antes de ser entregue a sua nova família. Rondara em solidão Paris por dias, passara muita fome, dormira encolhido nas vielas, até encontrar o trapezista do circo, que o acolhera, levara-o até seu minúsculo dormitório, alimentara-o, ensinara-lhe tudo o que sabia. Camus aprendia rápido, concluiu seu pequeno curso em menos da metade do tempo previsto para qualquer iniciante. Gostava daquele cara, LeBlound, pensara, sinceramente, que tinha encontrado um lar... Mas o circo levantara acampamento para fora do país e LeBlound, desesperado por não conseguir levar um menino sem documento e sem dinheiro para pagar o guarda que os prenderam na fronteira, aceitou, sem muitos questionamentos ou tempo para considerações diversas, vender o pequeno francês para um russo que passava pelo local. O russo arrastou o assustado garoto até a Sibéria, após uma breve passada por Moscou, onde Camus ganhou um documento, seu sobrenome e data de aniversário, e lá decidiu fazer dele um cavaleiro.

Trotsky, o homem que o comprou, ensinou-lhe a ser como era: devotado à Atena, racional e descrente no amor. Sua organização, independência e persistência foram extremamente úteis durante o treinamento e facilitaram muito o trabalho de Trotsky, pois o francês gostava da solidão e aprendia sozinho, apenas observando os outros. Camus orgulhara Trotsky superando todas as expectativas do antigo cavaleiro de gelo, ensinando com louvor seus dois discípulos, lutando por Atena, pelo amor e pela justiça, sem nunca se envolver em bebedeiras, romances e confusões.

Até conhecer Milo, a "péssima amizade", de acordo com o mestre.

Que disse ele quando soube que se tornaram amantes? Já estava desconfiado quando Camus, pela primeira vez, apareceu para visitar a Sibéria acompanhado de um amigo. Nunca, na vida, o aquariano trouxera coleguinhas, então Trotsky estranhou. Estranhou mais ainda quando os dois recusaram ficar na casa do mestre e se refugiaram no vilarejo, onde ficaram no mesmo quarto. Mas o russo teve certeza do que acontecia entre eles quando entrou sem bater no quarto em que o discípulo estava e encontrou-o numa cena muito particular com o amigo cavaleiro, ajoelhado na frente do ruivo. Camus ficou muito constrangido, corou e quis entrar no primeiro avião de volta à Grécia e demorar séculos até voltar a ver o mestre, Milo pareceu nem se incomodar e Trotsky ficou vermelho também, mas de raiva. O mestre deu um longo sermão, disse-se decepcionado, aconselhou-o a abandonar aquela loucura, que não iria durar, que Camus iria se machucar e tudo o mais que conseguiu pensar no momento. Sem obter resultado, Trotsky decidiu, então, mandar Milo afastar-se de seu discípulo. Sem sucesso. O escorpiano, que tivera uma nítida antipatia com o russo à primeira vista, enfrentou-o e disse que nunca largaria o amante, a menos que ele quisesse, e que Trotsky poderia espernear à vontade, ameaçar à vontade, reclamar à vontade, que nada mudaria. No fim, Camus retornou da Sibéria com sua reputação manchada perante o mestre e com dois inimigos entre si declarados.

Agora, alguns meses mais tarde, sem Milo a seu lado, Camus começava a achar que cometera um terrível erro. Escolhera ser sozinho. Não deveria, jamais, ter se entregado a Milo. Não deveria ter se deixado conquistar. Não deveria ter se apaixonado. Não deveria amar tanto alguém.

Mas já estava domado; já pertencia a Milo; já doía viver sem ele.

A diferença é apenas onde o rio deságua...

Haveria alguma diferença se escolhesse a solidão ou um lugar junto a Milo em sua cama?

O rio tem que escolher qual caminho seguir...

Por que, se ele escolhera o caminho solitário, sentia-se tão atado a Milo?

Sempre carregarão parte do outro e terão perdido parte de si...

Unira-se a Milo, caminhara anos a seu lado. Milo levara sua alma, mas o coração outrora entregue ao aquariano parecia ter fugido-lhe das mão e voltado ao peito do ex-amante. Sentia que só ele perdera parte de si após a separação.

A diferença é apenas onde o rio deságua...

Se ele tivesse rejeitado o loiro naquela viagem, se eles tivessem continuado apenas amigos, estaria ele mais feliz?

A diferença é apenas onde o rio deságua...

Se ele tivesse reprimido aqueles desejos...

A diferença é apenas onde o rio deságua...

Se ele tivesse sabido se controlar mais...

A diferença é apenas onde o rio deságua...

Se Milo não fosse tão sedutor...

A diferença é apenas onde o rio deságua...

Se eles não tivessem se tornado amigos...

A diferença é apenas onde o rio deságua...

Se Atena fosse a única a preencher seu pensamento e seu coração...

A diferença é apenas onde o rio deságua...

Se tudo fosse diferente...

A diferença entre ele e Milo era que Milo andava com o coração, ele com a cabeça. E, provavelmente, Milo conseguiria juntar suas águas com diversas mulheres, sempre se unindo e se separando, até desaguar no oceano. Ele, entretanto, se não fosse com Milo, acabaria desaguando sozinho no oceano.

E ele nem sabia o motivo de suas águas terem sido separadas.

Continua...


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Notas finais do capítulo

A história do rio... eu decidi o título e depois fiquei martelando o que se encaixaria nele. Aí, de repente, puff!, surgiu essa idéia. Espero que não tenha ficado tosca ou forçada...
Ok, ela nem deve imaginar que um dia eu colocaria esse tipo de coisa por aqui, mas gostaria de agradecer a minha irmã, Umi Mittsu, por ler a fic e aconselhar o que deveria ser mudado. Ela sempre me ajudou a escrever, e se essa fic tem história ela é parcialmente responsável.
Se alguém tiver alguma opinião, crítica ou elogio, please, deixe-me saber! Faz muita diferença, eu garanto!
Obrigada por terem lido até aqui! Para quem gostou, prometo me esforçar para que os próximos capítulos fiquem ainda melhores!