Como Água E Óleo escrita por Mayumi Sato


Capítulo 2
Razão e Impulsividade


Notas iniciais do capítulo

"- As suas reclamações não serão consideradas por mim, então, proponho que abdique a elas e foque-se em sua tarefa, alteza."



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02.

– Razão e Impulsividade -

O salão de música. Não havia nenhuma regra estabelecida que ditasse a exclusividade de seu uso para a princesa e sua dama de companhia, todavia, Rebeka Eldestein não era uma donzela que pudesse ser facilmente desafiada e, pouco após sua chegada ao palácio, esse cômodo havia se tornado seu, sem que houvessem contestações. Afinal, esse era o único recinto em todo o castelo que possuía um piano e, segundo as palavras da própria senhorita Eldestein, como tutora da senhorita Beilschmidt, seria impossível que ela se mantivesse sana, sem possuir um piano à sua disposição.

Assim, esse salão tornou-se praticamente o aposento pessoal da senhorita Eldestein e, por consequência, também tornou-se o local mais frequentado pela princesa Beilschmidt, visto que, a despeito da frequência com a qual brigavam, elas eram praticamente inseparáveis.

Apesar de, corriqueiramente, os conflitos entre as duas donzelas culminar em discussões inflamadas que podiam ser ouvidas por todo o corredor e pareciam ecoar por todo o castelo, naquela data, havia um confortável silêncio entre elas que somente não era completo, pois a Lied Larghetto op.08 No.03 de Fanny Mendelssohn era tocado pela tutora da senhorita Beilschmidt e suas notas flutuavam pelo ambiente, com a leveza dos flocos de neve.

Em concomitante, a princesa, sentada em uma das duas cadeiras que ficavam em frente ao piano, fazia tentativas desajeitadas de costurar um lenço, conforme a solicitação da rigorosa dama que, supostamente, era sua melhor amiga.

– Céus, como isso é chato... – gemeu a Beilschmidt, encarando o tecido, com um bico de desgosto.

Em resposta ao seu resmungo aborrecido, ela recebeu a mais cândida indiferença da senhorita Eldestein que prosseguiu a tocar seu piano atentamente, sem voltar-se para a nobre e disse, por fim, em uma voz desafetada e sem hesitação:

– As suas reclamações não serão consideradas por mim, então, proponho que abdique a elas e foque-se em sua tarefa, alteza.

– Bem, é fácil para você, agir assim! – acusou a princesa, impaciente - Você gosta de atividades como essa! Eu não sei como é possível que alguém goste de algo tão chato quanto isto, mas...!

– Devo inferir que saltar sobre uma pilha de feno ou lutar com espadas de madeiras seriam interesses mais divertidos? – interpelou Rebeka, em um tom sutilmente desafiador, com o início de um suave sorriso mordaz, escapando pelas bordas de seus lábios.

Por não deter-se nas mudanças discretas no semblante de sua dama de companhia, a resposta da princesa não precisou de um segundo de ponderação.

– Muito mais! – a nobre respondeu, de imediato, com um olhar arregalado e um tanto incrédulo, como se ela não pudesse acreditar que poderia haver outra resposta para aquela questão.

– Majestade, eu não desejo ser repetitiva. – Rebeka suspirou, cerrando seus olhos por um curto momento, sem, contudo, cessar sua execução - Vossa senhoria conhece minhas opiniões quanto aos seus passatempos. Eles são...

– “Impróprios para uma dama”! – complementou a senhorita Beilschmidt, em um falsete exagerado e cômico, revirando seus olhos e retraindo seus lábios em uma expressão extremamente contrariada.

– Fico feliz em ver que a senhorita possui consciência disso. Sendo esse o caso, alteza, pare de mencioná-los e dedique-se com maior esmero à sua costura. É um adorável tecido, esse que está em suas mãos. Por favor, não o desperdice.

– Hum? – a princesa ergueu uma sobrancelha, erguendo o tecido azul-celeste em suas mãos para observá-lo melhor. - Ele é um tanto bonitinho, mas parece-me que será muito trabalhoso transformá-lo em um lenço... – ela admitiu, em um tom lamurioso, fitando-o, com as sobrancelhas franzidas e feições que refletiam um profundo desprazer- Argh. Eu detesto a costura, Rebeka! Eu não poderia fazer outra coisa?! – a princesa pediu, em um apelo choroso e enfadonho que, como o habitual, não comoveu a senhorita Eldestein e acabou por deixá-la com uma contida e grave irritação.

– Alteza, você alegou que não gosta de costurar, pintar, dançar, cantar, aprender outros idiomas e de tocar harpa ou piano! – Rebeka exclamou, muito perturbada, detendo sua execução para encarar repreensivamente a princesa - Quais opções me restam? Lembre-se que sou a encarregada pela sua educação e é meu dever...!

– “Promover o amadurecimento de suas virtudes, como uma nobre donzela, para que vossa senhoria possa ser apresentada à sociedade e obter um bom casamento”! – a Beilschmidt, novamente, inferiu o complemento da sentença que já havia escutado tantas vezes e, mais uma vez, ela o fez com um revirar de olhos e um falsete jocoso. Esse comportamento infantil acalmou o ânimo exaltado da dama ao piano, pois, além de dar a impressão à Rebeka de que as duas repetiam um diálogo infrutífero que havia sido travado diversas vezes, fê-la realizar que era bem embaraçoso comportar-se tão grosseiramente e arrebatadamente quanto sua amiga, quando ela era uma jovem mais elegante e madura.

– Precisamente. – ela confirmou brandamente, com um meneio de cabeça, reposicionando-se em seu banco e tornando a voltar-se ao seu instrumento e partituras - Tendo em conta que Vossa Senhoria conhece tão bem minhas reclamações, não me darei ao trabalho de repeti-las e sugiro que faça o mesmo quanto às suas, alteza.

Se sua escolha dependesse apenas de suas preferências, a senhorita Beilschmidt logo teria desistido de prosseguir com aquelas frustrantes tentativas de, utilizando sua agulha e as instruções de sua dama de companhia, gerar algo diferente de um acúmulo desordenado de linhas entrelaçadas. Entretanto, não lhe era possível agir de tal forma. Por mais que estivesse mortalmente entediada e aborrecida com sua tarefa, ela não gostaria de contrariar Rebeka.

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Rebeka Eldestein era uma tutora exigente e severa, o que não a impedia de conseguir a admiração e o apreço da senhorita Beilschmidt.

Diferente dela, a senhorita Eldestein não recebeu nenhum estímulo para acumular conhecimentos ou tornar-se uma dama. Ela nasceu em uma família burguesa, com baixos recursos, cuja única propriedade era uma pequena chapelaria. Era quase certo que Rebeka se casaria com o filho do ferreiro que pertencia ao limitado burgo no qual habitava a família Eldestein, portanto, seus pais nunca se preocuparam em demasia com sua educação e sua mãe contentou-se em transmitir-lhe os dotes que considerava imprescindíveis a uma dona-de-casa. A jovem, mais por exigência do que por interesse, aprendeu a lavar roupas e engomá-las, costurar, varrer, espanar e a cozinhar de uma forma que sempre deixava a nobre Beilschmidt boquiaberta, quando sua amiga aventurava-se a ir à cozinha do palácio, e que sempre poderia ser utilizada como um método eficaz de suborno, caso a princesa estivesse particularmente decidida a contrariar uma de suas requisições.

Com essas habilidades adquiridas, a senhorita Eldestein poderia ter se resignado com a confortável posição de esposa de um homem de alguns recursos, como era a vontade de seus pais e da família de seu noivo desde sua infância. Todavia, Rebeka Eldestein não se sentiu remotamente atraída pelo fluxo natural de seu destino e decidiu-se a modificá-lo, com os seus próprios esforços.

Ela desejava tornar-se uma dama de companhia ou uma governanta e adquirir - além de novos talentos os quais ela realmente ansiava - sua independência.

Não foi fácil, para ela, ter acesso aos conhecimentos que precisava obter para o alcance de seus objetivos. A família Eldestein não possuía recursos para pagar uma tutora que se encarregasse da educação de sua filha e seus membros eram inaptos a cumprirem esse papel, conforme as expectativas dela. Eles não tocavam instrumentos, pintavam, cantavam, valsavam ou possuíam qualquer noção de etiqueta. Eles sequer conseguiam ler e a única língua que conheciam era uma variação dialetal do alemão, característica do povoado local.

Sua situação era deveras lamentável e ela precisou utilizar-se de meios um tanto incomuns para revertê-la. Aos seus dez anos, sabendo que sua puberdade aproximava-se, assim como possibilidades de um casamento arranjado, ela anunciou aos seus pais seus desejos de aprimorar sua formação como uma dama e prontificou-se a trabalhar a trabalhar, como uma empregada, na casa de nobres e de burgueses mais abastados, pedindo em troca, unicamente, o acesso a esses saberes. O senhor e a senhora Eldestein não conseguiram compreender a resolução de sua filha, pois não entendiam o anseio dela em adquirir mais conhecimentos, quando ela já possuía um noivado certo e detinha as aptidões que bastavam a uma mulher de sua classe, porém, não se opuseram a sua solicitação. Se ela realmente sucedesse em adquirir mais dotes, as suas chances de conseguir um casamento mais afortunado aumentariam consideravelmente. Se ela fracasse, o que teria a perder? Um emprego a tornaria conhecida por mais famílias nobres e cavalheiros, o que nunca era uma desvantagem a uma família de pequenos comerciantes.

A princípio, Rebeka recebera muitas rejeições, pois era um arranjo bem estranho, aquele proposto pela senhorita Eldestein! Muitos julgaram impróprio que uma mulher de seu nível tivesse tal descaramento em requisitar a mesma educação recebida pelas filhas de seus senhores. Quão horrível parecia essa imagem! Uma nobre e uma mulher sem nome e sem recursos, dividindo a mesma instrutora, o mesmo piano, a mesma harpa! Todavia, assim que as primeiras famílias, por pena, curiosidade ou avareza, concordaram em instruí-la em troca de seus serviços, ela adquiriu uma notória popularidade. Rebeka era uma garota inteligente, extremamente dedicada e disciplinada, que cumpria perfeitamente todas as suas funções e dedicava-se em suas aulas, com uma aprazível austeridade. Ela era quieta, racional e eficiente, qualidades que muito agradavam aos que ela servia.

Os bons comentários a seu respeito espalharam-se pelo burgo em que vivia e estenderam-se por todo o reino, facilitando que a jovem obtivesse mais empregos temporários e, evidentemente, mais tutores.

Em uma casa, a senhora a ensinara o francês. Em outra casa, uma senhora a ensinara a valsar. Em uma delas, a matriarca a ensinara, com muito gosto, sobre a arte da pintura, visto que nenhuma de suas filhas interessava-se pela atividade. De casas e casas, trabalhos e trabalhos, famílias e famílias, Rebeka Eldestein foi, aos poucos, completando sua formação, como uma prendada dama e, aos seus dezoito anos, ela já recebia diversas propostas de emprego fixo e de casamento.

Após uma rápida, mas refletida, análise de suas opções, ela acabou por se estabilizar na residência da família Mendelssohn, com um cargo de governanta, no outono daquele ano.

Para Rebeka, aquele era um lar bastante deleitável. Os Mendelssohn eram uma família burguesa, bastante liberal, e permitiam que ela se usufruísse à vontade dos dois pianos que possuíam. A senhorita Eldestein, que aprendera a tocar o instrumento aos onze anos, possuía um verdadeiro apreço por ele, mas nunca tivera muitas oportunidades para tocá-lo, após retirar-se da casa na qual havia sido lecionada sobre seu uso. Ela considerou um privilégio receber o acesso livre a uma atividade que lhe propiciava tamanha felicidade e sua gratidão e encanto com essa oferta a motivaram a permanecer, em definitivo, com aquela agradável família.

Ela não teve razões para arrepender-se de sua escolha. Os Mendelssohn eram uma família rica e culta com a qual Rebeka podia conviver muito bem. Os dois filhos do casal tocavam e compunham peças para piano, sendo igualmente brilhantes e ótimas companhias em diálogos. O filho, o senhor Félix, possuía uma considerável popularidade como músico e sua irmã, a senhorita Fanny, apesar de possuir suas apresentações públicas limitadas por seus pais, era uma magnífica pianista com um extenso potencial criativo que sempre maravilhava a senhorita Eldestein. A governanta, em seu tempo livre, além de dispor-se do piano, também apreciava assistir às apresentações dos irmãos e eles, que reconheciam muito bem as aptidões de sua admiradora, sentiam-se bastante satisfeitos em conferir-lhe partituras de suas composições a fim de escutarem-na tocá-las.

Era uma casa repleta de música, arte e serenidade, o lar dos Mendelssohn, mesmo com a esporádica ocorrência de conflitos entre Fanny e seu pai, por conta das limitações que a jovem sofria. Rebeka Eldestein, por dois anos, sentiu-se muito bem acomodada nele e não tinha nenhum plano de mudar-se até o inverno de seus vinte anos, quando, apesar de toda sua determinação em não sair daquela residência, ela recebeu uma proposta demasiadamente tentadora para ser refutada.

O rei Friederick Beilschmidt II ouvira falar sobre ela, durante um dos concertos que Félix Mendelssohn fizera em uma festa em seu castelo, e a convidava para servir à família real, como dama de companhia e instrutora de sua filha única, a princesa Beilschmidt. A honra desse convite pouco interessava a Rebeka, mas a promessa de que suas condições seriam rigorosamente atendidas, caso ela concordasse em ajudá-lo a tornar sua filha uma virtuosa donzela, digna de se casar com um membro da alta nobreza... Essa autoridade, sim, pareceu bem convidativa à Rebeka.

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Se comparada à vida de sua amiga, Rebeka, a vida da senhorita Beilschmidt não tinha tanto potencial para tornar-se um romance ou um boato espalhado por todos os cantos do reino. O que não mudava o fato de que sua vida havia sido incrível, claro! No entanto, menos pomposa, ela devia admitir.

A mãe da senhorita Beilschmidt havia falecido muito cedo, quando a princesa ainda era uma criança e seu pai, diferente dela, não tivera tão cedo as preocupações características dos progenitores de uma futura dama. Ele a criara com a liberdade que iriam conferir a um filho e, vendo o sorriso imenso e traquina de sua pequena, ele não se recordava de que não era exatamente próprio que uma princesa preferisse treinar com cavaleiros, ouvir estórias de guerras e estratégias militares e subir em árvores, ao invés de utilizar-se de seu tempo para brincar com bonecas, bordar e cantar. A senhorita Beilschmidt cresceu cercada por homens e, por muito tempo, não sentiu a distinção que existia entre o seu gênero e o deles. Ela tinha, com os visitantes, servos e cavaleiros do palácio, a mesma relação amistosa que seu pai possuía com eles. Ria de suas piadas sujas e grosseiras, desafiava-os em brigas e cavalgava com eles. Ninguém, incluindo a própria senhorita Beilschmidt, percebia que aquela agitada criança de cabelos bagunçados, um dia se tornaria uma mulher!

Eram bons tempos, aqueles em que ela era inteiramente livre e pouco incomodada por suas companhias. Entretanto, aos seus onze anos, começou-se a falar, pelo reino e pelo palácio, sobre a possibilidade de que a princesa fizesse um bom casamento e a conclusão geral a qual todos chegaram foi: não, não há chances que essa menina faça um bom casamento. Isso alarmou o velho rei Beilschmidt. Apesar de todo o carinho que nutria pela filha e todo o prazer que sentia em tê-la ao seu lado, como companhia de caçadas e aventuras, ele não poderia continuar a tratá-la, como trataria um príncipe. Seria inoportuno para ambos. Um bom casamento para a princesa asseguraria que ela tivesse um ótimo futuro e que o reino se beneficiasse com essa ligação. Ele precisava garanti-lo. Todavia, seria muito difícil que qualquer nobre sensato concordasse em ter, como esposa, uma mulher que poderia vencê-los em um combate físico, tomar galões inteiros de cerveja e armar estratégias militares muito superiores às suas, sendo, no entanto, inapta a trajar um vestido sem deixá-lo completamente amassado.

A fim de compensar seus anos de displicência com a educação de sua filha, o rei adotou novas medidas que, apesar de não serem muito radicais, provocaram imenso desgosto nela. Lutas com os cavaleiros tornaram-se proibidas, embora ela ainda tivesse a liberdade de treinar sozinha, caso quisesse. Ela poderia passear em seus cavalos, mas somente poderia fazê-lo de maneira calma e graciosa, se possível, em companhia a outras damas. Cervejas deveriam ser consumidas unicamente em datas comemorativas e, ainda assim, com alguma parcimônia. Por fim, ela podia continuar a divertir-se com seus passeios pela floresta, escaladas em árvores e outros passatempos rústicos, desde que concordasse em se aplicar nas aulas que receberia dos tutores contratados por seu pai.

Outra jovem possivelmente acharia esse acordo bem vantajoso e atenderia solicitamente às instruções de sua figura paternal. Ele estava sendo mais complacente do que muitos pais seriam em relação a uma filha tão despida de modos e a opinião geral ditava que ela deveria ser grata pela compreensão do bondoso rei. A senhorita Beilschmidt, no entanto, era um espírito livre. Ela cresceu com asas soltas e extensas, além de sua perspectiva de que possuía um céu gigantesco a explorar, logo, aquelas privações que seriam consideradas pouco severas por outros, pareceram-lhe completamente absurdas.

Por que ela precisava a aprender a tocar o piano, costurar, falar francês ou andar em uma postura apropriada?! Quanta bobagem! Ela já sabia de muitas coisas que outras garotas de sua idade nunca aprenderiam e estava plenamente satisfeita com suas atuais aptidões. Nenhum dos reis que governaram aquele país precisou aprender esses dotes. Por que ela necessitaria? Ela nem queria se casar! Como seria maçante a vida de uma rainha, cujo único papel seria o de servir ao seu rei!

Julchen Beilschmidt era incrível demais para ser vista tão somente como “a esposa do rei Alguma-Coisa-Terceiro”. Ela poderia vencer batalhas e administrar seu reino, melhor do que muitos dos príncipes e nobres que conhecia. Por que seu pai não podia ver isso?! Ela deveria simplesmente virar a rainha! Não a rainha de alguém! Uma rainha.

E, se quisesse executar bem esse papel, ela deveria continuar a ter a educação e o tratamento que recebia antes, ao invés de passar a ser tratada como um lírio inofensivo que deveria ser protegido para que sua beleza florescesse.

Ela recusou-se a obedecer às condições de seu pai.

Ela bebia sua cerveja, às escondidas. Furtivamente, escapava de suas lições com seus tutores para andar a cavalo, tão rápido quanto fugiria de seu destino, caso pudesse. Brincava no feno, nas árvores e em toda parte. Mesmo sem a companhia dos cavaleiros – os quais ela não poderia forçar a desobedecer ao rei, pois isso representaria um perigo a eles – ela continuou a empenhar-se em treinar com espadas, armas e flechas, com uma energia que não dedicava minimamente nas poucas lições que, por vezes, recebia forçadamente de seus tutores.

O rei não sabia o que fazer com sua herdeira. Punições somente a deixavam mais rebelde e ele não gostava de aplicá-las. Oferecer recompensas por bons comportamentos também não o ajudaria a discipliná-la, pois não havia muitas coisas que ele pudesse dar para agradá-la. Ela não fazia questão de receber vestidos, jóias ou perfumes e sentia-se bem mais contente em sua liberdade indisciplinada, sem benefícios materiais, do que se sentiria ao resignar-se para receber esses subornos.

A situação tornou-se ainda mais crítica, quando a senhorita Beilschmidt decidiu que, se as aulas não a agradavam, ela deveria simplesmente livrar-se dos tutores.

Não havia muitas pessoas aptas para o papel de lecionar uma dama adequadamente. O número de bons tutores disponíveis nas proximidades do reino poderia ser estimado em algumas dezenas. Sendo assim, não seria tão difícil, para a senhorita Beilschmidt, perturbar a todos eles de modo que nenhum quisesse continuar a ensiná-la.

Em fatos, sequer seria necessário que ela perturbasse a todos! Se ela adquirisse uma fama suficientemente terrível, seria difícil que alguém concordasse em instruí-la, mesmo a pedido do rei. Sem tutores, seu pai teria que conformar-se com as decisões dela e voltar a tratá-la como antes. Kesesese! Quão brilhante era o seu plano!

Em sua infantil e ingênua expectativa de que, com um pouco de resistência e teimosia, poderia fugir às normas que seu gênero designava a ela, a princesa dedicou-se em sua meta de fazer com que seus tutores desistissem de seu cargo. Antes dessa resolução, ela se contentava em ausentar-se das aulas deles, porém, vendo que essa medida seria insuficiente, ela passou a pregar-lhe peças. Muitas peças. Peças hilárias, por sinal!

Um rato, dentro do piano, na aula da senhora Müller. Um balde d’água sobre a cabeça do senhor Walter, antes da aula de etiqueta. Uma lagartixa dentre os novelos que seriam utilizados para a sua lição de costura... Gradativamente, ela conseguiu livrar-se de seus mestres, adquirir uma péssima fama que gerava intervalos cada vez maiores no tempo que levava para o aparecimento de novos tutores, além de obter uma diversão quase infindável com seu novo passatempo.

Friederick Beilschmidt II, um rei que podia massacrar grandiosos exércitos com o uso de estratégias relativamente simples, foi forçado a perceber que era incapaz de vencer sua longa batalha contra sua própria filha.

Quais eram suas opções? Mandá-la para um convento? Não seria conveniente. Puni-la fisicamente? Não, ele não seria capaz de tal ato com a única integrante de sua família. Mesmo porque qualquer excesso de severidade poderia culminar em uma fuga da princesa, o que seria um terrível escândalo. Céus. Ele não tinha como reagir à desobediência dela.

Sabendo disso, a Beilschmidt ria fartamente e continuava a pregar suas peças e entreter-se com suas brincadeiras, sem preocupar-se com o futuro.

Muitas estações passaram, sem alteração ou alívio para seu velho pai, até que, aos dezesseis anos da princesa, ele apelou para o que seria seu último recurso. Utilizando-se de muitas ofertas, ele contratou a lendária senhorita Eldestein, uma solene donzela que não possuía nome ou posses e conquistara seus méritos por conta própria. Uma moça que a senhorita Beilschmidt, julgava estranha e enigmática, considerando-se que ela perseguira avidamente tudo aquilo do qual esta fugia com tanta determinação!

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Desde o princípio, a princesa previra que sua convivência com a senhorita Eldestein seria terrível.

Seus mestres anteriores não provocaram nenhuma antipatia naquela rebelde nobre e somente eram alvos de suas brincadeiras, pois Julchen Beilschmidt não gostava de suas aulas e tinha planos para seu futuro que culminavam em uma necessidade de fazê-los desistir de seu cargo. No entanto, ela não tinha algo em particular contra eles. Pelo contrário, ela os considerava verdadeiramente cômicos, com suas reações tão espalhafatosas a brincadeiras tão simples! Ela também achava sua desnecessária timidez e seu medo contido – que conferiam um aspecto vulnerável à aparência deles - extremamente adoráveis! E, como todo o reino, ela os considerava muito espertos. Embora não o bastante para desafiá-la! Kesesese!

Pode-se dizer que, se a senhorita Beilschmidt e seus tutores se encontrassem em outra ocasião e circunstâncias, ela não teria alimentado nenhum anseio de importuná-los.

A princesa não podia culpar seus antigos instrutores por serem chatos e menos incríveis do que ela. Eles cresceram sob a densa expectativa de tornarem-se adultos monótonos e cumpriram o que se esperava deles. Quem poderia acusá-los?

Rebeka Eldestein era um caso à parte.

Ela nunca fora pressionada a tornar-se um ser tedioso e maçante. Seu nascimento, pensava Julchen, conferia-lhe uma liberdade absoluta que a princesa e a maioria das damas da corte jamais teriam. Como uma pessoa sem nome, sem terras e fortunas, nada seria esperado dela e ela poderia coordenar seu destino, ao seu bel prazer. Não exigiriam que ela adquirisse os saberes inevitavelmente esperados em uma herdeira de uma família burguesa mais abastada ou em uma nobre, e tão pouco seria cobrado que ela se desse a importunadora tarefa de ensiná-los!

Entretanto, a senhorita Eldestein, como uma legítima excêntrica, optara por desprezar completamente a liberdade que possuía e empenhar-se – empenhar-se(!) – para ser instruída nas lições que a Beilschmidt tanto desprezava e para tornar-se uma dama de companhia gélida, insípida e absolutamente severa.

Rebeka era uma lenda e estava demasiadamente consciente disso para tolerar desaforos. Assim que chegou ao palácio, ela já emitia aquela inalterável aura de que a família real era a privilegiada em recebê-la, ao invés dessa honra dar-se de modo contrário. As suas solicitações eram mais similares a ordens do que as ordens do próprio rei!

Julchen Beilschmidt estava predisposta a não gostar de sua nova tutora e o primeiro encontro delas não mudou essa disposição. Não havia, no perfil de Rebeka Eldestein, qualquer traço digno de simpatia. Ela era taciturna, estoica, fria e seca, como um galho resistindo ao inverno, além de possuir uma arrogância sutil que irritava severamente a Beilschmidt. Os olhos violetas de sua tutora pareciam-lhe duas janelas muito bem fechadas e os modos dela em si, eram demasiadamente educados e calculados para inspirarem confiança na nobre.

Resumidamente, a princesa não gostava dela. E, considerando-se as nuances de desprezo no tom e olhar que a jovem burguesa dirigia a ela, Julchen estava certa de que esse sentimento era recíproco.

Felizmente, elas não precisavam conviver por um longo período. Havia um pacto silencioso entre as duas, que surgira tão espontaneamente quanto o anseio de ambas em se evitarem, no qual a Beilschmidt não era forçada a vir às lições de Rebeka e essa, por sua vez, não seria importunada pela princesa com artimanhas desagradáveis. Rebeka Eldestein passava o dia inteiro no salão de música que tomara para si e, desde que a Beilschmidt não se encaminhasse até ele e pedisse que ela, por favor, parasse de tocar para ensinar-lhe algo, a jovem dama não interromperia seus entretenimentos para educá-la. Como isso nunca acontecia, Julchen Beilschmidt, por muitas semanas, deixou de ter suas aulas e, curiosamente, também deixou de ter uma oportunidade para livrar-se de sua instrutora.

Em um coração menos passional e extremo, a negligência de Rebeka em conferir as lições que a princesa tanto detestava pudesse ser tomada como um gesto generoso e propiciado o surgimento de uma, leve e discreta, como uma pluma, áurea amistosa entre ambas. A princesa, no entanto, não conferiu uma interpretação tão romântica e complacente à proposital displicência de Rebeka em cumprir sua função. Não era como se a jovem dama estivesse fazendo isso por se solidarizar com os sentimentos de Julchen Beilschmidt e para apoiá-la, ao seu modo, em sua longa batalha para tornar-se uma rainha, sem precisar de um rei! Não, não, não! Certamente não era isso! Rebeka Eldestein evitava dar aulas para a senhorita Beilschmidt, pois, desde que seus interesses não fossem afetados, ela não se incomodaria se a princesa não se casasse, fosse à ruína, ardesse em chamas ou se transformasse em uma fada! Ela era indiferente à Beilschmidt e, de modo geral, era indiferente a qualquer coisa, com exceção ao piano. Como o rei compreendeu que não poderia forçá-la a perseguir a princesa, pelo palácio, e que não seria muito sensato expulsá-la, pois, apesar dos pesares, ela era a tutora mais permanente e estável que tiveram, a burguesa não tinha razões para incomodar-se em tentar convencer a nobre a vir às suas lições. Ela estava muito bem por conta própria e suas motivações para manter sua conduta quanto à educação da nobre não eram remotamente relacionadas a qualquer empatia de sua parte.

Elas compartilhavam de uma silenciosa aversão mútua que resultava em uma ausência de esforços das duas para encontrarem-se.

Rebeka Eldestein, portanto, não merecia qualquer apreço da Beilschmidt. Mesmo porque, a despeito de não ter que encontrá-la no horário das lições, as duas se viam em outras ocasiões, durante o dia – como, por exemplo, no horário das refeições ou quando elas encaminhavam-se aos seus quartos vizinhos, para dormirem – e, nesses rápidos momentos, a burguesa sempre tinha uma crítica a lançar a Beilschmidt.

Majestade, devo informá-la que não estamos mais na época das trevas e que Vossa Senhoria certamente não é um urso prestes a iniciar sua hibernação, sendo assim, por favor, contenha a velocidade com a qual você come e, por favor, pare de consumir tanto vinho.”.

É fascinante perceber que eu teria que lançar-me no centro de um redemoinho para que meu cabelo ficasse como o seu costuma permanecer, alteza.”.

A sua postura, ao andar, precisa ser corrigida, majestade. Sendo franca, a sua postura em relação a todos os seus aspectos necessita em ser corrigida, mas não vamos iniciar um assunto tão longo a essa hora da noite.”.

Se Rebeka dizia isso apenas para provocá-la ou se ela realmente tencionava inspirar um desejo de mudança na princesa, esta não descobriu, mesmo nos vários meses de convivência e muitos anos de amizade que as duas tiveram.

Ela ainda estava mais propensa a acreditar na primeira opção.

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Desde o mês de dezembro, no qual a senhorita Eldestein surgiu no palácio, quatro meses se passaram, sem que a rotina e a compartilhada antipatia entre a nobre e a burguesa sofressem mudanças.

Rebeka persistia em preservar seu inalterável semblante, despido de sentimentos que não fossem de desprezo e reprovação, e Julchen Beilschmidt persistia a tentar tolerá-la, apesar de sua enorme e mastigada raiva contra a jovem dama.

Rebeka trancava-se em seu salão de música e Julchen fugia para os campos. Elas raramente se viam e, quando isso ocasionalmente ocorria, eram igualmente secas uma com a outra. A princesa achava que a senhorita Eldestein era o ser mais insensível e apático de todos os reinos e tinha a forte impressão de que Rebeka erroneamente pensava que ela, a incrível Julchen Beilschmidt, era o ser mais estúpido de todos os reinos. Um erro crasso, ela devia dizer!

Julchen não havia aprendido o que seu pai e seus mestres lhe pediram, mas havia, ao longo de sua infância e adolescência, adquirido habilidades que ela julgava mais imprescindíveis e interessantes. Há! Ela não era uma estúpida! Pelo contrário! Ela tinha conhecimentos cujo valor era centenas de vezes superior àqueles que a Eldestein detinha! Muitas damas sabiam como costurar, valsar, cantar e falar francês, mas quantas delas sabiam como comandar um exército, durante uma invasão a um forte inimigo, ou acertar um tiro preciso em um alvo a uma longa distância? Ah, Julchen Beilschmidt era tão incrível! Era uma pena - para Rebeka, claro - que a jovem dama não pudesse perceber suas inúmeras qualidades!

A princesa não fazia questão de exibir suas várias virtudes à senhorita Eldestein e estava certa de que receberia somente indiferença, caso tentasse. Rebeka Eldestein era uma pedra de gelo. Ela não era divertida. O seu semblante exibia um inalterável estado de austera serenidade que não seria abalado por quaisquer que fossem as circunstâncias. Ela não possuía emoções ou fraquezas. Seu coração parecia confinado em uma caixa – ou, possivelmente, em seu piano – assim como o do fantasmagórico capitão solitário das lendas locais.

Isso era o que Julchen Beilschmidt pensava da senhorita Eldestein até aquela data.

Em uma manhã anormalmente fria para o final do mês de março, a princesa, ao invés de sair para seu habitual passeio pela floresta, decidiu passear pelos corredores do castelo, para evitar enfrentar ventos frios, que não fariam bem à sua saúde, e evitar as lições de Rebeka, que não fariam bem ao seu humor. Essa decisão, ela saberia em um futuro relativamente distante, havia sido essencial para a mudança que transformaria drasticamente a rotina da Beilschmidt. Se ela tivesse ido à floresta, ao invés de dar voltas aleatórias pelo palácio, jamais teria escutado o choro copioso – e, na hora, um tanto assustador – que vinha de uma das partes dele e não teria identificado, com profundo assombro, a sua origem, que não provinha de ninguém mais ninguém menos do que da própria senhorita Eldestein.

Rebeka Eldestein. A gélida e autoritária Rebeka Eldestein. Encolhida em um corredor, sentada sobre suas pernas, com as costas apoiadas em uma parede. Tremendo. Chorando. Usando um pequeno lenço azul para secar volumosas lágrimas que escorriam em um rosto pálido e vulnerável.

Por um instante, a princesa não pôde deixar de pensar que encontrar um fantasma seria uma cena menos assustadora.

...E-Ela não estava delirando, estava? Aquela não podia ser a Rebeka! A senhorita Eldestein mal era capaz de sentir tristeza! Como ela poderia, de repente, estar chorando como a sofrida protagonista de um conto de fadas? Essa era mesmo a Rebeka? Não seria alguém extremamente parecida com ela? E se, de fato, fosse a Rebeka a estar chorando, será que ela estava naquele período...?

– Pare de encarar-me e ajude-me, sua tola!

Essa exaltada e irascível exclamação foi outro choque para o coração da monarca.

Rebeka Eldestein, com frequência, fazia exigências. Todavia, elas sempre eram feitas com uma cuidadosa escolha de termos e proferidas com grande tranquilidade. Ela nunca vira Rebeka berrar daquela forma, ser tão agressiva e bufar, com um rosto vermelho de constrangimento e cólera.

– O-O que aconteceu? – ela perguntou, assustada e espantada, piscando os olhos rapidamente, sem ousar se mover. Como havia acabado de entrar naquele corredor e o susto com aquela situação inusitada a imobilizou, ela e Rebeka estavam devidamente afastadas por uma conveniente distância, mas, vendo o humor atual da senhorita Eldestein, ela não se arriscaria a diminui-la em nenhum passo.

– Não é lógico, “alteza”?! – exclamou Rebeka, com uma ironia agressiva, erguendo-se de repente, enquanto batia em seu vestido para desamassá-lo. - Eu me perdi! – ela prosseguiu, abrindo os braços como se apresentasse o grande corredor vazio a um indivíduo estúpido que nunca o noticiou. - Esse castelo tem proporções tão exageradas quanto o seu ego! Francamente! Eu tive que correr por alguns corredores, pois esqueci-me de fechar a porta do salão de música e esses ventos terríveis carregaram uma de minhas partituras... – nesse ponto da narrativa, a senhorita Eldestein mudou subitamente sua postura, tornando-se mais tímida e refreada, além de substituir o que antes era uma cólera voraz pelo que parecia um inexprimível desconforto. - P-Porém, quando realizei, estava em um lugar completamente estranho! – ela acrescentou em uma voz baixa que era quase sufocada dentro de sua garganta - Eu estou caminhando há horas e não identifico um espaço que me pareça remotamente familiar! Onde estamos, afinal?

Julchen Beilschmidt, momentaneamente, não pôde exercer um controle seguro sobre seus pensamentos e reações. Ela estava em um estado de perplexidade que a deixara letárgica e estática. Ela não poderia dar uma resposta refletida a uma figura que ainda lhe parecia muito similar à personagem de uma alucinação.

A gélida Rebeka Eldestein passara à chorona Rebeka Eldestein e, em seguida, à colérica Rebeka Eldestein em segundos! Não se poderia esperar que Julchen soubesse como lidar com tantas transformações em tão pouco tempo!

Os seus conceitos e impressões sobre a pessoa com quem ela convivia há quatro meses haviam sofrido um impacto de tamanha intensidade, rapidez e violência que pareciam ter se despedaçado, como uma louça de porcelana ao ser atirada contra uma parede.

A senhorita Eldestein, na percepção da nobre, sempre pareceu vazia de sentimentos. Ela não parecia pôr emoções em atividades deleitáveis ou fastidiosas, nunca demonstrava qualquer afetação e não parecia ter um enlace que a prendesse a esse mundo, com exceção aos seus deveres e seu piano. A burguesa era uma dama calada e solene que possuía uma apreciação profunda pelo isolamento e que permanecia em um constante estado de apatia em todos os momentos nos quais era vista. Rebeka Eldestein, para a princesa, era alguém que era inapta a sentir, pois sua existência era como a de uma árvore velha. Grandiosa e oca.

...Essa havia sido a presunção inicial da senhorita Beilschmidt e, para ela, foi bastante atordoante ver uma certeza tão sólida ser destruída com tamanha fúria e pressa. Aquela era a Rebeka que ela conhecia? Mesmo? A Rebeka? A senhorita Eldestein? Sua tutora? Ela sentia-se diante de uma completa estranha e não tinha quaisquer referências que orientassem como ela deveria se portar com aquela agitada desconhecida!

Muitas informações passaram-se velozmente pela mente de Julchen Beilschmidt que se deteve por instantes para ordenar sua confusão interna, permanecendo em um pasmo silêncio, diante dos irascíveis e impacientes olhos lilases da senhorita Eldestein.

Rebeka não era um ser vazio e desinteressante, como ela presumira. Rebeka havia chorado e se assustado por ter se perdido. Rebeka ficou corada. Rebeka teve uma explosão de raiva, criticou o castelo e, se os seus sentidos e compreensão de colocações sarcásticas não estivessem abalados pelo choque, pelo que a princesa entendera, ela a ofendera também!

Enfim, Rebeka Eldestein, mesmo em sua aparente indiferença eterna, era alguém repleta de sentimentos e tinha um temperamento mais imprevisível e complexo do que a princesa inicialmente pensara. Diante dessa nova face de sua tutora, havia muitas perguntas que podiam e deveriam ser feitas, mas, como ainda estava um tanto confusa, o primeiro comentário da senhorita Beilschmidt foi instantâneo, impensado e praticamente automático.

– Eu entendo que você tenha se afastado do salão de música por perseguir sua partitura e tenha ido parar em uma parte pouco frequentada do castelo, mas... - a Beilschmidt inspirou profundamente, com suas sobrancelhas franzindo-se em uma expressão abertamente estupefata - Como você conseguiu se perder?! – ela exclamou, com a mesma perturbação e incredulidade com as quais perguntaria, em contextos hipotéticos, como a senhorita Eldestein conseguira voar ou falar com animais - Você mora aqui há meses! E, por favor, diga que você estava exagerando quando comentou que esteve caminhando por horas! Não é possível que você tenha andado tanto tempo, sem achar o caminho! Quer dizer, mesmo um convidado levaria apenas quarenta minutos para entender o...!

– F-Fique quieta! – interrompeu Rebeka, com as faces tomadas por rubor, não mais suportando seus sentimentos de humilhação.

A reação dela confirmou algo no qual a senhorita Beilschmidt não acreditaria de outro modo. A princesa realizou, com grande perplexidade, que aquilo que Rebeka Eldestein relatara não era um exagero, uma brincadeira ou mesmo uma afobação temporária. Ela havia se perdido no castelo em que morava e estava tendo encontrar o caminho há horas.

...

H-Hum. Isso era estranho, porém, crível. Descobrir que Rebeka Eldestein tinha um péssimo senso de direção não seria mais chocante do que a sua descoberta de que ela possuía emoções.

Com um olhar ligeiramente arregalado e um tom surpreso, embora não mais exaltado ou mortificado, ela apontou para a Eldestein e indagou, com cautela, necessitando de uma afirmação concreta para acreditar na conclusão que lhe parecia tão absurda quanto correta:

– Então, realmente foi isso que aconteceu? – ela quis confirmar - Você se perdeu aqui? E por horas?

Rebeka engoliu em seco, hesitante. Em seu nervosismo, seus olhos subiram e desceram repetidamente, como se também estivessem perdidos, e suas mãos moveram-se por seus cabelos e vestes em rápidas e aleatórias tentativas de organizá-los.

– É um engano de sua parte dizer que eu estava perdida. – ela falou, desviando seu rosto, em uma resposta que não conseguiu transmitir muita convicção e divertiu imensamente a nobre que a escutava - E-Eu estava apenas vagamente desorientada...

Kesesese! Você certamente teve uma reação muito dramática, para alguém que estava apenas vagamente desorientada, senhorita Eldestein! – sorriu a princesa, com seu assombro e receio amenizados, começando a descobrir um deleite perverso na exploração dos pontos fracos de sua tutora e suas subsequentes visões das cômicas tentativas que ela fazia para manter sua compostura e solenidade, mesmo sendo tão óbvio que ela poderia se derreter com o ardor de seu constrangimento.

Ao ouvir esse comentário, por exemplo, Rebeka pareceu ter sido acometida pela realização da impossibilidade de que ela preservasse seu orgulho, diante de um insulto indireto que ela não podia desmentir. O seu rosto, antes ligeiramente corado pela raiva e pela vergonha, foi tomado por uma tonalidade ainda mais forte de escarlate. O sangue subiu pelo corpo da senhorita Eldestein, tingindo por completo seu pescoço, suas orelhas e as maçãs de seu rosto. Ela mordeu seu lábio inferior, gaguejando atordoadamente, com um olhar que movia-se aceleradamente para os lados, podendo refletir, além de uma evidente apreensão nervosa, uma acumulada hostilidade.

– E-Eu...

Oh, céus! Aquilo era totalmente hilário! Julchen não conseguia mais se conter! Ela morreria, caso tentasse se controlar! A ânsia de rir que subia pela sua garganta poderia engasgá-la a qualquer segundo!

– PFFF! O que é isso?! – a princesa explodiu em uma gargalhada, cobrindo sua boca com a mão, com seus olhos escarlates preenchidos por lágrimas de deboche e seu corpo reclinando-se para frente devido à intensidade de sua risada, de modo que suas mãos precisaram apoiar-se em seus joelhos para que ela mantivesse o equilíbrio - Você se perdeu em um local no qual você está morando há quatro meses, por horas?! Horas?! Mesmo sendo uma jovem dama, você não tem nenhum senso de orientação, senhorita Eldeste...! – a nobre não pôde concluir sua provocação, pois, ao defrontar-se com a visão de sua dama de companhia retirando-se do corredor, o coração dela sofreu um solavanco com o susto e ela, instintivamente, reagiu a esse desprezo inesperado. Por que Rebeka estava saindo?! Julchen nem havia terminado de falar! Com o olhar arregalado, ela rapidamente aproximou-se de Rebeka e tomou seu pulso para impedi-la de partir, o que, se provocou um suspiro irritado na Eldestein, ao menos conseguiu pará-la. - Espere! Onde você está indo?

– Eu não vim aqui para tolerar os seus insultos. – Rebeka declarou secamente, permanecendo de costas para a monarca, com seus ombros arqueados em uma posição tensa e rígida.

– Eu sei. Você veio aqui porque se perdeu. – Julchen respondeu casualmente, com uma seriedade desconcertante.

– Por favor, cesse suas brincadeiras implicantes!- suplicou a burguesa, retirando a mão de Julchen violentamente e voltando-se à nobre para despejar nela um olhar que, como as suas faces, ardia em constrangimento e ira. - F-Foi um erro meu presumir que alguém rude e egoísta como Vossa Senhoria seria tão gentil em ajudar-me! Vossa majestade parece ter ignorado completamente a minha solicitação por ajuda! – percebendo que a princesa parecia transtornada, mas não afetada, com suas declarações e que ela tencionava tomar-lhe o pulso novamente, Rebeka o afastou dela, tão impetuosamente quanto se afastaria de uma repugnante besta selvagem - D-Deixe-me ir! – ela pediu, muito vermelha - Eu encontrarei o salão de música, sozinha!

– Eu não duvido que você o encontre, por conta própria – admitiu Julchen calmamente, sem censurar-se ou assustar-se com as reações passionais de Rebeka que lhe pareciam apenas exaltações de um espírito inflamado, ao invés de manifestações de um rancor honesto e permanente, e que, portanto, poderiam ser usadas para a diversão da princesa, sem imputar-lhe sentimentos de culpa. - mas, considerando-se o seu senso de direção, há o perigo que você morra de inanição, antes disso! – ela brincou, abrindo um amplo sorriso suavemente mordaz - Deixe-me levá-la, Rebeka! – ela sorriu mais docemente, segurando e apertando com gentileza a mão da jovem dama ao ver que essa pretendia fugir novamente - A minha incrível pessoa nunca desperdiça oportunidades para exercer seu altruísmo infindável! Eu sou nobre demais para isso, você sabe. Nos dois sentidos da palavra! Kesesese!

Rebeka pousou um demorado olhar avaliativo e, sobretudo, crítico à sorridente e entusiasmada donzela que estava a sua frente. Um longo olhar baixo e tão cinza quanto as nuvens do inverno, o qual parecia ser o prenúncio de uma torrente de ofensas e recusas ásperas. A confiança de Julchen de que sua incrível proposta repleta das mais incríveis intenções não seria recusada, começou a esmorecer sob a aquele olhar e ela estava começando a pensar como faria para persuadir a Eldestein a acompanhá-la, quando recebeu esta amarga, porém, resoluta resposta de sua dama de companhia:

– É vergonhoso que minha salvadora seja alguém tão estúpida. – murmurou Rebeka, com uma aborrecida resignação. Apesar de permanecer contrariada, a sua cólera fora reduzida e Julchen pôde sentir, através da mão que segurava, o relaxamento gradual da senhorita Eldestein.

– Então, você aceita a minha ajuda? – a princesa surpreendeu-se, abrindo uma expressão feliz que ocorreu de maneira quase acidental.

– Eu não tenho outra opção.

Ao voltarem aos aposentos principais do palácio, ninguém pôde compreender por que as duas estavam juntas, por que a senhorita Beilschmidt parecia tão feliz e por que a senhorita Eldestein parecia cercada por nuvens carregadas de chumbo. Eles não sabiam que a senhorita Beilschmidt havia acabado de descobrir uma nova fonte de diversão em sua dama de companhia e desconheciam o quão fatigado e pessimista encontrava-se o ânimo da senhorita Eldestein por ter conhecimento desse fato.

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Como a princesa havia estipulado, Rebeka Eldestein se mostrou uma pessoa bastante interessante, quando a nobre passou a observá-la mais atentamente. Muito interessante. Muito, muito, muito interessante. A pessoa mais interessante que Julchen Beilschmidt já conhecera!

Desde o dia em que a resgatara de perder-se nos corredores do castelo, Julchen Beilschmidt passara a perseguir a tutora - da qual, que irônico, fugira em meses anteriores - tão avidamente que mesmo a estoica Rebeka Eldestein não foi capaz de ignorá-la. Em suas tentativas de aproximação, ela estava sempre sentando-se ao lado de Rebeka, fazendo-lhe perguntas pessoais e envolvendo seus braços em torno de seus ombros, com uma despreocupada casualidade que revoltava a senhorita Eldestein em cada fibra de seu ser.

Elas não se tornaram amigas, de imediato, é claro. E Julchen Beilschmidt sequer planejava isso, no começo. Ela apenas tencionava divertir-se em observar o quão furiosa e vermelha podia se tornar a solene Rebeka Eldestein, caso exposta às provocações certas. Era engraçado ver como Rebeka se constrangia e se horrorizava ao ouvir a princesa falar qualquer obscenidade ou usar um linguajar mais grosseiro! Era divertido ver como os ombros dela se encolhiam instintivamente, sempre que ela era tocada, sem aviso prévio! Doses calculadas de sarcasmo, sobretudo se fizessem referências à ausência de senso de direção da burguesa, tinham forte um efeito sobre a Eldestein que perdia momentaneamente sua compostura e berrava, nervosamente, insultos como “Sua tola!”, “Menina estúpida!” e “Garota intratável!”, os quais horrorizavam os servos do palácio e deliciavam a nobre.

Quão curiosa era a personalidade de Rebeka Eldestein! Ela, a mais impassível, composta e digna dama daquele reino, também podia ser a mais impetuosa, quando se irritava ou se constrangia verdadeiramente!

A intenção inicial de Julchen Beilschmidt era apenas a de entreter-se em provocá-la, pois aquele era o método mais eficiente de chamar a atenção daquela peculiar jovem dama, e ela não cogitou que isso culminaria em uma aproximação das duas. Entretanto, foi exatamente o que aconteceu.

Ainda que houvesse uma resistência inicial de Rebeka em ceder aos avanços da princesa que a perseguia constantemente, ela acabou por ter sua energia e paciência esgotadas e cedeu.

A senhorita Eldestein, que previamente tentara demonstrar somente plácida indiferença e aversão à Julchen Beilschmidt, era, agora, deveras explícita em sua impaciência e rancor. O que, por uma acidental consequência, tornara-a muito mais comunicativa em sua relação com a nobre.

Assim, quando a princesa vinha por trás dela, quando Rebeka estava tocando o piano, e a abraçava por trás, perguntando sobre partituras perdidas pelo castelo, com o único objetivo de irritá-la, ao invés de meramente ignorar a nobre e concentrar-se em seu piano, a senhorita Eldestein dava um fundo suspiro de irritação e, tocando uma interpretação um pouco mais violenta e grave de uma das composições de seu repertório, dizia rispidamente:

– Majestade, vossa senhoria realmente precisa me incomodar com tanta persistência? Esse não é um passatempo respeitável. Eu estou tocando o piano, o que gosto de fazer, então, faça algo que vá mais de encontro aos seus hobbies. Atire-se no feno, na lama, eu não me importo. Apenas afaste-se do meu instrumento.

A princesa, por sua vez, era munida de táticas implicantes para reagir a tais tentativas de afastamento.

– Eu deveria retornar ao seu instrumento, após atirar-me no feno e na lama? – ela erguia uma sobrancelha, sorrindo provocativamente - Esse é um estranho pedido seu, Rebeka! – ela exclamava, com uma inocência evidentemente fingida, antes de acrescentar, dando de ombros, fechando seus olhos e agitando seu rosto, com um sorriso que tentava transmitir certa complacência e que, entretanto, era mais pretensioso e petulante do que os seus demais sorrisos - No entanto, a minha incrível pessoa é generosa demais para negar ao apelo, por isso, não se preocupe, eu definitivamente irei...!

– Saia daqui! Saia daqui e não retorne!

Eis o problema: uma vez que o interesse de Julchen Beilschmidt havia sido capturado e as defesas de Rebeka Eldestein haviam sido reduzidas, seria impossível que elas não se conhecessem melhor e, estranhamente, que começassem a se acostumar com um convívio constante entre elas.

As conversas delas, que se iniciaram com implicâncias e réplicas hostis, gradativamente, envolveram outros temas e tornaram-se um pouco mais íntimas e agradáveis.

Como quase todos os acontecimentos que alteraram o seu relacionamento, essa ocorrência também não foi inteiramente intencional e ocorreu de modo sutil e espontâneo.

Por vezes, uma delas deixava uma informação sobre si escapar, e a outra, sem conseguir conter sua curiosidade, perguntava-lhe sobre o fato. Julchen Beilschmidt, ao receber perguntas, sorria amplamente e respondia entusiasticamente às indagações daquela jovem dama. Rebeka Eldestein hesitava, refletia e transparecia certo senso de obrigação e aborrecimento ao responder as dúvidas da monarca, mas nunca deixou uma de suas indagações sem uma resposta e era muito detalhista ao contar suas histórias, para alguém que supostamente estava desinteressada em revelá-las.

Ao se conhecerem melhor, elas começaram a se compreender melhor e a se aceitarem mais, a despeito de ainda considerarem muito irritantes alguns dos traços de sua companhia.

A relação delas passou de uma aversão mútua para uma estranha convivência voluntária. De uma estranha convivência voluntária para um convívio razoavelmente aprazível. E, quando elas puderam esclarecer o que provocara uma antipatia mútua entre elas, quando ambas mal se conheciam, e cada uma defendeu-se devidamente da outra, os poucos vestígios de resistência e de algum desprezo alheio que protegiam seus corações de um sentimento mais profundo foram dissipados, permitindo o surgimento de uma verdadeira amizade entre as donzelas.

A princesa descobriu, com grande espanto, que Rebeka Eldestein não tentara distanciar-se dela, por seus hábitos considerados masculinos e sua resistência a receber a educação que dignificava uma dama. Rebeka Eldestein era puramente indiferente à postura da princesa, nesse aspecto. Se ela queria caçar, pois bem, que caçasse. Se ela queria lutar com espadas ou com lanças, que ela lutasse. O comportamento dela não afetaria ao reino ou à Eldestein. Por que ela haveria de incomodar-se com ele?

O que a irritava na princesa, não era a sua postura imprópria a uma dama ou sua teimosia em rejeitar os dotes que a tornariam uma nobre prendada, e, sim, o prazer sádico com o qual ela importunava seus tutores, pessoas mais velhas e dotadas de sapiência que haviam esforçado-se muito para alcançarem sua posição social. A senhorita Eldestein já chegara ao castelo, imaginando Julchen Beilschmidt como uma monarca mimada e egoísta que, por ser uma nobre, sentia-se no direito de importunar seus pobres instrutores e, por puro divertimento, atormentá-los até que eles não suportassem mais e desistissem do seu cargo!

Havia muito sentido naquela acusação.

Julchen Beilschmidt não cogitara que a motivação para as suas ações pudesse ser interpretada desse modo e pasmou-se ao perceber que havia provocado tal impressão em Rebeka. Foi ainda mais assombroso, para a princesa, perceber que a percepção que a burguesa tivera, a seu respeito, faria muito sentido, para alguém que visse somente as ações da nobre, sem conhecer seus sentimentos e metas.

A nobre ficou bastante perturbada com essa realização. Ela não imaginara que seu caráter pudesse ser tomado dessa forma. Sim, ela agira terrivelmente com seus tutores e, sim, ela havia se divertido consideravelmente com isso, mas... Ela não era a pessoa que a senhorita Eldestein via nela!

Ela não havia agido assim por pura malignidade e não tencionava aproveitar-se de sua posição para maltratar seus súditos! As suas ações tinham uma motivação honesta! E ela precisava contá-las para Rebeka! Rápido!

Julchen Beilschmidt não conseguiu suportar a ideia de tolerar por um segundo a mais esse desentendimento e não conseguiu aguardar a conclusão da fala da Eldestein. Ela a interrompeu, com pressa, desespero e uma exaltação nervosa, para explicar-se imediatamente.

A princesa não entendia por qual motivo ela se sentia tão ferida e assustada em provocar uma impressão negativa em Rebeka, quando ela não tinha por hábito cobiçar a aprovação alheia, mas seus sentimentos e instintos ordenavam que ela a corrigisse e ela o fez, sem pensar mais sobre o tema.

Quando as duas tiveram esse diálogo, a Beilschmidt estava sentada ao lado da senhorita Eldestein, que costurava uma bolsa, em uma das cadeiras do salão de música e ao ouvir o relato dela, ela reagiu impetuosamente, agarrando-lhe os ombros e exclamando que Rebeka estava enganada. Ela não era assim!

Em um único e desenfreado fôlego, a nobre contou à Rebeka sobre sua vida, sonhos, projetos e obstáculos, explicando seu comportamento, suas aspirações e seus aparentes defeitos. Por vezes, os sons quase desmanchavam-se em sua garganta, pois ela mal respirava ao falar. Ela agitava seu rosto, aumentava o volume de sua voz e tornava-se progressivamente mais vermelha em sua afobação. Os seus olhos pareciam implorar para que Rebeka a ouvisse.

E ela a ouviu.

– Eu deveria ter imaginado que a sua motivação seria algo do gênero. – respondeu Rebeka, muito serenamente, com um contentamento que se manifestava em absoluta discrição - Vossa majestade é demasiadamente ingênua para perversamente utilizar-se de suas relações de poder. Um plano infantil, como esse, combina perfeitamente com a sua personalidade, devo dizer.

– Ei, Rebeka! Esse plano não é infantil! Ele é...!

– Incrível? – ela adivinhou, colocando alguns cachos de cabelo em seu rosto para camuflar um sorriso.

–... Obviamente. – murmurou Julchen, um pouco frustrada por ter seus pensamentos previstos e sentir que isso, de algum modo, tornava-a a perdedora do pequeno embate entre as duas.

– Bem, você não precisa mais utilizar-se de um plano assim. – a Eldestein declarou com franqueza, em um semblante que transmitia uma completa indiferença por suas próprias palavras, como se dizê-las não fosse nada mais do que um gesto de polidez - Eu estou aqui. Desde que eu receba meu salário e tenha acesso ao piano, eu não poderia importar-me menos com a sua educação, majestade.

– Eu estou confusa. – a Beilschmidt disse, franzindo a testa e inclinando seu rosto ligeiramente para o lado, como um velho cão ao ouvir um barulho estranho - Eu deveria agradecê-la por isso?

– É evidente que sim, sua tola. Ah. Eu poderia fazer um pedido, majestade?

– Sim?

– Largue os meus ombros.

Ao ouvir esse comando, Julchen Beilschmidt afastou-se subitamente de Rebeka, como se, por acidente, houvesse tocado em um objeto cuja elevada temperatura ardesse em suas mãos. O seu coração ainda estava agitado pelo choque, quando, ao encarar a plácida senhorita Eldestein, a princesa noticiou, pela primeira vez, o quão delicados os ombros dela pareciam.

A senhorita Eldestein, por sua vez, corrigiu a impressão que a princesa possuía dela, algumas semanas após esse incidente, e o fez com maior irritabilidade e menor afetação. Quando ela, ao tocar o piano, ouviu a casual pergunta da nobre, indagando-lhe como ela pudera abdicar à sua liberdade e dedicar-se a interesses tão monótonos, quando não haviam quaisquer expectativas ao seu respeito. Rebeka interrompeu sua execução e colidiu suas mãos sobre o piano, provocando um som estrondoso e grave, voltando-se para a nobre, com um olhar feroz:

– Liberdade? O que você classifica como liberdade, majestade? Eu tinha um futuro mais determinado do que o seu. Eu possuía limitações impostas não somente pelo meu gênero, como também pela minha classe. Eu não deveria aprender nada além do necessário a uma dona-de-casa. Eu não deveria ser nada além de uma dona-de-casa. Além disso, no seu caso, você deveria se casar para favorecer o seu reino. Em meu caso, eu deveria me casar para deixar de ser uma despesa para a minha família. Eu fui repreendida e maltratada de tantas maneiras terríveis, somente por tentar adquirir os conhecimentos que Vossa Senhoria se recusa tão avidamente a adquirir! Diga-me, majestade, por que eu seria considerada livre para agir como quisesse? Vossa Senhoria, não possui o direito de questionar minhas preferências, quando, essencialmente, nós somos muito parecidas. Se você houvesse nascido um homem, os seus interesses seriam considerado muito naturais, assim como se eu houvesse nascido uma nobre ou alguém mais abastada, os meus também seriam.

Após concluir sua firme argumentação que conseguiu deixar a nobre boquiaberta, Rebeka sentiu-se satisfeita com sua resposta, inspirou profundamente, e retornou a tocar, tomando aquele assunto como concluído.

A senhorita Eldestein também desconhecia o estado confuso, acelerado e caótico no qual deixara o coração da nobre, com apenas algumas sentenças. Caso soubesse, ela possivelmente não conseguiria retornar a tocar o piano com tamanha compostura.

Havia algo de muito estranho nos sentimentos atuais de Julchen Beilschmidt.

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Antes dos mal-entendidos entre as duas serem esclarecidos, a princesa já havia começado a ser acometida por algumas emoções um tanto confusas ao estar perto da senhorita Eldestein. Rebeka Eldestein era tão adorável e singular! A princesa não podia conter seu afeto por ela, ainda que desaprovasse muitos dos traços de sua dama de companhia.

Essas emoções, no entanto, não a preocupavam realmente. Elas não tinham volume, não tinham força e não tinham fôlego. Elas eram um tanto estranhas, é óbvio, mas desapareciam tão repentinamente quanto surgiam e, na maior parte do tempo, Rebeka era apenas Rebeka. Ela não era...bem...ela não possuía o imenso significado que parecia possuir para a Beilschmidt, quando aquelas emoções surgiam.

Todavia, quando as duas puderam se entender e se explicar uma para outra, mudanças graves ocorreram dentro de Julchen Beilschmidt e essas emoções, que limitavam-se a poucas faíscas perdidas, tornaram-se um incêndio incontrolável.

Rebeka não poderia retornar a ser apenas Rebeka. Ela representava muito mais do que isso, para a Beilschmidt, independentemente da vontade dela.

Em primeiro lugar, Rebeka era a sua melhor amiga.

Com as devidas explicações de ambas as partes, para justificar comportamentos tomados como recrimináveis pela outra, elas sentiram-se confortáveis em se tornarem mais próximas e permitiram a evolução gradual de enlaces entre elas, originando uma forte e sólida amizade, pouco compreendida pelos demais e pouco comentada pelas duas. Os meses e a insistência de Beilschmidt fizeram seu trabalho e, ao final daquele ano, já era difícil dissociar as duas damas, considerando-se a frequência com a qual elas estavam juntas.

Em segundo lugar, Rebeka era a pessoa mais similar a ela que a princesa já havia conhecido.

Elas eram similares. Era verdadeiramente curioso que Rebeka Eldestein pudesse ser considerada como similar à Julchen Beilschmidt, quando um observador comum as consideraria como inteiramente antagônicas. Bem, ponderava a princesa, divertindo-se com esse pensamento, elas certamente não eram idênticas! Oh, céus! Era cômico imaginar a imagem de Rebeka comportando-se como ela ou sua própria imagem comportando-se como Rebeka!

As diferenças entre elas eram muitas e significativas. Seria um erro absurdo dizer que ambas eram iguais. O que não significava que não houvesse fortes semelhanças implícitas entre elas.

Rebeka Eldestein e Julchen Beilschmidt eram igualmente orgulhosas e persistentes. Elas tinham seus objetivos egoístas e recusavam-se terminantemente a permitir que as impedissem de alcançá-los. Ambas guardavam sonhos e personalidades que não seriam próprios ou esperados em sua classe ou gênero.

“Se você houvesse nascido um homem, os seus interesses seriam considerado muito naturais, assim como se eu houvesse nascido uma nobre ou alguém mais abastada, os meus também seriam”. A frase de Rebeka sintetizara a principal semelhança entre elas, cuja existência não havia sido noticiada pela Beilschmidt até então. Essa sentença ecoou pela mente da nobre e vagou por seus devaneios por meses, enquanto ela a absorvia gradativamente.

Ela e Rebeka não eram idênticas. Seria absurdo fazer tal afirmação. No entanto, percebeu a princesa, em uma porção muito íntima de cada uma delas, ambas eram muito parecidas. Havia uma similaridade essencial a uni-las e essa singela similaridade era suficiente para possibilitar que elas se compreendessem melhor do que qualquer um poderia compreendê-las.

Por fim, Rebeka Eldestein era pessoa mais admirável – após ela mesma, é óbvio – que Julchen Beilschmidt havia conhecido.

Julchen Beilschmidt já conhecia algumas informações sobre a vida da senhorita Eldestein, por conta dos boatos que percorriam o reino e o castelo. Havia uma moça denominada Rebeka Eldestein que não possuía fortunas ou linhagem e, por conta própria, havia se tornado mais prendada do que as filhas de muitos nobres. No entanto, ela nunca soubera as dificuldades que sua dama de companhia teve que enfrentar para adquirir sua impressionante reputação e seu domínio sobre sua vida. Os relatos da senhorita Eldestein revelaram que sua trajetória em nada se assimilava ao caminho claro e direto que a princesa supunha ter sido.

Rebeka havia sido pressionada por todos a desistir de seus planos e casar-se. Ela, por um grande período, não teve o suporte ou os elogios de ninguém. Muitos de seus primeiros patrões a submeteram a maus tratos e exploraram ao máximo seu trabalho, sob o argumento de que ela poderia muito bem desistir, se quisesse. Eles esforçavam-se para convencê-la de que ela não deveria estar lá e não precisava estar lá. Os seus tutores ralhavam com ela ao menor erro que cometesse e perguntavam por que ela insistia tanto em aprender dotes, quando seu sangue estabelecia que ela jamais poderia ser considerada uma dama. Mesmo os seus pais, apesar de não forçarem-na a voltar e desistir de seu projeto pessoal, não a apoiavam e não tinham admiração ou orgulho dos feitos de sua filha. Eles a consideravam um tanto excêntrica, na verdade, e questionavam-se quando ela pararia de migrar por casas de fidalgos e ricos comerciantes e se casaria com o jovem filho do ferreiro, que já se achava impaciente com a educação liberal de sua noiva.

E o que fez Rebeka Eldestein ao confrontar-se com tantos obstáculos? Ela meramente os ignorou.

Ela ignorou a pressão de seus pais, de seus tutores, de seus patrões e da sociedade e continuou a executar suas tarefas com um perfeccionismo admirável. Ela desprezava os deboches, conselhos e insultos que recebia, considerando-os indignos de receberem sua atenção, e centrava-se em utilizar suas forças para cumprir com os deveres de sua função e dedicar-se ao aprendizado que recebia em troca.

Ainda que fosse exaustivo e angustiante permanecer em tão torturante rotina, ela não se deixaria abalar facilmente e, definitivamente, não desistiria. Ela tinha uma meta – bastante razoável, em sua percepção - e pretendia alcançá-la. Seria preferível desfalecer sobre um piano ao ter que viver ativamente na casa de seu marido e senhor. Pensando dessa forma, Rebeka Eldestein persistiu, com tamanha dedicação e vigor, que adquiriu uma expansiva fama por todo o reino e, em poucos anos, fidalgos e comerciantes ricos passaram a insistir em tê-la como governanta, tutores tornaram-se ansiosos por ensiná-la e seus pais acharam que seria melhor cancelar os planos que tinham com a família do ferreiro, pois a popularidade de sua filha única certamente possibilitaria que ela conseguisse um casamento melhor.

A biografia dela, Julchen devia admitir, era bem mais impressionante do que a princesa pensara. Ela não cogitara que aquela jovem dama pudesse ter um espírito rebelde, em seu interior! Quem poderia supor isso? Aquela Rebeka Eldestein, que parecia tão pomposa e acomodada, era uma versão ligeiramente similar ao que a nobre pretendia ser no futuro! Independente, livre e vitoriosa. Definitivamente, vitoriosa. A princesa não podia negar que sua amiga, ao seu peculiar e estranho modo, era uma jovem incrível.

A nobre a respeitava imensamente.

Todas essas razões pareciam explicar por completo o carinho e admiração que Julchen Beilschmidt possuía por sua melhor amiga, mas não as emoções confusas que a Eldestein despertava nela. Elas não eram tão simples e havia uma forte possibilidade de que fossem inefáveis.

Possivelmente, seria mais fácil categorizá-las, caso elas não fossem tantas, caso não fossem tão contraditórias e se não viessem simultaneamente, misturando-se, em uma confusão caótica, como as tintas de um quadro exposto à chuva.

Calor e frio. Descontentamento e contentamento. Entusiasmo e frustração. Dor e alegria. Apreensão e ansiedade.

As mais diversas sensações vinham à Julchen Beilschmidt, quando ela interagia com a senhorita Eldestein em variadas intensidades e nuances, e por não conseguir controlá-las ou compreendê-las, ela facilmente sentia-se agitada e nervosa com a presença de sua amiga.

Essas sensações eram demasiadamente mutáveis e instáveis para que a princesa conseguisse cogitar em agrupá-las de algum modo. Ela as via como emoções dissociadas e, por essa razão, não conseguia assimilá-las.

Frequentemente, ela podia tomar as sensações estranhas que sentia, como um dos efeitos da forte amizade que possuía com a Eldestein. Desse modo, ela justificou sua enorme ânsia em ver Rebeka por um tempo maior – o que culminou em uma aceitação parcial dela em submeter-se a algumas lições, para que o rei não acusasse sua dama de companhia de negligência, como seria o caso, se ele percebesse que as duas estavam sempre juntas, contudo, esse tempo não estava sendo utilizado para a educação da nobre - e seu desagrado em ver cavalheiros cortejando a sua Rebeka e tentando roubá-la de sua companhia.

Existiam, porém, emoções que não pareciam muito associadas ao que seria uma amizade, para Julchen Beilschmidt, e essas eram as mais perigosas e angustiantes dentre elas.

Como, por exemplo, as curiosas sensações que ela teve, quando ela e Rebeka começaram a conversar sobre as diferenças nos corpos das duas.

Elas estavam sentadas na cama de Rebeka, vestidas em seus trajes de dormir, e conversando sobre os romances que haviam lido, durante o verão, quando a princesa cedeu a um impulso de confessar à sua dama de companhia que invejava alguns traços de seu tipo físico. Rebeka pareceu pasma com essa revelação e disse que o tipo físico da senhorita Beilschmidt era muito mais digno de apreço do que o seu. Julchen Beilschmidt, ouvindo isso, tornou-se tão pasma quanto sua amiga e severamente confusa com o senso de estética dela. A nobre era incrível em muitos, muitos aspectos, mas tratando-se unicamente de comparações entre características físicas atraentes, era óbvio que Rebeka teria uma vitória inquestionável. Rebeka Eldestein era mais alta, além de possuir uma cintura mais fina e delineada do que aquela que pertencia à senhorita Beilschmidt! Ao lançar esses argumentos, a nobre recebeu uma modesta e ponderada resposta de sua tutora.

– Eu entendo o seu ponto, mas veja que ser mais alta é uma vantagem estética apenas quando você, mesmo sendo alta, ainda é mais baixa do que os homens. A sua altura seria mais apelativa que a minha, majestade, em muitos casos. Ah. A sua cintura pareceria tão fina e delineada quanto a minha, caso você usasse um espartilho.

Argh! Eu não faria isso! Espartilhos são tão sufocantes, Rebeka! – ela resmungou lamuriosamente, apanhando um enorme travesseiro ao seu lado e o abraçando, como se pudesse sentir a dor em questão, somente por citá-la - Eu soube de casos de mulheres que desmaiaram, ao usá-los...!

– Elas desmaiaram, pois foram estúpidas e os apertaram demais. – respondeu a Eldestein, duramente - Eles devem acentuar sua cintura, não espremer o seu corpo como se espremeria uma laranja.

– Humpf. – os cantos da boca de Julchen curvaram-se em ceticismo e desdém. - É fácil para você, dizer isso! Você nem precisaria de um espartilho, Rebeka! – disse Julchen, acusatoriamente, apertando a fina cintura de Rebeka para enfatizar o seu ponto - Olhe isso!

– N-Não me toque assim, sua tola! – exclamou a burguesa, recuando em um sobressalto.

– O que há com você? – perguntou a senhorita Beilschmidt, estranhando e recriminando internamente a reação exagerada de Rebeka ao seu gesto inocente - Não é como se eu fosse um Don Giovanni tentando seduzi-la. Não fique assustada com um pouco de contato físico, Rebeka.

– Eu não estou assustada... – a senhorita Eldestein declarou, com um olhar baixo, recompondo-se - Eu apenas tenho alguns complexos em relação ao meu corpo e não gosto que minha ausência de carnes seja apontada... – ela murmurou, com uma sinceridade que intimamente, muito intimamente, continha um teor alarmantemente triste.

– Complexos?! Você?!

– Evidentemente. – ela se ergueu novamente, corrigindo sua postura e, ao falar, colocando-se de forma mais prática e insensível - Como eu não os teria? O meu rosto é excessivamente comum e meu corpo possui uma aparência frágil e doente. Se eu pudesse escolher, gostaria de ter trejeitos físicos mais próximos dos seus.

A Beilschmidt fitou sua companheira de cima a baixo, com um olhar analítico e atônito. Ela rapidamente observou os vários detalhes que compunham o corpo da senhorita Eldestein, buscando encontrar na combinação desses elementos, uma desarmonia que justificasse a autocrítica de sua amiga.

Ela não foi capaz de localizá-la.

Era verdade que Rebeka era magra e sua estrutura física aparentava ser quase quebradiça. Inegavelmente, ela era pálida, o que permitia o vislumbre de suas veias, linhas suaves e verdes, subindo por seus pulsos, além de enfatizar os ocasionais rubores de seu rosto. Entretanto, esses traços dificilmente poderiam ser considerados como defeitos em Rebeka, quando lhe caíam tão bem.

Ademais, qual seria o mundo injusto e severo que consideraria o rosto que ela possuía como excessivamente comum?!

– Você está brincando, não está, minha cara Eldestein?

– Não, não estou. – ela agitou seu rosto para os lados - Ao invés de ser tão pálida e franzina, eu preferia ter o seu aspecto saudável em meu semblante. Eu posso ter uma cintura fina, mas não se esqueça de que Vossa Senhoria possui um busto maior e uma quantidade de músculos que lhe caem muito bem.

– Bah! O meu busto me atrapalha, quando eu tento praticar o meu arco-e-flecha! – ela reclamou, com um azedo desagrado tomando-lhe as faces, ao se lembrar das inúmeras inconveniências que a proporção avantajada de seus seios lhe trazia. - Além disso, eles são pesados e ficam desconfortáveis na maioria das roupas! Acredite! Você não gostaria de possuí-los!

Rebeka revirou os olhos e deu um pequeno suspiro aborrecido.

– Falsa modéstia não combina com você, majestade.

– Eu não estou agindo com falsa modéstia! Há vários elogios que você poderia ter dirigido à minha incrível pessoa, Rebeka, mas você não escolheu aqueles que mereço receber! Como falei, o meu busto é um incômodo terrível. Os meus músculos, eu reconheço, são muito úteis, todavia, não vejo como eles podem parecer atraentes em uma mulher.

– Que bobagem. Por que importaria se você é uma mulher ou não? Eles ficam bem em você e o seu gênero não pode me convencer do contrário. Vossa Senhoria não possui uma quantia excessiva deles e eles parecem tão proporcionais no seu corpo... – ao dizer isso, Rebeka inclinou-se e tocou o braço de sua amiga, deixando que sua mão passeasse por seus contornos e, ignorante dos efeitos dessa ação, provocando na nobre, arrepios terríveis que vinham como correntes elétricas que pareciam subir e descer por seu corpo, tornando-se especialmente incômodas ao passarem por seu ventre.

A princesa, é claro, sentiu-se muito, muito desconfortável com isso e envergonhou-se severamente de si mesma, por ter condenado a reação de Rebeka a um pouco de contato físico, quando a sua estava sendo infinitamente pior.

Argh. Como aquilo era horrível! O seu estômago parecia estar ao pulos, o seu coração em uma corrida e por que diabos o ar havia se tornado tão rarefeito, de repente?!

A senhorita Beilschmidt sentiu-se muito perdida quanto ao que deveria fazer, pois, ao mesmo tempo em que queria pedir que Rebeka parasse ou queria saltar para trás, como a mesma havia feito, Julchen achava que pareceria pouco natural de sua parte, afastar-se de sua amiga, quando a princesa era reconhecidamente uma pessoa destituída de pudores quanto a expressões físicas de afeto, e não ansiava verdadeiramente que aquele contato fosse interrompido.

Em sua confusão, ela permaneceu imóvel, como se petrificada naquela posição, encarando o seu braço com a mescla de desconfiança e receio com a qual observaria um suposto inimigo de guerra alegando ser um espião a serviço do Estado.

– O seu tipo físico fica melhor com eles. – concluiu Rebeka, interpelando o caótico confronto interno da Beilschmidt, e prosseguindo a deslizar sua mão sobre o braço de sua amiga, com inocente interesse. - Como eu poderia me expressar? Hum. O seu lado atrativo se assemelha com o das estátuas dos deuses pagãos, deixadas pelos antigos?

– Ei! Ser comparada com Hércules ou Ulisses, não me deixa muito feliz! – a princesa protestou, largando abruptamente o travesseiro que apertava e agarrando as cobertas da cama em um impulso provocado pela irritação. Ela podia estar um tanto atordoada, agora, mas ainda sabia quando um elogio não era exatamente lisonjeiro!

– Eu estava pensando em Vênus, para ser franca. - corrigiu a senhorita Eldestein, placidamente.

–...

...Julchen precisou de alguns segundos para realizar que realmente escutara aquilo que ela pensava ter escutado e perceber as dimensões que aquela sentença possuía.

Eu estava pensando em Vênus, para ser franca. Eu estava pensando em Vênus, para ser franca. Eu estava pensando em Vênus, para ser franca.

Julchen noticiou, estupefata, que aquela singular sentença era o elogio mais direto da senhorita Eldestein que ela receberia em toda a sua vida.

Vênus. Vênus. A própria senhorita Afrodite!

Céus! Aquilo era...!

Embaraçoso. Realmente embaraçoso.

A Rebeka havia dito aquilo como quem comenta sobre o tempo ou sobre o casamento de um parente distante, então Julchen não havia realizado, anteriormente, e inicialmente limitou-se a sentir lisonjeada com o elogio, mas, pensando melhor, aquela comparação fora deveras constrangedora, não fora?

Vênus? Vênus?!

Ela sabia que Rebeka tencionava ser gentil e cortês, nada além disso, porém, sendo essa a sua intenção, ela deveria ter escolhido uma comparação mais moderada. Dentre tantos deuses pagãos, por que ela escolheu justo essa? Se fosse um cavalheiro a dirigir o mesmo elogio à Beilschmidt, a nobre estaria certa de que ele estava a cortejando!

Esse último pensamento teve o efeito de deixá-la ainda mais nervosa.

Argh! Por que era tão difícil receber um único elogio de Rebeka, sem corar como uma rosa, quando ela gargalhava vitoriosamente ao ser aclamada por multidões?! Julchen era uma incrível princesa e merecia mais elogios do que o vocabulário de sua língua permitiria que ela recebesse! E ela estava convicta disso! Entretanto, quando Rebeka a elogiava... Argh!

– Eu venci essa discussão, majestade? – perguntou a burguesa, com um discreto sorriso satisfeito, ao ver o rosto da nobre brilhando como fogo.

– Cale a boca. – resmungou Julchen, abraçando-se aos seus joelhos, amuada e ainda vermelha - Como você poderia ter qualquer senso de beleza? Você é inegavelmente linda e nem percebe isso...

– E-Eu não sou...! – tentou protestar Eldestein.

– Eu também penso que não sou! – interrompeu a princesa, confrontando-a com um olhar firme e ardente.

E as duas se encararam, completamente enrubescidas por suas emoções de inconformismo e embaraço, por vários minutos. As respirações de ambas estavam aceleradas pelo mesmo fenômeno.

A colisão entre os olhares delas durou até o instante em que elas sentiram-se desconfortáveis o bastante para desfazê-la. Rebeka, então, voltou-se ao seu romance, tossindo secamente, e Julchen levantou-se e, pondo-se de costas para a cama, começou a alongar seus ombros que pareciam ter carregado quilos de trigo por dias.

Eram momentos e sentimentos assim que realmente confundiam a Beilschmidt.

A princípio, eles a agitaram e a atordoaram de tal modo que a princesa mal conseguia dormir, relembrando e analisando cada diálogo seu com Rebeka, e não conseguia controlar suas expressões faciais, quando a Eldestein aparecia. O impacto inicial deles foi terrível para a nobre. Ela não conseguia entendê-los e eles a atormentavam tanto!

A única esperança dela era a de que eles fossem uma das consequências de sua aproximação de Rebeka. Um efeito temporário do desconforto existente entre duas pessoas que estão alcançando um grau muito elevado de intimidade e que ainda estão acostumando-se com a importância que adquiriram uma para a outra.

Ela esperou ansiosamente que eles desaparecessem.

O que não aconteceu.

Eles não se dissiparam, mas, felizmente, ela habituou-se a eles. Ela acostumou-se com as sensações estranhas que a senhorita Eldestein, constantemente, provocava nela e aprendeu a tratá-las com casualidade. Ela não mais procurou justificá-las ou nomeá-las. De que importava a classificação dos seus sentimentos, se ela parecia trazer tantos transtornos à sua amizade com Rebeka?

Rebeka Eldestein era a pessoa mais importante do mundo, para a nobre. Esse era o único fato relevante, para Julchen, e todas as emoções subsequentes dele não deveriam ser analisadas, somente vivenciadas. Como alguém vivencia a primavera, uma composição ou um pôr-do-sol, a princesa as vivenciaria sem definir o que elas exprimiam e encontraria grande deleite nelas, mesmo sendo inapta a descrevê-las.

Com essa resolução, dias bem mais tranquilos vieram para a nobre.

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Decorridos quatro anos, Julchen Beilschmidt e Rebeka Eldestein ainda brigavam. Muito. As opiniões delas se divergiam em muitos pontos e ambas se recusavam em ceder ao defendê-las. A princesa continuava a implicar com a Eldestein – “afetuosamente”, segundo a nobre – e Rebeka continuava a replicá-la com um seco sarcasmo e a vingar-se por meio de vários métodos, quando possuía a oportunidade - “merecidamente”, dizia a burguesa.

A princesa conhecia Rebeka o suficiente para saber que palavras dizer para deixá-la vermelha, irritada, agitada ou para convencê-la a ceder quando sua tutora negava-lhe algo.

Rebeka conhecia a princesa o suficiente para saber que ações tomar para deixá-la embaraçada, agitada, assustada ou para convencê-la a comportar-se, quando ela agia como uma criança mimada. Doces feitos pela Eldestein eram usualmente os melhores subornos e se ela não os utilizava sempre, era devido ao seu receio de estar incentivando maus hábitos alimentares na nobre.

Por serem muito próximas e muito opostas, elas brigavam com frequência.

Apesar de, corriqueiramente, os conflitos entre as donzelas culminar em discussões inflamadas que podiam ser ouvidas por todo o corredor e pareciam ecoar por todo o castelo, naquela data, havia um confortável silêncio entre elas que somente não era completo, pois a Melodia em Dó Menor opus.42 no.2 de Fanny Mendelssohn era tocado pela tutora da senhorita Beilschmidt e suas notas flutuavam pelo ambiente, com a leveza dos flocos de neve.

Em concomitante, a senhorita Beilschmidt ainda tentava terminar seu lenço, mas tinha sua atenção desviada por seus pensamentos e olhares furtivos para Rebeka.

Para Julchen Beilschmidt, havia um lado divertido nas brigas delas. As trocas de ironias entre elas, em sua percepção, eram muito aprazíveis e não havia visão mais agradável do que uma senhorita Eldestein bufando e franzindo as sobrancelhas, vermelha de irritação e constrangimento.

Se ela não considerasse seus pequenos conflitos tão deleitáveis, não se incomodaria em provocá-los, mas apesar de seu gosto em perturbar Rebeka, ela também sabia apreciar imensamente experiências tranquilas como aquela.

A princesa não gostava de costurar, cantar, bordar, valsar ou de outros passatempos, considerados característicos em seu sexo e supostamente as lições de Rebeka deveriam ser experiências profundamente monótonas para ela – e, esporadicamente, eram – todavia, isso não acontecia obrigatoriamente.

Diferente do que acontecia em suas lições com outros tutores, a princesa estava ciente de que Rebeka não reclamava de suas falhas em suas lições por um senso de desprezo em relação a ela ou por um real rigor quanto à educação da nobre. Conforme dissera há muitos anos, a burguesa pouco se importava com os gostos de sua aluna e, se a importunava a adquirir certos hábitos, ela o fazia meramente por sua obrigação como tutora e, sobretudo, por sentir um entusiasmo, bastante compreendido pela princesa, em compartilhar seus conhecimentos quanto a temas que a interessavam. As razões dela eram simples e justas e a nobre as assimilara perfeitamente. A senhorita Eldestein corrigia a sua costura, como a Beilschmidt corrigia a sua postura, quando as duas cavalgavam juntas. Ela podia ser tão ou mais severa do que Rebeka, quando queria corrigir os erros de sua dama de companhia, portanto, não lhe cabia se ofender ou se magoar, quando Rebeka cobrava mais atenção aos seus deveres e mais qualidade em seus resultados.

Ela mesma berrara várias vezes com a Eldestein, quando tentou ensiná-la a usar o arco-e-flecha! Seria hipócrita de sua parte, reclamar do perfeccionismo das lições de Rebeka, quando a princesa era igualmente detalhista – além de consideravelmente mais feroz - ao ensinar algo à burguesa.

Julchen Beilschmidt sabia que os sentimentos que Rebeka Eldestein possuía, ao transmitir-lhe tarefas e explicações, não continham uma gota de desprezo. A sua amiga tinha interesses diferentes dos que ela possuía, mas não rejeitava os valores da senhorita Beilschmidt e possuía, inclusive, certo fascínio por muitos de seus gostos, embora os considerasse como impraticáveis em seu caso.

Não havia pessoa que escutasse lendas e histórias de guerras com um olhar tão atento, estático e vívido quanto o que a senhorita Eldestein oferecia à Beilschmidt, ao ouvir as narrativas da princesa. Ela parecia tomada por um arrebatamento que a paralisava por completo, mal permitindo sua respiração. A sua expressão sofria sutis mudanças durante o percurso da estória, acompanhando os acontecimentos. Julchen Beilschmidt desfrutava amplamente da sensação maravilhosa de ter uma ouvinte tão compenetrada e interessada e era tomada por jubilo pela atenção que recebia de Rebeka.

Assim como a senhorita Eldestein revelou certa afinidade com algumas de suas preferências e exibiu um comportamento passivo ao receber críticas da Beilschmidt, esta também se permitiu alterar sua percepção quanto aos esquisitos gostos de sua amiga.

Ela ainda considerava os principais entretenimentos de Rebeka bastante chatos. Terrivelmente chatos. Como ela conseguira passar tantos anos, ocupando-se diariamente com atividades tão tediosas? Era impressionante que a monotonia não houvesse destruído sua razão!

Aprender a tocar o piano era chato. Aprender o francês era chato. Aprender a costurar era absurdamente chato.

Nesse plano, as ideias de Beilschmidt não foram modificadas pelo convívio com a Eldestein, e sim, reforçadas. Todavia, ela certamente encontrou prazer em assistir suas lições, pois a sua monotonia ao executar as tarefas transmitidas por Rebeka, era compensada pelo fascínio que a princesa tinha em assistir sua tutora, ocupando-se com os mesmos afazeres.

A senhorita Eldestein era criativa, sensível e habilidosa e isso se refletia nos resultados de suas produções artísticas. A princesa ficava estupefata ao ver o que ela conseguia extrair de um piano, de uma harpa, de uma tela em branco ou de um amontoado de fios.

Julchen Beilschmidt não conseguia retirar seus olhos de sua tutora, quando esta estava compenetrada em suas ocupações. Rebeka era talentosa e era divertido observá-la e ver o gradual surgimento de uma peça rica em detalhes, de uma paisagem rica em cores ou de uma composição rica em sentimentos, emergindo de suas mãos.

Era igualmente fascinante – e essa parte, ela nunca mencionaria à Rebeka ou a ninguém – observar sua própria amiga e ver o quão intensos se tornavam seus olhos violetas, quando a senhorita Eldestein estava compenetrada, como os movimentos do corpo dela eram graciosos quando ela valsava ou tocava o piano e a maneira como ela mordia seu lábio inferior, quando estava relutante quanto a algum aspecto de sua produção.

Kesesese! Sim, é verdade,”, pensou a princesa, contendo um sorriso afetuoso e observando o semblante atento da senhorita Eldestein enquanto essa tocava a Melodia em Dó Menor, “após todos esses anos, a minha maior diversão ainda está em observar essa curiosa jovem dama e as múltiplas feições que ela esconde através de sua habitual expressão estoica.”.

– Majestade, é inútil que vossa senhoria me encare dessa forma, quando estou simplesmente cumprindo ordens. – Rebeka disse, com um tom vagamente repreensivo, despertando a senhorita Beilschmidt de seus devaneios; confundindo o que seria um olhar de devoção com um mero apelo silencioso para que ela permitisse que Julchen parasse de costurar. - Se não é seu desejo terminar esse lenço, saia desse recinto e permita-me continuar com meus afazeres. – ela sugeriu, secamente.

– Sem chances, Rebeka! Não subestime a incrível herdeira da família Beilschmidt! Fazer um lenço é uma tarefa extremamente chata, mas eu a executarei com tamanha perfeição que você o utilizará para secar suas lágrimas emocionadas, quando eu o concluir!

– Pois bem. Boa sorte. Eu devo lembrá-la de que não é a minha aprovação que Vossa Senhoria busca. O seu futuro marido é aquele que deve apreciar a sua...

Pronto. A conversa sobre maridos havia começado novamente! Julchen detestava quando isso acontecia!

Julchen adorava Rebeka. Ela era a sua melhor amiga, uma pessoa incrível e uma companhia da qual ela nunca se esgotava. Ela se divertia em implicar com Rebeka, conversar com Rebeka, receber sarcasmos de Rebeka, trocar conhecimentos com Rebeka, participar das mais diversas atividades com Rebeka... Porém!

Esse era o único ponto na convivência delas que chateava sinceramente a Beilschmidt. A persistência de Rebeka no que era tocante a casamentos. Ao casamento de Julchen, mais precisamente. Embora a senhorita Eldestein não tivesse pretensões para se casar e não discutisse muito esse assunto com a Beilschmidt, ela, ocasionalmente, acrescentava às suas reprimendas, lembretes de que ela era a responsável em preparar a princesa para tornar-se a noiva de um nobre respeitável e de que o seu anseio de que a nobre fizesse um bom casamento seria frustrado, caso a nobre continuasse a se comportar de tal e tal maneira. E esses comentários, ainda que raros, tinham o efeito de destruir o bom humor da Beilschmidt, nas poucas vezes em que vinham.

Julchen Beilschmidt não queria se casar e detestava todas as recomendações e desejos de que ela fizesse isso, sobretudo, se viessem de Rebeka porque...hum...porque....Porque era injusto!

Por que Rebeka queria tanto que Julchen se casasse?! Era como se sua amiga estivesse tentando livrar-se dela! Julchen jamais ansiaria que Rebeka se casasse, deixando que um idiota qualquer ficasse entre elas! Rebeka, como sua melhor amiga, não deveria sentir o mesmo? A ideia de que elas não sustentavam o mesmo sentimento quanto a esse tópico deixava a Beilschmidt descontente e sombria.

– Céus. Marido? Quem está falando de maridos, Rebeka? Eu não sei por que você insiste nesse assunto. Não é como se eu tivesse um noivo que está me aguardando do outro lado da porta e que receberá meu lenço como uma aliança.

– Lastimavelmente.

– Rebeka! – ela exclamou, em um tom ferido.

– Por que essa expressão magoada? Eu conheço bem a sua rebeldia juvenil, mas não posso deixar de desejar, como sua tutora, que Vossa Senhoria faça um bom casamento. Eventualmente, esse também será seu desejo e poderá ser tarde para realizá-lo, caso você não tenha adquirido as qualidades atrativas em uma dama, a despeito de sua elevada idade. Homens são menos complacentes com mulheres mais velhas, majestade. Se Vossa Senhoria não se mostrar uma dama prendada, como poderá competir com outras princesas mais jovens e mais tolas?

– Você fala como se eu fosse uma anciã, Rebeka! Eu estou na primavera dos meus vinte e um anos!

– Primavera? Outono, eu diria.

– Se eu estou no outono, você já deve estar no inverno do ano seguinte, Rebeka! Você possui vinte e três anos e está tão solteira quanto eu!

– Realmente, eu não estou comprometida com nenhum cavalheiro, mas não é esse o ponto de nossa discussão...

– Eu gostaria que fosse! – interpelou a nobre, agravadamente, prosseguindo em um único fôlego quente - Eu não entendo como você pode me pedir tantas vezes para que eu me case e incentivar que eu me case, quando você, Rebeka Eldestein, recusou os avanços de tantos barões e baronetes! Não seja cínica, minha cara senhorita Eldestein! Se você possui tanta estima pelo casamento, por que você permanece solteira?!

Esse desabafo franco e direto não era originalmente um ataque, apesar das acusações e rancor que ele continha, e Julchen claramente havia sido a dama mais machucada com ele. Ela gritou tais sentenças torrencialmente em um impulso provocado pela sua indignação e decepção com a perturbadora apatia de sua amiga diante de suas queixas, não refletindo sobre as palavras que arrancara rudemente de seu coração.

Ao concluí-las, a nobre encarou Rebeka com um rosto intensamente escarlate, sua respiração acelerada pela afobação e uma hostilidade evidente em suas ardentes orbes escarlate, recebendo em resposta, um relance límpido e reflexivo da senhorita Eldestein.

– Perdoe-me. – disse brandamente a dama, movendo-se no banco para se posicionar em frente à Beilschmidt - Eu não havia me recordado de que o seu temperamento é demasiadamente passional para permitir qualquer nível de sensatez. Eu tentarei me expressar melhor, por isso permaneça atenta, sua tola.

– Rebeka! – exclamou lamuriosamente a princesa, não antecipando o desprezo com o qual estava sendo tratada, após suas reclamações.

Como sua melhor amiga podia ser tão fria, ao receber críticas tão ardentes?! Ela não deveria estar empalidecida de assombro com a realização de seus erros e murmurando pedidos débeis de desculpas à Beilschmidt? Ou, melhor ainda, ela não deveria correr para abraçar sua amiga e jurar, entre lágrimas emocionadas, que, se a sua verdadeira vontade prevalecesse, elas não se separariam por conta de casamentos? E, no entanto, estava tão composta e espirituosa, a senhorita Eldestein!

Os ares de profissionalismo com os quais ela se comunicava com a sua melhor amiga eram tão cruéis!

– Vossa Senhoria é a descente de uma longa linhagem monárquica e deverá se casar para estabelecer acordos com outras famílias importantes e beneficiar ao reino com sua ligação matrimonial. Como sua tutora e súdita, eu anseio que Vossa Senhoria faça um bom casamento e una-se a um bom senhor. – vendo que a nobre abria a boca para retrucá-la, Rebeka ergueu sua mão em um gesto que solicitava silêncio e adivinhando o que a princesa diria, ela fez um esclarecimento necessário - Eu não estou sendo hipócrita ao pensar assim, pois a minha situação é inteiramente diferente da sua. Eu não tenho o dever de me casar, não anseio me casar e não me casarei. Eu... – ela abaixou seu rosto e a senhorita Beilschmidt poderia jurar que viu uma coloração rósea tingi-lo, antes que a burguesa desviasse-o para o outro lado, retirando-o de seu campo de visão e ocultando, com seus cachos negros, qualquer porção de pele que pudesse revelar seu rubor. - Como sua instrutora, eu quero que você faça um bom casamento... - Rebeka inspirou, abrindo e cerrando seus lábios antes que palavras pudessem ser exprimidas por ele. Ela encontrou uma grande dificuldade em articular-se, quando sentia o olhar atento da Beilschmidt observar cada um de seus gestos e quase esmagar suas costas com sua intensidade. Por fim, reunindo coragem e determinação, a burguesa disse, com os lábios trêmulos e secos - Todavia, como sua amiga... – ela engoliu em seco e sua ouvinte, deparando-se com tal nervosismo e antecipando que algo grande viria daquele prenúncio, viu-se fazendo isso também.

As duas damas estavam como se congeladas em seus bancos, envoltas na mesma atmosfera de tensão que as encobria como uma névoa pesada e cinza. As diferentes expectativas de ambas aceleravam dolorosamente seus corações.

– Como Rebeka Eldestein... – a jovem dama reuniu seu fôlego, uma última vez, antes de concluir em um sopro de voz tão suave e recolhido que poderia ter sido abafado por qualquer som e ignorado a qualquer instante de distração da senhorita Beilschmidt. Uma intuição dizia à Julchen que, intimamente, Rebeka ansiava que ele fosse abafado ou ignorado. Entretanto, havia um silêncio absoluto no recinto e uma atenção máxima da parte da Beilschmidt e, ainda que as palavras da Eldestein tenham sido tão baixas e discretas, ela pôde entendê-las claramente - Eu estaria perfeitamente bem apenas em prosseguir a ter dias como este e passar minha vida inteira em sua companhia, sem que algum cavalheiro nos atrapalhasse.

...E com essa simples sentença, o humor da senhorita Beilschmidt foi completamente transformado.

A amarga melancolia e rancor que a dominavam anteriormente foram rapidamente substituídos por uma alegria febril tão extensa que mal podia ser comportada em seu peito.

O seu coração estava imerso em um alívio líquido e quente, o qual teve como efeito uma dormência total recaindo sobre o corpo, agora, relaxado, da senhorita Julchen.

Ela teve suas desconfianças, suspeitas e temores tão maravilhosamente desmentidos, por alguém que não teria motivos para negá-los, caso fossem verídicos, que necessitou conter-se muito para não correr para fora do castelo e rolar sobre a relva ou para não erguer-se de sua cadeira e começar a saltitar incontrolavelmente.

Ao invés disso, ela abriu um enorme e afetuoso sorriso, o qual ela estava certa que deveria parecer bem estúpido em seu rosto, considerando-se que ela estava demasiadamente feliz para ter controle sobre suas expressões.

Ah! A senhorita Beilschmidt devia parecer irremediavelmente estúpida por felicitar-se tanto com uma explicação, contentar-se tanto com uma ocasional demonstração de afeto como essa e por não conseguir disfarçar o quanto estava satisfeita em recebê-las, mas o que isso importava a ela, no momento!

Era recíproco! Recíproco! O anseio da Beilschmidt quanto à sua relação com Rebeka era recíproco!

HÁ! Como ela gostaria que aqueles baronetes idiotas que costumavam cortejar a Rebeka, em todo maldito baile no qual ela comparecia, estivessem ali para escutar isso!

– Se você conseguiu compreender, cale-se e concentre-se em seus deveres, sua tonta. – pediu a burguesa, organizando novamente suas partituras. Percebendo que a nobre estava mais animada do que ela gostaria com a sua confissão, sua intenção era a de findar aquele assunto naquele ponto, antes que ele se tornasse mais problemático.

– Becky... – sorriu a Beilschmidt, perturbando Rebeka com a forma arrebatada com a qual ela dissera aquele ridículo apelido que nunca deveria substituir seu nome.

– Não me chame assim.

– Becky! – ela exclamou mais feliz.

– Quieta. – pediu Rebeka, mantendo forçadamente sua atenção na leitura de uma partitura, resoluta em ignorar a nobre.

– Becky! Becky! Becky!

– Eu posso servi-la, majestade? – a senhorita Eldestein perguntou, em um cínico tom de interrogação, voltando-se graciosamente para a nobre e a contemplando com um tênue sorriso que, perceptivelmente, era mais cáustico do que terno.

Eu te adoro.

Você pode me explicar novamente como eu devo fazer para acertar esse ponto?

Era um pedido deveras inocente e razoável, não havendo razões para que a Eldestein o recusasse. Além disso, refletiu a dama, um desvio de assunto não poderia ser mais cômodo àquela situação, apesar de ser um tanto desapontador e frustrante que viesse de Julchen a iniciativa de propô-lo.

Rebeka bufou, erguendo-se de seu banco para sentar-se ao lado da Beilschmidt.

– Não me resta outra opção. – ela respondeu, com sobriedade e resignação.

– Obrigada! Você é um doce, Becky! A própria Hebe em plano terreno! Não é uma jovem mais incrível do que eu, mas...!

– Eu irei tentar demonstrar como se faz esse ponto, majestade – ela disse, desafetada pelos elogios exagerados que recebia, apanhando parte dos materiais de costura que estavam sobre o colo da Beilschmidt - e sugiro que concentre-se em meus movimentos.

– Conforme queira, jovem dama. Ah! Becky! Posso fazer mais um pedido?

– Desde que Vossa Senhoria se comprometa a parar de chamar-me por esse apelido ridículo.

– Que seja. Quando nós terminarmos... – ela fez uma pausa hesitante, na qual reclinou seu rosto para baixo e subiu somente seu olhar - Nós poderíamos cavalgar juntas até aquele córrego próximo ao moinho?

–... Os seus deveres serão cumpridos com o devido esmero?

– Você tem a minha palavra!

– Não use casualmente a sua palavra. O rei ficaria horrorizado se soubesse o quanto sua herdeira é desleixada em suas promessas...

– Você aceita o meu convite, Becky?

A resposta da senhorita “Becky” foi um olhar duro e gélido, como a superfície de um lago no inverno.

– Desculpe-me. Você aceita o meu convite, senhorita Rebeka Eldestein? – corrigiu-se a Beilschmidt.

– Sim, eu aceito. – ela respondeu, muito polidamente, com um sorriso sutil quase escapando por seus lábios - Um passeio seria encantador, senhorita Beilschmidt.

– Becky... – a senhorita Beilschmidt murmurou, emocionada, antes de ter sua alegre contemplação interrompida por uma dor aguda em seu braço - AI! Droga! Não me espete com essa agulha!

– Espetá-la? De modo algum. Eu nunca espetaria uma herdeira real, majestade. Uma dama não agiria com tamanha falta de decoro. Esse foi um pequeno incidente, assim como a sua utilização desse apelido ridículo para referir-se a mim.

– “Pequeno acidente”?! Que diabos, Becky! Eu poderia perder meu braço e... AI! De novo, Rebeka?!

– Não pragueje, não me chame dessa forma e concentre-se nos seus pontos, majestade.

– Rebeka!

E assim como o corriqueiro, o conflito entre as duas donzelas culminou em discussões inflamadas que podiam ser ouvidas por todo o corredor e pareciam ecoar por todo o castelo. Quem as ouvisse, pensaria em quão fugazes podiam ser os momentos tranquilos de ambas, a julgar pela forma como o confortável silêncio entre elas havia sido tão brevemente findado.

Essa conclusão comum seria um engano, pois, independentemente dos conflitos que elas travavam, independentemente de suas diferenças, de seus impasses e de suas dissonâncias, não havia um instante no qual elas não estivessem confortáveis e tranquilas com a ligação que possuíam e, por vezes, elas sentiam-se mais felizes e unidas ao estarem discutindo e implicando-se mutualmente do que estariam em um calmo e solitário silêncio.

Os corações delas estavam conciliados e era isso o que importava, pois, enquanto preservassem em si, o mútuo desejo de permanecerem juntas, todos os dias, fossem eles tranquilos ou agitados, transcorreriam pelos anos, com a leveza dos flocos de neve, como uma composição de Fanny Mendelssohn.



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Notas finais do capítulo

YAY! Eu finalmente consegui concluir essa one e quero pedir desculpas pelo meu terrível atraso! Eu estive muito doente nas últimas semanas e, além de estar debilitada por conta disso, também estive muito ocupada com as minhas provas de final de semestre e com as complicações do início do segundo! As minhas desculpas são dedicadas principalmente à senhorita Bastet, que lançou esse desafio, pois eu disse para ela que estava perto de terminar há semanas!-_-º
Minhas sinceras desculpas. Como pode ver, as coisas escaparam um pouco de meu controle e essa fic se tornou um pouco mais longa do que minhas próprias regras determinaram. Como esse foi o meu primeiro shoujo-ai, eu decidi investir ao máximo nele e, infelizmente, minha decisão foi afetada pelo fato de que meu cérebro parece associar o conceito de "fazer o meu melhor" com o conceito de "fazer algo extremamente longo". Enfim, minhas desculpas.
O desafio da senhorita Bastet se consistia em fazer uma estória na qual os dois personagens estivessem em suas versões femininas e eu, uma pessoa com tendências feministas que adora a literatura feminina e feminista e cujas personagens favoritas usualmente são mulheres, não deixei de apreciá-lo devidamente.
As versões nyotalia! do Roderich e do Gilbert são as minhas preferidas, dentre as versões femininas dos personagens de Hetalia, e fiquei muito contente em trabalhar com elas!
O tema "tutora e aluna rebelde" é comumente utilizado em fics com nyotalia! e minha razão para explorá-lo foi meu desejo de criar uma estória desse gênero que, diferente das outras, não atribuísse razão a nenhum dos lados e não tivesse o clichê do professor/professora sádico(a) seduzindo seu/sua aluno(a) ao discipliná-lo nem o clichê do aluno/aluna sádico(a) seduzindo seu/sua professor(a) e provocando-o de modo a impedir que esse o ensine. Resumidamente, eu queria uma estória na qual elas fossem diferentes em alguns aspectos e similares em outros e na qual houvesse uma relação de amizade e respeito mútuo entre as duas. Com esses planos, eu acabei criando essa one que possui uma chuva de fluff, nuances de feminismo e a utilização de parte de meus conhecimentos históricos!
Pois bem! Permitam-me mostrar como algumas dessas nuances e alguns desses conhecimentos foram aplicados na fic!
1. Essa fic se passa em um período indefinido no início do século dezoito, no qual, apesar da ascensão da classe burguesa, o clero e a nobreza ainda detinham certo poder e a maioria das monarquias ainda estavam bem estabelecidas. Esse período é o meu favorito e essa coletânea ainda terá mais uma one que se passará nele ~
2. As composições da Fanny Mendelssohn são reais e, sim, existia uma Fanny Mendelssohn na família liberal e burguesa do compositor Mendelssohn que compôs a famosa marcha nupcial. O Félix Mendelssohn admirava muito as capacidades de sua irmã e, em diversas ocasiões, recorreu a ela para ajudá-lo a aperfeiçoar suas composições. Lamentavelmente, os pais de Fanny não permitiam que ela fizesse apresentações públicas e não a encorajavam a compor, o que não permitiu que ela pudesse ter uma carreira musical como a de seu irmão. No século dezoito, embora mulheres pudessem e fossem incentivadas a tocar o piano e ler romances, era socialmente inaceitável que elas compusessem ou escrevessem. Por essa razão, compositoras como a Fanny Mendelssohn e a Clara Schubert não puderam ter o reconhecimento e estímulo que mereciam e escritoras como as irmãs Brönte escreveram suas obras sob um pseudônimo masculino - é engraçado pensar que "A moradora de Windfell Hall", a obra da Anne Brönte, foi classificado como um romance impróprio para mulheres(!).
3. Geralmente, as pessoas fazem uma associação imediata entre "burguesia" e "riqueza" que não é necessariamente verdadeira. Quem eram os burgueses? Comerciantes. E, como nós sabemos, nem todo comerciante necessariamente é rico. As classes, no século dezoito, não eram tão estáveis e sólidas quanto os estamentos da Idade Média. Haviam nobres poderosos, nobres falidos, burgueses ricos e influentes, burgueses do que consideraríamos como classe média ou baixa e etc. No caso da Rebeka, ela era uma burguesa de classe média-baixa, o que seria um saco, pois além de sofrer o preconceito dos nobres poderosos e dos burgueses ricos e influentes, ela ainda sofria o preconceito dos nobres falidos, pois o orgulho era o último a morrer, naquela época - apesar de alguns nobres terem de se casar com burgueses ou alugar suas terras para se manterem!T.T
4. Eu coloquei as personagens para lerem romances e pus a Rebeka para tocar o piano repetidamente, pois você não pode deixar de pensar em século dezoito, sem associá-lo ao romantismo. No século dezoito, o surgimento da imprensa, substituindo a confecção artesanal de livros, gerou uma produção em massa de romances e a popularização desses, inclusive, entre mulheres e crianças. Como podemos verificar nos romances da Jane Austen, a leitura coletiva tornou-se uma atividade comum e a literatura, um assunto constante. E o piano? Bem, o piano é o símbolo do romantismo, dentro da música, pois, como um instrumento individualista, ele ia de encontro aos princípios egocêntricos do romantismo e recebeu, nesse período, um forte investimento pelos músicos. Schubert, Brahms, Mendelssohn, Lizst e Chopin seriam exemplos de grandes pianistas da época.
5. Ah! Os complexos físicos! Eles sempre existiram, minhas caras! Os padrões de beleza do século dezoito ditavam que uma mulher deveria ter uma cintura delineada - embora não pudesse ser muito magra - seios fartos e ser alta - entretanto, não mais altas do que os homens, como nos comprovam as mudanças de edição no livro "Little Woman" no qual o delicado personagem masculino, com a mesma altura da protagonista, foi modificado para um galã mais alto do que sua amiga, na segunda edição!
Eu não poderia deixar de abordar esse tema, tendo em conta a relevância que ele possui até a hoje e o fato de que estamos nos referindo a um período no qual os espartilhos foram a tortura de mulheres que não o usavam corretamente por sentirem-se muito inseguras em relação aos seus corpos!
6. Comparações com deuses gregos podem parecer um tanto bregas nos dias atuais, mas elas eram um elogio comum, nesses tempos, e eu tive que usá-las. Peguem um romance e constatem isso. Comparar uma dama à Hebe ou um cavalheiro à Apolo era algo normal e seria compatível com um "Que gata.", "Que cara lindo" ou o que quer que vocês usem hoje em dia.-_-º
7. Por fim, o título dessa one é uma referência à obra "Razão e sensibilidade" da Jane Austen! Essa one não é nada similar ao livro, eu posso garantir, mas eu tive que fazer essa homenagem porque a Jane é uma autora pré-feminista que criticou a educação conferida às mulheres da época, porque ela foi uma autora da classe média, com uma assumida identidade feminina, que conseguiu publicar e popularizar relativamente os seus trabalhos, em um período que dificultava que uma mulher fizesse isso, e, sobretudo, porque ela é minha autora preferida! Eu te adoro, Jane!>.
Como podem conferir, eu me esforcei muito para escrever essa one! Sendo assim, eu espero que vocês possam lê-la, apreciá-la e comentá-la e que possam fazer o mesmo pelas próximas da coletânea!
Bai, bai!:3
PS: Por favor, percebam que a negação dos próprios sentimentos que as duas fazem não se deve a uma idiotice característica de personagens de shoujo - "P-Por que o meu coração está doendo quando eu olho para o Fulano-kun?" - e, sim, ao fato de que era difícil reconhecer-se como uma lésbica em uma época que condenava tanto o homossexualismo e na qual mulheres eram tão firmemente reprimidas. Há indícios disso, dentro do texto, mas eu quis evidenciar essa informação para que comentários como "Como elas não perceberam que gostam uma da outra?! Que tapadas!" não ocorram. Se aceitar a própria sexualidade é uma experiência difícil mesmo nos dias presentes, o que se dizer daquele período? Compreendem?-_-º



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