Freedom escrita por Guardian


Capítulo 1
Único


Notas iniciais do capítulo

Guardian: Weeee, primeira fic que postamos juntas *--------*
Marii: Nossa!!! Não creio, primeira one em conjunto. Espero que gostem. o-o



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A porta da cela foi aberta, e como sempre que isso acontecia, o barulho do ferro sendo deslocado ecoou pelo corredor parcialmente vazio. Aquela era uma das coisas que mais odiava naquele lugar. Não a comida, não as pessoas, não a perspectiva de nunca mais em sua vida ter a oportunidade de ver plenamente o sol ou a lua. Não, aquele som o incomodava bem mais, porque com o resto, ele já havia se conformado. Nem sabia o motivo disso, só sabia que se tivesse direito a um último desejo, pediria que lubrificassem aquela porta, apenas para, ao menos uma única vez, não ter que ouvir aquele som se arrastando, para ao menos naquele último dia, não precisar escutá-lo como havia feito todos os dias dos últimos anos. Não importava para que andar fosse, em qual cela o colocassem ou quanto tempo se passasse. O lugar todo rangia. E ele não sabia o por que daquilo o incomodar tanto.

Entretanto ainda era estranho, após longos dez anos seus ouvidos não terem se acostumado. O olfato já se acostumara com o cheiro daqueles prisioneiros, cuja prioridade nem de longe eram banhos diários. O tato já se acostumara com a superfície gelada das barras de ferro. O paladar já não reclamava das refeições diárias de origem duvidosa. Era sempre a audição que mais o incomodava.

Mas nem sempre fora tão incômodo ter ouvidos apurados. De fato, houvera um tempo no qual eles eram bem úteis, captando com perfeição cada timbre de voz daquele rapaz. Não que ele tivesse algo de único ou especial, talvez apenas sua simplicidade fosse marcante.

Mas de alguma forma, ele era responsável por cada noite no qual o outro conseguia dormir tranquilamente. Pelos dias nos quais o barulho das celas não o incomodava tanto; pelas manhãs, quando ele acordava e era obrigado a lidar com aquela realidade.

Realidade esta que agora, chegava ao fim.

Caleb não reconheceu o homem que entrou em sua cela, calado e sem fazer contato visual, mas era bem óbvio qual era o trabalho dele ali. Meia hora para sua execução; ele tinha que ser preparado. Sentou-se na cadeira única da cela, e começou a sentir seu cabelo sendo cortado pelo estranho. O sentido daquilo? Perder totalmente sua identidade. Ao preencher o chão já sujo, com seus fios ruivos, mais compridos do que muitos costumavam manter, ele perderia enfim tudo o que restava "dele". Não teria mais um nome, não teria mais sua aparência, seria apenas mais um "homem desprezível que cometeu um crime odioso", como alguns guardas pareciam fazer questão de falar. Não deixava de ser algo até mesmo simbólico, raspar a cabeça daqueles prestes a prosseguir no corredor da morte, mas o significado daquilo estava enraizado na mente de cada um naquele lugar. Talvez, a única coisa que ninguém ali, que nenhuma circunstância, poderia lhe tirar, fosse seus pensamentos. Suas lembranças.

E por isso que conforme via cada vez quantidades maiores de seu cabelo caindo, alguns pelo canto do olho, outros bem na sua frente, não pôde evitar que algumas dessas lembranças lhe viessem à mente e o tirassem momentaneamente de onde estava.

Lembranças envolvendo ele. Arthur.




Afinal de contas, seus cabelos ruivos em nada lembravam aqueles fios claros, louros e lisos de seu antigo companheiro de cela. Na verdade, talvez nenhuma outra pessoa no mundo tivesse fios tão invejáveis quanto os daquele jovem problemático. E só Caleb sabia como Arthur conseguia ser complicado.

Foi naquela noite, dois anos atrás, quando o conhecera. Estava sozinho, como já havia se acostumado, reclamando dos presos que se recusavam a dormir e conversavam em alto e bom tom, compartilhando sua insônia com quem quisesse. E pior: com quem não quisesse também.

De repente, passos indicaram a aproximação de alguém. Na verdade, de duas pessoas, que caminhavam sem pressa e com passos curtos, que o ruivo só conseguia captar por conta dos ouvidos tão bem aguçados. Logo ambas as figuras apareciam diante de si. Um era um homem uniformizado, de azul, cabelos pretos e a típica postura autoritária.

Ao seu lado, um sujeito não muito alto, olhar sem vida, poucos músculos se destacando no macacão laranja, e ombros encurvados. O que mais chamava atenção, porém, era seu cabelo. Loiro, como Caleb jamais tinha visto antes. Definitivamente era um pecado aqueles fios de aparência tão suave estarem naquele lugar tão imundo.

Seria possível dizer quais foram os primeiros pensamentos que Caleb teve acerca daquele sujeito, ao vê-lo se aproximando a cada passo de sua cela? Pode-se tentar: Que aquele rapaz, de aparentes 19 ou 20 anos, não pertencia àquele lugar? Que os jovens de ultimamente só podiam mesmo ter sérios problemas para se envolverem – não que pudesse dizer muita coisa - em algo que inevitavelmente os acabasse levando para aquele inferno? Que por ser uma “cara nova” lá, vários presos iriam querer lhe dar as “boas-vindas”, e que talvez, ele até merecesse? Que aqueles olhos escuros e estranhamente distantes, se não opacos, passavam a intrigante impressão de que todo o brilho que ali deveria haver foi capturado por seus fios claros?

Mas na verdade, foram todos esses e mesmo assim, nenhum em particular.

O recém-chegado certamente possuía um motivo para estar onde estava. E ele provavelmente amaldiçoaria esse motivo quando percebesse como aquela prisão funcionava, talvez já com alguns hematomas espalhados pelo corpo. E aqueles olhos... Não combinavam com seu rosto. Eram vagos demais, e ao mesmo tempo causavam certo desconforto ao serem encarados. Verdade que o que mais chamara a atenção de Caleb foram seus cabelos, mas certamente o que mais o marcou, mais até mesmo do que tão belos fios, foram aqueles olhos.

Ao fechar os olhos verdes, ele ainda podia enxergar os escuros do outro em sua mente. Eles nunca o deixaram. Assim como aquela voz. Não conseguia, e nem queria, se livrar desses dois detalhes, de tão fundo que pareciam estar cravados em sua mente. Mas claro que ele só viria descobrir isso tempos mais tarde...

Talvez fosse por contrastarem tão fortemente com a aparência do rapaz, que aquelas íris sem vida tivessem despertado certo interesse em Caleb. Ou talvez fosse apenas a curiosidade por possuir algo diferente em seu cenário particular, após tanto tempo. O real motivo não importava, ao menos não para si.

Tudo no que pensava, naquela hora, era em sua própria curiosidade, que nem tinha certeza se entendia, mas que o consumia e o levava a perguntar...

– Qual o seu nome?

Como resposta, se tornou o foco da atenção daquele rapaz. Um brilho rápido, quase imperceptível, cruzou o castanho escuro. Os lábios, secos e também meio sem cor, balbuciaram algo que sequer atingiu os ouvidos do mais velho. Estranho.

– Como é? - Tornou a perguntar, passando certa agressividade. Não por vontade própria, apenas... Estava desacostumado com costumes sociais a esta altura.

Mas aquela agressividade involuntária pareceu divertir o outro. Podia ter sido apenas impressão, mas no momento que seus lábios voltaram a se mover, Caleb achou ter visto a sombra de um brilho passar por aqueles olhos. "Sombra do brilho"... Contraditório, não?

– Meu nome? É...




"Terminado".

Foi o que o guarda anunciou, após assinar o destino dos últimos fios ruivos.

Quase como se para tornar tangível o que havia acabado de ser feito, o homem levou a mão devagar até onde poucos instantes atrás havia um mar vermelho e rebelde. Não estava mais lá. Realmente... Não estava mais lá. Sentiu pela primeira vez a pele daquela região, sob seu toque direto, e era uma sensação tão... Estranha.

Não pôde evitar sorrir com aquilo. Iria morrer ainda naquela hora, de uma maneira não muito "agradável", e estava incomodado pela falta de cabelo.

Chegava a ser engraçado de tão bizarro que era.

Tudo o que faltava então era trocar de roupa. Podia ser considerado um ato de bondade dos carcereiros, permitir que ele tirasse aquele laranja horrível para colocar uma roupa nova e limpa? Um pequeno e último ato de consideração? Não, achava que não.

Ainda algemado e com um guarda andando perto de si, vigiando-o durante cada segundo, a mente de Caleb voltou a vagar. Há muito tempo aceitara sua condição, de alguém cuja liberdade não mais passava de uma utopia. Durante os primeiros meses, só queria sair daquela prisão. Após um tempo, começou a se perguntar como seria sua estrutura. Seus corredores e diversas salas.

Entretanto não demorou muito para que se conformasse. Talvez jamais fosse conhecer, e qual seria o problema nisso, afinal? Odiava o lugar com todas suas forças, toda sua raiva. Tão companheira durante seus anos que ele já nem mais sentia os efeitos, como a fúria ou a ânsia de fugir. Apenas raiva. Controlada e contida, mas presente.

Um sinal de que estava vivo. O único que tinha após a ida daquele rapaz. Será que ele já tivera curiosidade de conhecer aqueles corredores também?

Muito provavelmente não. Afinal, a curiosidade era algo dos dias iniciais, que se esvaía com o tempo. No começo, aquele louro de personalidade curiosa não tinha sentimentos tão banais ou desejos tão simplórios. Ele apenas andava. Mexia-se. Falava. E de vez em quando dava sinais de reais sentimentos, em forma de lapsos, quando conversava com Caleb. Mas apenas isso.




“Meu nome é Arthur”.

Arthur... A primeira vez que teve certeza da peculiaridade de sua personalidade, foi quase uma semana após sua chegada. Mais especificamente, durante a hora do almoço no refeitório antigo e mal cuidado. Depois de quase sete dias compartilhando a cela com aquele rapaz, formou a conclusão de que ele, por qualquer que fosse o motivo, havia abandonado o interesse em viver e adotado uma postura de total resignação e indiferença quanto ao que acontecia ao seu redor. Mas naquela hora, durante a refeição, foi que percebeu estar errado...

Por costume, Caleb se sentava com alguns outros detentos conhecidos de longa data, mas desde que chegou, Arthur se recusara a se sentar com qualquer um deles. Ficava sozinho em um dos cantos, e ignorava os convites que seu companheiro de cela fazia para se juntar ao grupo. Porém, naquele dia em específico, sua solidão foi atrapalhada.

Um homem – conhecido como Hans, mas ninguém ali tinha certeza se era mesmo seu nome verdadeiro – aproximou-se da mesa onde o rapaz tentava engolir o material orgânico duvidoso de seu prato, e parou bem ao seu lado. Não falou nada, a princípio, mas um sorriso indecifrável abriu-se em seu rosto. Arthur ergueu o rosto com uma lentidão entediada, e encarou o homem parado. Alto, musculoso, cabelos mal-cuidados, olhos pequenos demais na proporção de seu rosto, cicatrizes a amostra. O mais básico estereótipo de prisões.

"O que você quer?" estava bem visível nos olhos escuros do novato, e não de um jeito muito "amigável", por assim dizer. E a isso o outro enfim falou algo, com uma voz grossa e naturalmente intimidadora, com a qual o mais novo sequer ficou surpreso.

– Você ainda não recebeu nossas "boas-vindas", não é mesmo, novato? - havia certo deboche junto às palavras, e uma intenção maior por trás do sorriso mal disfarçadamente maldoso. "Boas-vindas"? O que, seria estuprado agora? Apanharia? Serviria de lacaio para o grandão? Ah, tá bom.

– Não que me recorde. - Arthur disse num tom de voz levemente entediado. Não sentia vontade de arrumar confusão com aquele homem, apesar de realmente não se sentir intimidado. Mas parecia que aquele não era seu dia de sorte.

– Que pena. Mas nunca é muito tarde, não? - O outro sorriu, exibindo uma fileira de dentes amarelados, dentre eles um de ouro. Podia ser mais clichê? Só faltava a tatuagem de dragão no braço e já poderia estrelar num filme de Holywood.

O loiro respirou fundo, voltando a mirar aquilo que chamavam de comida. Ele preferia chamar de material radioativo, embora o segundo passasse até mais confiança que sua refeição. Aquele estilo de vida tinha começado há poucos dias e já testava sua paciência.

– Passo. - Disse, apoiando os cotovelos sobre a mesa, deixando que um suspiro pesado escapasse pelos lábios.

O homem franziu as sobrancelhas, estranhando aquela atitude de descaso beirando ao desprezo. Infelizmente sua paciência também não estava em um dos melhores dias, e tal fato foi denunciado quando bufou impaciente, exatamente como um animal selvagem faria.

– Não me lembro de dizer que era opcional. - Tentou mais uma vez, sorrindo torto. Seria mais fácil se o loiro colaborasse, afinal. Bom, pelo menos um ponto que quebrava o clichê esculpido naquele homem; ele sabia falar sem ser por monossílabos e grunhidos incompreensíveis. Já era alguma coisa.

– Passo. - Repetiu, desta vez ocupado demais para usar seu tom entediado. Oh, sim, aquele garfo de metal torto e com um dente faltando lhe parecia bastante interessante, conforme a girava diante dos olhos.

E foi aí que qualquer vestígio de paciência esvaiu-se do homem. Estava ali há muito, muito tempo mesmo, e era uma tradição particular recepcionar os novatos. E não seria um moleque metido que se tornaria a exceção, ahhh, mas não seria mesmo!

Mais rápido do que braços daquele tamanho deveriam ser capazes de se mover, Hans agarrou o menor pela camisa laranja e o ergueu da cadeira de metal. O tecido seguro fortemente pelas enormes mãos dificultavam a respiração, os guardas sequer haviam se movido para impedir a agressão (recebiam "pagamento" suficiente para não interferir naquele caso), praticamente todos os presos ergueram os olhos para observar, alguns até se levantaram e começaram a gritar algo parecido com um incentivo. E Arthur nem piscou.

Pelo contrário. A despeito do que qualquer um naquele lugar esperava, o rapaz encarou seu "agressor" sem nem uma sombra de medo, e ainda sem desviar esse olhar, ergueu o próprio braço e usou seu polegar e indicador para apertar com toda a força que tinha, um ponto em específico do pulso do maior. A inesperada onda de choque forçou Hans a largar o loiro, que simplesmente lhe deu as costas e avisou ao guarda mais próximo que gostaria de voltar à cela. O silêncio era total, assim como o choque. Quem diabos era aquele rapaz, afinal?!

Quando Hans se aproximou de Arthur, Caleb se preparou para intervir. Quando o loiro foi erguido da cadeira, o ruivo levantou de sua própria. E quando o brutamontes foi obrigado a soltar o outro, Caleb já havia dado alguns passos em direção ao tumulto, com a intenção de ajudá-lo. Sentiu-se um idiota por pensar em ajudar alguém só por ser seu companheiro de cela e no final sequer ter a chance de fazer algo! Mas... Não podia negar que o sorriso que surgiu em sua face enquanto Arthur deixava o refeitório, era uma amostra de o quanto estava satisfeito por ter errado no julgamento do mais novo. Pelo jeito ele parecia ser bem mais interessante do que pensava...

Naquela tarde, ao voltarem para a cela, Caleb se perguntava como poderia iniciar algum diálogo com o companheiro. Não que tivesse desenvolvido algum súbito interesse nele após a cena no refeitório, mas julgava o truque do pulso, como ele mesmo havia apelidado, algo bastante útil naquela prisão. Seria grosseria demais simplesmente perguntar? Não sabia, mas acabou não precisando pensar muito a respeito.

Pois o próprio Arthur tomou iniciativa.

Estava encostado na parede da cela, olhando através das grades para o nada, quando simplesmente falou:

– Sabe, você geralmente não fica me encarando.

Foi a primeira vez em anos que Caleb ficou... Encabulado.

– Só estava curioso. - Tentou desconversar, após limpar a garganta. Sentia grande necessidade em manter os dedos e as mãos em movimento, simplesmente por fazer um bom tempo que não tentava desenvolver uma mera conversa. Talvez ter praticamente se isolado desde que fora preso não tivesse sido a melhor opção, afinal, mesmo quando estava sentado com seu "grupo", raramente se manifestava. - Sobre aquilo que você fez no refeitório.

Um sorriso mínimo brincou nos lábios do loiro. - Eu tinha que me defender, não acha?

– Acho, com certeza. Foi incrível aquilo. - As palavras fugiram sem controle, e antes que Caleb notasse, já tinham sido ditas. Encarou os próprios pés, o cenho franzindo-se. Era assim que se elogiava cordialmente, não? Esperava que sim.

As íris do loiro pousaram sobre ele, de forma analítica e cuidadosa. Mas o dono não agradeceu. Talvez também por falta de hábito, talvez pela indagação muda sobre o comportamento de seu companheiro de cela.

– Quer aprender? - Foi só o que disse.



Não tinha certeza de por quanto tempo haviam andado, e só se deu conta de que deveria parar, quando um dos guardas segurou seu braço - surpreendentemente com mais humanidade do que se lembrava dos últimos dez anos - e o forçou a isso. Caleb viu-se parado em frente a uma porta escura e lisa, de metal, e pela primeira vez, realmente se deu conta de que não havia mais volta. Quer dizer, sabia disso e não se arrependia, mas... Antes parecia algo distante, inalcançável, e agora estava bem à sua frente...

Não se arrependia...




Arthur tinha apenas 19 anos quando foi preso. Motivo? Assassinato. Infelizmente, não era um acontecimento tão incomum, e raro, o filho rebelde atingir um ponto em que pega uma arma de fogo, talvez uma faca de cozinha como precaução, e desconta toda sua raiva, frustração, e o que mais for que estiver acumulado dentro de seu ser, nos membros da família. No caso, mãe, pai, irmã mais nova, e a empregada de longa data da família.

...

Ah, apenas para esclarecer: esse filho rebelde? Não era Arthur.

Isso mesmo, ele estava preso, mesmo sem ter matado ninguém; a vida não é sempre justa, muito menos a Justiça. Tão irônico que chega a ser trágico, concorda?

Afinal, Arthur não era rebelde. Nunca foi. Como a maioria dos adolescentes com dom artístico, no seu caso, como uma vez contara a Caleb, desenhar belas figuras que simplesmente brotavam em sua mente, ele era um jovem calmo. Tinha preferência em dedicar-se ao talento, aprimorando-o, sempre em seu canto. Recluso e pacífico, jamais cometeria tal atrocidade com pessoas tão próximas. Porém, personalidade não é algo que consta durante um julgamento, e sim os fatos. E todos haviam sido cautelosamente preparados pelo irmão para que apontassem Arthur como culpado.

A velha história do irmão que nunca é reconhecido, vivendo na sombra do outro. Infelizmente as conhecidas más companhias da adolescência o levaram a cometer o ato criminoso, e por puro medo da prisão, fez com que o alvo de seu ódio sofresse as consequências em seu lugar. Nada justo, mas a lei precisava ser aplicada e alguém precisava ser preso. E na ausência da verdade, as soluções práticas dominam, ainda que falhas. Arthur era a prova disso.

Enfim. Caleb soube disso com o passar do tempo, conforme ia ganhando a confiança, e a amizade, do loiro, e sua incredulidade frente a tal injustiça nunca chegou a desaparecer por completo. Sempre que se pegava pensando nas palavras que Arthur havia usado para lhe contar a verdade, no tom que ele usara, sentia raiva. Uma raiva imensa que o corroía por dentro e que nunca fez questão de desinscentivar. Oras, alguém precisava sentir raiva, certo? Se Arthur havia optado por deixar tudo o que deve ter-lhe atingido - traição, raiva, ódio, tristeza, medo, dor - trancado a sete chaves dentro de si, então Caleb sentiria no lugar dele.

A traição não é algo que se restringe apenas ao traído. É algo que afeta todo aquele suficientemente próximo a ele, e era isso que acontecia.

Raiva pelo ato imensamente covarde.

Ódio pelo responsável em dar aquela aparência quase opaca aos olhos negros do rapaz.

Tristeza por ouvi-lo dizer, de forma quase (ainda que bem disfarçada, falsa) indiferente, que jamais pegaria novamente em um pincel ou lápis para fazer seus desenhos.

Medo pelas opções de destino que o esperavam, fosse em liberdade, fosse naquele lugar.

E dor. Sim, dor. Pois quando se cria vínculos com alguém, não importa de que tipo, mas sendo vínculos verdadeiros, é inevitável sentir as dores do outro.

E então... A sentença foi dada. Ou melhor, ambas as sentenças foram dadas...

Caleb estava voltando da "reunião" com seu advogado, com surpreendente bom-humor. Nenhum guarda ali conseguia se lembrar de já tê-lo visto com uma aura tão leve nenhuma vez antes. E ele tinha motivos para estar desse jeito, ahhhh, se tinha. Muitos bons motivos.

Seu humor estava particularmente especial. Algo forçava os cantos de sua boca para cima, formando um sorriso que quase havia sido esquecido com o tempo. Havia certa satisfação em seu peito, uma sensação calorosa que o fazia questionar se era alegria. Felicidade.
O gosto da liberdade que em breve explodiria em mil sabores diferentes.
Pelo menos até voltar à cela.

O rapaz de cabelos loiros, os quais haviam crescido um tanto após seu tempo na prisão, estava sentado sobre uma das camas. Sentado sobre uma das pernas, com um cotovelo apoiado na parede, segurando o rosto numa expressão pensativa. Os olhos desfocados estavam avermelhados, e alguns dedos da mão livre tremiam. Aquilo só podia significar más notícias.

O sorriso e a felicidade quase saltitante de Caleb foram substituídos por uma expressão intrigada e por um pressentimento estranho ao encontrar seu colega de cela (e grande amigo, já a essa altura) naquele estado tão... Incomum. O que teria acontecido?

Tentando ser cauteloso na aproximação, Caleb mediu seus passos até o outro e sentou-se ao seu lado na cama. Nunca tivera muito jeito com essas coisas, e não sabia direito como agir sem parecer grosseiro ou qualquer coisa parecida. Definitivamente não parecia ser o momento para correr esse risco.

– Ahn... Arthur? - chamou com a voz baixa, tentando olhar o loiro nos olhos, mas parecia que sua presença não tinha sido percebida. Ou se tinha, então havia acabado de ser completamente ignorado. Tentou de novo, mas desta vez um pouco mais alto e sacudindo com força controlada o ombro ao lado do seu. Ainda nada. Seu olhar decaiu mais uma vez sobre a mão pálida e trêmula - e como a outra alternativa na qual tinha pensado (e que com certeza não usaria naquela ocasião) era empurrar o loiro de cima da cama a fim de ganhar alguma reação -, moveu a sua própria e a depositou em cima da do outro. No começo quase sem encostar, mas como pareceu obter finalmente uma reação com aquele gesto, aplicou mais força até que sua grande mão envolvia totalmente a outra não tão menor, mas definitivamente, mais fria e necessitada daquele simples gesto.

– Arthur?

–... Caleb... Como foi com seu advogado?

... Quê? O ruivo encarou Arthur por breves instantes, confuso e descrente. Era mais do que óbvio de que algo tinha acontecido, algo extremamente sério, e ele pensava que podia agir como se estivesse tudo normal?!

– Deixa isso pra depois. O que aconteceu? E é melhor que me diga a verdade.

–... Eu... - engoliu uma vez, como se precisasse limpar a garganta para as palavras saírem, como se estas fossem difíceis demais para sair. e de fato eram -... Eu vou ser executado. Minha sentença final saiu e eu... Eu vou pro corredor da morte.

Caleb não conseguiu falar nada. O que poderia dizer? Não sabia sequer se havia algo que pudesse ser dito! Era tão injusto, tão... Toda a euforia que o havia invadido pela notícia de seu advogado, de que poderia responder o resto do processo em condicional, de que iria finalmente sair daquele lugar odioso, de que iria ficar livre, desapareceu com essas últimas palavras ouvidas. Como podia...

Arthur nunca demonstrava muitas emoções, e mesmo quando se podia ver algo em seu rosto, esse algo jamais chegava a alcançar seus olhos. Mas agora era diferente. Quanto mais o ruivo olhava para aquelas orbes escuras e normalmente opacas, mais um pensamento lhe vinha. O pensamento de que aquele à sua frente, o loiro que já tinha perdido praticamente tudo por um ato imbecil de alguém em quem supostamente deveria confiar, chorava. Suas lágrimas reais podiam não mais conseguir deixar seus olhos, podiam não mais conseguir ser formadas, mas Caleb tinha a impressão de que mesmo que não visse um caminho molhado em seu rosto, Arthur ainda chorava em seu interior.

E apesar das palavras de sua sentença terem sido ditas com firmeza, Arthur apertava mais forte a mão do outro. Seu tremor também não havia sumido.

Foi o próprio Arthur quem fez o primeiro movimento, erguendo um pouco mais o rosto para ver melhor seu amigo e companheiro de cela.

– Sabe, quando eu era pequeno... Eu nunca fui de acreditar em demônios. Espíritos ou entidades malignas, e nunca soube porquê. Acreditar que algo poderia manipular as pessoas dessa forma, era tão... Era tão estranho. Até o dia do meu julgamento, quando me jogaram um advogado qualquer e tive que enfrentar meu irmão no tribunal. Nesse dia eu entendi... Eu nunca acreditei porque naquela época eu já sabia. O pior tipo de demônio já era conhecido por espécie humana.

Caleb estava no mínimo, confuso. Arthur nunca foi de desabafar, mesmo quando contava as coisas para ele, agia mais como se não pasasse de uma narrativa qualquer, por isso o ruivo foi pego desprevenido agora. O que deveria dizer? Como não sabia, o silêncio estranho e quase doloroso perdurou até que as seguintes palavras deixaram os lábios finos e rachados:

– Caleb... Você pode me ajudar em algo?




Caleb foi encaminhado para dentro da sala assim que a porta de metal foi aberta pelo outro lado. A cadeira onde deveria se sentar estava localizada exatamente no centro, e assim que se viu nela, os guardas iniciaram a tarefa de prender as fitas em suas pernas, braços, e tronco, mantendo-o bem preso no lugar. Sentia alguns dos eletrodos em contato com sua pele conforme eles os prendiam também. Será que a morte por eletrocução era rápida? Esperava que sim... Chegava a desejar que tivessem substituído esse método por aquela tal injeção, como em vários outros estados...

Era estranho, Caleb não tinha muita certeza do que estava sentindo. Podia estar com medo, ansioso, melancólico, qualquer que fosse ou nenhum desses, mas não sabia identificar. Via as costas dos guardas à sua frente, sabendo que eles estavam verificando se o equipamento estava funcionando, e não conseguia explicitar nenhum sentimento. Percebia todo seu corpo preso, sem poder se mover, e mesmo assim não sabia o que sentir, nem o que pensar.

Então, talvez pelo momento, ou simplesmente para preencher aquele vazio estranho em sua mente, lembranças do que o tinham levado até ali começaram a lhe cruzar a mente.




"Caleb... Você pode me ajudar em algo?"

Palavras tão comuns, uma frase tão simples. E consequências gigantescas.

Arthur pediu, Caleb atendeu. Pode ter hesitado por dois ou três segundos na hora, mas fez, e não se arrependia. Dois dias depois de pronunciadas aquelas palavras, o guarda responsável pelo primeiro turno da manhã chocou-se ao olhar dentro da cela, ao ir buscá-los para o café-da-manhã. Chamou o diretor da prisão imediatamente, assim como mais meia dúzia de seguranças.

O grupo tirou os dois presos de dentro da cela preenchida de vermelho, principalmente no chão e vários respingos em uma das paredes. Claro que nem se comparava com o carmesim que cobria os dois.

Cabelos loiros agora manchados com aquela cor tão forte e marcante. Os ruivos agora com alguns pontos mais escuros também.

Olhos negros semicerrados, sem brilho e sem foco. Os verdes igualmente sem movimento, mas ainda aparentemente vivos.

Um único rasgo na pele pálida. Dedos manchados.

Arthur foi levado para fora dali, mais cedo do que esperavam, e para sempre. Caleb foi colocado, sem nenhuma resistência, na solitária enquanto limpavam a cela, e depois, até que uma vez mais seu nome surgisse nos tribunais. E fosse por qual motivo fosse, a burocracia nunca demorou tanto para ele. Mas não se importava. Podiam levar o tempo que quisessem, podiam dar qualquer sentença que fosse. Não se importava com mais nada.



Os olhos verdes de Caleb voltaram a focalizar no presente ao perceber um dos guardas voltar a ficar de frente para ele e anunciar um grave e seco "Estamos prontos".

Então era isso...

Permitiu-se refletir uma última vez, se em seu interior havia algum arrependimento, qualquer resquício do que acontecera anos atrás. Nada. Se não estivesse com aquela tira de couro na boca, teria sorrido.

Não havia com o que se importar. Após anos naquele lugar escuro e claustrofóbico, um trágico acontecimento lhe enviara aquele acompanhante de cela. E durante o tempo em que conviveram juntos, Caleb redescobriu algo em seu peito que jurava ter esquecido. Havia sido sufocante, era verdade, ter de cumprir aquele último desejo. Mas a convivência, ainda que forçada, havia sido bastante útil. Ele sabia melhor do que ninguém reconhecer os poucos sinais que o loiro mostrava, discretament, e vez ou outra. E no dia de sua morte, não havia sido diferente. Caleb notava que Arthur jamais pediria aquilo se não tivesse certeza do que queria, e também, aquela era a primeira vez que o loiro lhe pedia algo, que realmente lhe revelava um desejo.

E ele queria ser livre, traçando o próprio destino, da mesma forma como criava os traços em suas telas de pintura, pelo menos uma última vez.

Estavam prontos...

Prontos para tirarem a vida de mais um detento, cuja loucura o havia dominado, dias antes de estar livre da prisão. Que supostamente, num momento de fúria, havia assassinado seu companheiro de cela. Fúria? Caleb preferia misericórdia. Mas claro que ninguém o ouviria.

E ele tampouco queria que lhe ouvissem. Ainda era o caminho que ele tinha escolhido, afinal. Junto de Arthur.

Respirou fundo uma última vez, sentindo o corpo resfriar diante da tensão. Da expectativa. Arthie... Queria que o loiro estivesse ali, olhando-o uma última vez. Talvez pudesse pintá-lo, criando em uma grande tela branca os traços de melancolia que apenas um artista conseguia transmitir.

A imagem o levou ao entorpecimento, o qual foi reduzido em mil pedaços ao primeiro e último clique que ouvia.

Todos os músculos ficaram subitamente tensos conforme aquela energia ricocheteava cada parte de seu corpo. Contorcia-se mecanicamente, num desespero animalesco, enquanto a garganta criava os sons mais agoniantes que sequer tinham permissão de escapar totalmente. Metade da razão se devia à descarga elétrica. A outra era por conta da imagem que os olhos agora detinham. A imagem de Arthur estava sendo quebrada, trincada em mil pedaços, como as partes de um espelho. O sorriso ficava turvo, os dedos ágeis segurando o pincel ficavam fora de foco. O amigo e confidente desaparecia em meio aos milhares de pedaços, enquanto Caleb sentia-se cada vez mais lento. Os reflexos do corpo paravam.

O choque já não o incomodava mais, e a prova era a forma como apenas alguns músculos do corpo ainda se contorciam impulsivamente.

Estava sozinho novamente. Talvez não, era difícil dizer sentindo que o topor apenas aumentava gradativamente. Ao menos sua audição estava bastante prejudicada, como se tampões cobrissem-lhe os ouvidos. Graças a Deus, ele odiava ter uma audição apurada num lugar como aqueles, onde celas eram abertas todos os dias e noites.

No começo o barulho era até tolerável, obrigando-o a lembrar de sua nova realidade. Do sistema de justiça que estava mais preocupado com hackers invadindo computadores do que assassinos e estupradores soltos nas ruas.

Mas depois de Arthur...

Os sons das celas sempre acordavam ao loiro nas madrugadas gélidas e sufocantes daquele lugar. E Caleb acordava também, a tempo de ouvir o amigo fazendo sons baixos e armagurados, como se chorasse em silêncio. Pois as celas também traziam os fantasmas de seu passado.
Passado tão injusto que ele jamais merecera. E sempre o atormentava, especialmente quando o barulho metálico e estridente ecoava pelos corredores.

Talvez fosse um dos motivos de odiar tanto aquele som...

Ah, como Caleb se sentia grato por nunca mais ouvir aquele barulho de novo...

Ele e Arthur agora eram definitivamente livres.

Livres...




– Horrível, não acha? - Sargento Horvath disse seriamente, abaixando o quepe policial até a metade dos olhos castanhos. Seus cabelos castanho claros já estavam precisando de um corte, e o colete já não escondia muito bem a barriga meio saliente. Quando falava, as bochechas ficavam mais fofas, dando-lhe um ar de avô já exausto pelos longos anos vividos, embora ainda exercesse sua função como policial como poucos da equipe.

Ao seu lado, um homem com aparêncial jovial, cavelos louros na altura do pescoço e olhos escuros, apenas fez um som em concordância com a garganta. Não conseguia desfocar daquele rapaz ruivo, agora visivelmente morto.

– Sinto muito com o que ele fez com seu irmão. Foi realmente um assassinato cruel.

– Não, não foi. - O outro o interrompeu, sequer tirando os olhos do vidro. O outro lhe lançou um olhar curioso, o qual não teve resposta visual, apenas outro comentário. - O enforcamento foi confirmado, mas na autópsia indicou que os cortes foram feitos pouco depois da morte da vítima. Agora eu lhe pergunto, Horvath. Mortos sentem dor?

O outro arregalou os olhos, diante das observações do outro. E mais do que isso, por seu tom incisivo e até intimidador. Balbuciou um "não" com a voz falha.

– Exatamente, sargento. Sendo assim, as feridas foram feitas meramente para que a pena do crimonoso fosse maior, levando-o à cadeira elétrica. Curioso, não? - Deu um sorriso de escárnio, enquanto o mais velho tentava associar tudo aquilo. - Como algumas pessoas simplesmente andam até suas mortes. Com a cabeça erguida e a passos firmes.

O sargento ficou sem respostas, e antes que tivesse chance de começar a tentar pensar em uma, o homem loiro lhe deu as costas e se retirou do local. Por que tinha vindo? O que o tinha feito vir assistir à morte daquela pessoa que sequer conhecia? Será que se fosse o seu irmão que estivesse sentado naquela cadeira, ele também teria vindo? Difícil dizer.

A verdade era que, mesmo após anos passados desde "aqueles" acontecimentos, ele não tinha certeza do que sentia. Sentia-se culpado por ter feito o que fez? Sentia raiva de si mesmo? Ou de seu irmão, por ter sido envolvido naquela armadilha tão facilmente? Tristeza por não ter mais nenhum parente vivo? Orgulho por nunca ter sido pego? Não saberia dizer, exatamente porque sempre evitou olhar devidamente para dentro de si, para descobrir. Sempre parava a uma profundidade segura, fugindo das respostas que muitas pessoas estariam desesperadas para descobrir.

Ao deixar a construção da prisão, surpreendeu-se por já ser final de tarde. O céu estava mais do que alaranjado, estava quase alcançando um leve tom de vermelho, que só não estava mais forte devido aos fracos raios amarelados que ainda insistiam em aparecer. Ironicamente ou não, aquela mistura de tons o fez voltar a pensar em seu irmão. Com certeza os cabelos de Arthur eram mais claros do que os seus, e aquele vermelho... Não queria, mas a imagem do homem sentado na cadeira lhe voltou também. Aquilo iria persegui-lo, não iria...?

Talvez por isso ele tivesse matado Arthur em seu último momento. Caleb era de fato uma peça única, encaixando-se perfeitamente nos quadrantes mais improváveis.

Talvez se tivesse conversado um pouco com ele antes da execução, ficasse mais claro seus sentimentos a respeito de tudo que ocorrera. Estranho. Nunca antes se preocupou com o que sentia, e na única vez que chegou ao menos perto disso, foi quando o crime aconteceu. Mas era um ser humano afinal, não? Tinha sentimentos também. Talvez.

Inclusive agora? Talvez a mãe pudesse responder, se não estivesse morta, palmos abaixo da Terra, assassinada por suas próprias mãos. O que sentia em relação à isso? Em relação à elas? Arthur? E Caleb?

... O que será que ele sentia...?

...



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Notas finais do capítulo

Guardian: E então? Alguém leu? Gostou? Reviews? :3