A Luz Das Trevas escrita por Filha de Apolo


Capítulo 4
Segundo dia


Notas iniciais do capítulo

Oi oi. Pra quem tá lendo tudo junto, e quem não sofreu com as minhas demoras, só saibam que eu demorei (E MUITO) pra continuar a fic e tal, e eu queria agradecer às pessoinhas que não desistiram, que continuaram mandando mensagem e comentários, os que me procuraram no tumblr. Um agradecimento especial a Lilliel Sumire Eucaristia (http://fanfiction.com.br/u/175167/), Rafaela M (http://fanfiction.com.br/u/365791/), e a Lívia Black (http://fanfiction.com.br/u/86292/), linda e maravilhosa. As duas primeiras eu agradeço de coração a insistencia pra que eu não desistisse da fanfic, e a Lívia eu agradeço a inspiração, porque cada vez que eu me lembro da fanfic dela, e de quão complexo deve ter sido pra conseguir escrever ela inteira, eu fico com vergonha de estar de lenga-lenga pra escrever essa aqui.
Enfim, amo vocês.
Aproveitem.

AH AH AH
e eu queria dedicar esse capítulo
pra Allyzinha linda
que tava de aniversário né
e eu prometi uma edição de presente e nunca rolou, então essa continuação sobre teus pais lindos é presentinho atrasado viu? odnfoaisdfd t amo



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Brincando com a espuma entre seus dedos, Perséfone tentava se acalmar. Não dormira a noite inteira, ficara apenas deitada na cama, sem vontade de fazer nada. Ocorreu-lhe que talvez nunca saísse daquele lugar. E os gritos dos mortos não ajudavam em nada.

Levantou apenas quando ouviu uma movimentação fora do quarto, deduzindo que já era de manhã. Foi para o banheiro, tomaria um banho com espumas e sais para tentar se animar. Não podia deixá-lo vencer, então não o deixaria vê-la desesperançosa. Ao olhar no espelho, encontrou dois olhos vermelhos, inchados das lágrimas que deles jorraram. As íris estavam mais claras, puxadas para um tom de mel.

A água lutava para aquecer Perséfone, mas algo a mantinha sempre gelada, mas não com frio. Era como se o calor não se sustentasse. Logo toda a espuma desapareceria, e ela teria de sair de lá. Não estava com fome mas sentia que, por educação talvez, devia se unir a Hades. Não que ele merecesse nenhuma educação. Talvez apenas tomasse algo para lavar a garganta.

Assim que terminou de vestir um simples vestido tomara-que-caia, roxo escuro, e um casaco preto, pôs-se a trabalhar. Pegara as tintas que fizera e os vestidos que cortara e os organizara em cima da cama. Por medo de sujar a roupa de cama, levou as tintas que usaria para o banheiro, junto com dois vestidos.

Fizera crescer, involuntariamente, flores em alguns vasos que estavam espalhados por seu quarto. Com dó, as arrancara e fixara nos vestidos, para que, quando os pintasse com as tintas, a forma da flor permanecesse. Perséfone acreditava que poderia ficar mais bonito do que imaginara. Não era uma estilista, mal entendia de suas flores, era pretensão querer que tudo ocorresse perfeitamente.

Assim que mergulhara dois vestidos, os colocara pra secar. Só veria o erro quando voltasse do café da manhã.

Por sorte, um espírito estava a esperando. Teria se perdido se precisasse ir só.

Ou não chegara atrasada, ou Hades era muito bom em disfarçar. Ambas opções eram plausíveis. Assim que ela chegou, o encontrou na porta, cumprimentando as cozinheiras. Sem lhe dirigir a palavra, puxou a cadeira para que Perséfone sentasse e esperou até ela notar seu gesto.

Uma vez que ambos já haviam se sentado e Hades até já terminara seu café da manhã, este quebrou o silêncio.

–Você não comeu nada.

Perséfone revirou os olhos, terminando seu copo de suco de maçã.

–Parece minha mãe. Não estou com fome.

–Não dormiu bem durante a noite. - Hades disse, limpando-se com o guardanapo.

–Dormi sim, não é isso..

–Não era uma pergunta. - Perséfone se mexeu na cadeira, inconfortável. Talvez ele já tivesse se acostumado com os gritos ou tinha algum truque que teria de ensinar à Perséfone.. O deus levantou, dando a volta e parando atrás de Perséfone para puxar-lhe a cadeira de volta. - Durma até o almoço, de tarde lhe levarei para fora.

–Eu não preciso dormir.

–Descanse. De qualquer modo, vou trabalhar durante a manhã, você está livre para fazer o que quiser..

–Ãn.. obrigada? - Os dois seguiam andando pelo corredor, até o momento que deveriam separar seus caminhos. Perséfone iria para o seu quarto enquanto Hades provavelmente iria para o escritório ou a Sala de Tronos. Perséfone imaginara se ele passaria a manhã julgando pobre almas à uma eternidade de sofrimento naquele lugar.

–E Perséfone.. - A deusa virou e encarou Hades com um olhar de interesse. -.. há tintas específicas pra certos tipos de tecidos. - Dito isso, entregou um livro para ela e saiu andando.

Uma Perséfone confusa voltara para o quarto. O livro que ele a dera era sobre trabalhos manuais e estava marcado no capítulo de tinturas naturais. Quando percebeu que ele poderia estar observando-a, Perséfone corou levemente, mesmo que já completamente sozinha em seu quarto.

Entendera completamente o que Hades dissera quando entrara no banheiro outra vez. Enquanto o primeiro vestido havia ficar apenas levemente borrado, o segundo estava apenas encharcado, toda a tinta que Perséfone usara havia escorrido e virara uma grande poça amarela-escura no chão, resultado da mistura de algumas cores pesadas em um tecido desconhecido.

Fazia sentido, uma vez que os vestidos que Perséfone achara no armário, mais cedo no outro dia, eram muito estranhos. Nada que ela realmente tivesse visto antes, apenas parecidos, ou levemente familiares.

Ah, ela odiaria admitir que ele estava certo. Provavelmente até já soubesse que daria errado e deixara ela fazê-lo só para irritá-la um pouco mais. Isso sem o detalhe que ele a espionara.

Bufou e se jogou na cama, fitando o teto. Agora, mesmo que não quisesse, teria de tingir os vestidos, já que haviam se arruinado com a tinta imprópria. Rolou e pegou o livro da cabeceira. Leria pelo resto do dia, se pudesse, mas Hades tinha sido bem claro sobre ela ter a manhã livre, o que indicava que ele a saturaria até o jantar.

O deus contemplava o lugar vazio a sua frente. Fora assim por tanto tempo, tempo demais. Desde que os Três Grandes haviam injustamente divido os reinos e seu irmão o banira, Hades se sentava na ponta da mesa, fitando o vazio.

Às vezes tinha de escutar Tânatos e Hipnos tagarelando. Não podia reclamar sobre jantar sozinho. Hécate o acompanhara sempre que pudera, fazendo questão de sentar ao seu lado. Engraçado, Hades notara, que de tempos em tempos Hécate fazia menção de sentar do outro lado da mesa e o deus a cortara. A cadeira fora sempre reservada para a Rainha do Submundo, e esta não era e nunca seria Hécate.

No passado, Hades chegou a achar que a cadeira permaneceria para sempre vazia. Do seu mau humor, seu jeito desconfiado e fechado de ser, imaginou que nunca teria uma esposa. E não tinha. Tinha amigos.

Nix se juntava a ele apenas em ocasiões especiais e algumas visitas aleatórias. Ela andava sempre tão ocupada e, quando tinha um tempo livre, frequentemente o dedicava aos mortais.

O barqueiro, por sua vez, só se juntava à Hades em tempos de extrema importância, como os raríssimos momentos que o deus dos mortos decidia entrar em guerra e batalhar ao lado de – ou contra – seus irmãos.

Em geral, o problema de Hades não era a total ausência de companhia, mas ele ainda se sentia sozinho. Não entendia o porquê até o dia que foi chamado ao Olimpo para abençoar mais uma filha de Zeus que havia nascido. Mas não era só uma filha de Zeus.

Era ela.

Ela, que naquele momento interrompia a linha de pensamento de Hades e puxava a cadeira do outro lado da mesa, sentando apressada. Seu peito subia e descia, a procura de ar, evidenciando que havia corrido. O deus suprimiu um sorriso quando a voz doce preenchera o silêncio mortal da sala.

–Me perdoe, adormeci e perdi o horário do almoço. Sou acostumada a ser acordada pela minha mãe, não tenho um despertador biológico muito bom e... - “Não há, nesse buraco esquecido, sol para me acordar e me aquecer, ou barulho de pássaros que possam me despertar”. Perséfone até acrescentaria o final da frase, mas estava sem fôlego para discutir. Colocara o guardanapo de pano em cima do colo e erguera os olhos, encontrando Hades mastigando, despreocupado.

–Bom dia. - O deus falou, depois de deixar o silêncio se estender novamente. Ergueu os olhos e quase sorriu quando a jovem deusa sustentou seu olhar. - Quer que eu lhe sirva? - Por mais que tivesse soado quase doce, Perséfone se ofendeu com o tom de Hades. Não era uma criança, não precisava ser servida. Ergueu-se e andou pela mesa para se servir. Fora impedida por Hades três vezes. Ele alegara que ela só podia comer a comida de seu próprio mundo.

–Não entendo o porquê, os dois tipos são bem parecidos.

–Você vai entender e quando entender vai ter o direito de escolher se vai comer ou não. Mas agora você não pode, então não coma.

–E quem é você pra me dizer o que comer? - Perséfone sentou e largou o prato indelicadamente na sua frente. Cruzou os braços e encarou Hades. - Parece meu pai! Também vai me dizer que “é para o meu próprio bem”?

Bom que ela comentara, pois Hades estava prestes a dizer aquilo. Apenas suspirou e largou os talheres.

–Certo, eu poderia lhe explicar o porque, mas você não acreditaria em mim e eu estaria perdendo de já estar com o estômago farto.

–Vamos, me explique, não vou duvidar de você. - Perséfone se serviu a taça à sua frente com água e voltou a encarar Hades, alternando entre dar goles na água e girar o dedo na parte de cima da taça, tentando produzir um barulho irritante.

Continuaram em silêncio até Perséfone desistir e comer sua comida. Quando ambos terminaram, Hades ergueu os olhos do prato e limpou a garganta discretamente.

–Tudo o que pertence ao Submundo vai sempre retornar ao Submundo. - Perséfone, confusa pela informação repentina, apenas ergueu os olhos e o encarou, franzindo o cenho. Hades deu de ombros. - Pronto, lhe expliquei.

–Mas...

–Pode refletir de noite. Vamos, vou lhe mostrar o exterior hoje. - Hades levantou, deu a volta e teria puxado a cadeia para Perséfone se levantar se a deusa não tivesse se assustado com o possível toque de Hades e se levantado bruscamente. - Eu... - Os dois olhares se encontraram e a deusa desviou o seu para o chão. - Não ia lhe machucar.

Não esperou uma resposta, apenas saiu da sala e esperou que a deusa entendesse e o seguisse. Poderia imaginar que, pelo histórico de encontros que ele tivera com deusas jovens como Perséfone no Olimpo, ela ficaria com medo dele mas não queria acreditar que Perséfone era como elas. Enfrentava até a fúria de Ares, não enfrentaria Hades?

–Prefere começar por onde? - Hades quebrou o silêncio entre eles que se estendera desde que começaram a andar. Surgiram pelas portas do castelo e pararam em frente a esse. Perséfone deu uma volta completa e observou o horizonte. Seu olhar parou e se demorou em um espaço mais escuro que o seu redor, de onde vinham gritos similares aos que não a deixavam dormir. - Que seja por ali, então.

–Quê?

–Me acompanhe. - Hades gesticulou para onde ela olhara e estendeu-lhe o braço. A deusa o ignorou e começou a andar em sua frente. Não daria o braço para ele, não precisava de apoio para caminhar.

Hades caminhou tranquilamente atrás dela, que avançava com curiosidade. Quanto mais perto chegavam e mais ela conseguia enxergar, maior ficava a parcela de horror que havia se depositado em seu olhar. Por não acreditar no que via, apenas avançou. Sentia como se estivesse vendo uma peça, como se aquilo não pudesse ser real.

Pararam na entrada, onde guardas-esqueleto bloqueavam a passagem por entre os portões com suas lanças. Estavam em um plano mais alto, o que facilitava a visão de quase todo o campo e suas crueldades.

–O quê...? - Perséfone analisou o portão, que continha uma escritura em uma língua que ela não compreendia, balançou a cabeça, confusa.

–Campos de Punição. - O silêncio desceu sobre eles. Perséfone quis se xingar por não tem assimilado antes. Já havia ouvido histórias dos Campos de Punição, mas nunca imaginara que fosse assim. Não era tão sujo quanto ouvira falar, mas muito, muito mais cruel. Coisas que ela não poderia nunca imaginar por si só, punições que ela nunca daria para ninguém, não importa o quão terrível fosse o ato, havia punições injustificáveis. Ou ao menos ela achava.

–Como..?

–Não as imaginei sozinho.

–Ãn?

–As punições. Você ia perguntar.

–Sim, mas...

–E as punições não são aplicadas a mortais comuns, apenas raras exceções. Encontrarás reis aproveitadores, deuses hereges, traidores, titãs em eterna punição, mas acredite, não encontrarás injustiça. Sempre fui e sempre serei justo em minhas condenações, assim como meus jurados. Sempre.

O final, Hades acrescentou por razão do olhar temeroso que Perséfone o lançou, como se não houvesse maldade maior do que condenar alguém àquilo. “Ah, se ela conhecesse o próprio pai, não me olharia assim”.

Perséfone caminhou para o lado, saindo da frente do portão, que bloqueava sua visão. Montanhas se erguiam no fundo dos Campos. Via fileiras de condenados. Não conseguia se concentrar, não queria absorver toda aquela monstruosidade, mas não podia evitar, sua curiosidade ainda a mataria, um dia.

Punições mais leves eram deixadas para o começo, os gritos mais agoniantes vinham de trás das montanhas, onde o horizonte não era mais negro, como o resto todo, e sim vermelho e dourado, como se seu “céu” fosse tingido pelo sangue dos devedores. E talvez fosse.

Esquivou-se, assustada, ao sentir a mão de Hades em seu ombro.

–Venha, - seu tom de voz acalmou Perséfone, por mais que soasse rígido, ainda era consolador, e ao menos não era os gritos que ecoavam no fundo da mente da deusa. - vou te mostrar os jurados.

A pequena deusa apenas foi. Se deixou levar, caminhando atrás do rei. Pararam na tenda que se situava no meio do caminho entre o Estige, onde o Barqueiro continuava sua travessia, e o Castelo de Hades. Uma enorme fila de almas se estendia da tenda até o Rio, fila que seria invisível aos olhos de Perséfone se não notasse uma leve movimentação no ar e uma distorção da imagem que tentava fitar.

Hades a conduziu até a tenda pela parte de trás, emergindo do lado da mesa dos jurados. A alma que estava sendo jurada o fitou, perplexa. Então se jogou aos seus pés, implorando por perdão. Ela murmurava inconsolada em latim, uma língua mortal que Perséfone fora forçada pela mãe a aprender. Seus olhos se encheram de lágrimas ao ver a cena da pobre menina, morrera talvez com não mais que 20 anos, ajoelhada e abraçada ao corpo do Deus dos Mortos, chorosa, sua essência oscilando aos olhos da jovem deusa.

–Perdão, senhor.. - Um guarda esqueleto se precipitou para erguer a alma, mas Hades fez um gesto para que parasse. Estendeu a mão para seu lado, onde, Perséfone só agora notara, estava a mesa que comportava os jurados. Não reconhecera nenhum deles, mas eram todos familiares, parecidos entre si. Talvez por serem também almas, mas incrivelmente mais sólidas do que as que eles julgavam. A deusa não conseguia fitar seus rostos, mas se olhasse para seus corpos conseguia, pelo canto do olho, notar seus cabelos, olhos, boca e cicatrizes. Continham várias cicatrizes.

A linha de raciocínio da jovem fora quebrada quando um pedaço de pergaminho com um nome voou para a mão de Hades, que o esfarelou entre seus dedos com os olhos cerrados. Depois de alguns instantes, o deus abriu os olhos, sussurrou palavras em uma língua antiga e uma porta se abriu atrás dos juízes. A porta do caminho para o que parecia ser o paraíso.

A vista da porta, a alma se abraçou em Hades e o agradeceu de todos os modos possíveis, até ser escoltada pelos guardas pela saída. O Rei se virou e gesticulou para que Perséfone saísse com ele.

–Perdão, mas não poderemos ficar por aqui, se eu ficar mais um pouco as outras almas vão achar que podem apenas implorar por perdão que sairão impunes...

–O que foi o que aconteceu... - Estavam caminhando lado a lado, então Hades a parou para fitar seus olhos.

–Não, não foi. Não faço nada por piedade, cada um recebe o destino que lhes é merecido.

–Mas.. então o que aconteceu? O que foi aquilo com o pergaminho? - Voltaram a caminhar lentamente em direção à um campo ao lado das Punições. - Aquilo era o nome da mortal?

–Sim, mas aquele pedaço de pergaminho trazia mais que apenas seu nome, trazia sua história. Veja, quando é necessário fazer um julgamento, não se pode avaliar apenas atos memoráveis da pessoa, mas também seu passado, seus motivos.

–Então se um mortal matar alguém e conter um bom motivo para isso, ele pode ir para o paraíso?

–Sim e não. Não se trata de um motivo. Se um mortal assassinar alguém que cometeu incontáveis crimes, não é justo que ele seja julgado como mero assassino. Primeiro observamos toda sua vida, depois o ato em si, se não havia nenhuma outra maneira de punir o outro mortal senão a morte, e se tudo apontasse que a coisa certa foi ter matado o outro criminoso, a alma deste será sim, absolvida.

–Ah, sim. Agora eu entendo.

–E é Campos Elísios.

–O quê? - Hades parou de andar e Perséfone se virou para olhá-lo, sem perceber onde estavam.

–Não é chamado de Paraíso. O lugar para onde vão as almas bondosas e merecedoras é Campos Elísios. Paraíso é outra coisa.

–Desculpe. - E então ela se virou.

Um vasto campo alaranjado se estendia à sua frente. Um horizonte sem reação, lotado de almas, destinadas a passar a eternidade executando a mesma tarefa, até esquecer-se de quem são e parar, vagando numa multidão e, ainda assim, sozinhas.

Poucas árvores se erguiam, quebrando o fluxo. Almas cansadas, condenadas há éons, se escoravam nos troncos e, com tempo virariam parte da vegetação, misturando sua transparência às raízes, fundindo-se.

Perséfone mirava, atônita, o interminável mar de almas. Se tentasse focar seu olhar em apenas uma alma, acabava mirando o nada. Se concentrava, então, na escuridão que substituía o céu acima dos campos, o que tornava as almas visíveis a ela.

–Está superlotado. Já estou com um projeto de expansão.

–O que eles fizeram? - Perséfone o interrompeu. Não prestara atenção, não havia visto nada tão cruel. Nem os castigos dos Campos de Punição lhes pareciam tão terríveis.

–Nada. Nada de bom ou de ruim. Não fizeram a diferença.

–Que horror. - Ela exclamou, ainda observando o horizonte. Ela percebeu que se encontrava em frente a um de seus piores pesadelos: ser um nada. Não queria ser como, a maioria das deusas menores. Sempre temeu o esquecimento, e era por isso que se envolvia em tantas encrencas no Olimpo. Dizia o que pensava quando bem entendia e para quem quisesse. Por mais que ficasse constantemente castigo, sempre foi conhecida por ser a única deusa menor que enfrentara Zeus, não era muito, mas Perséfone sempre se contentou com isso. Era alguém. Ou ao menos achava que era.

–Tudo bem, vamos, já estamos quase no fim.

Hades precisou empurrá-la levemente para que a deusa conseguisse parar de fitar os Campos. Caminharam por mais alguns minutos até chegarem em frente a uma grande cerca e contínua cerca dourada, que apenas se interrompia quando chegavam à sua entrada, onde dois enormes portões guardavam a entrada do que Perséfone imaginou ser o melhor lugar daquela caverna.

–Campos Efíngos?

–Elísios.

–Isso, isso. E aquela escrita ali? - Perséfone apontou para uma faixa de metal que se estendia por cima dos portões, fazendo-os parecer o pórtico de entrada de uma cidade.

–É uma língua antiga que era falada pelos titãs e gigantes no tempo antes dos deuses. Agora é chamada Language Defunctorum, ou..

–O Idioma dos Mortos.

–Hum, você sabe latim. Bom, o nome já explica o porquê de usarmos essa língua aqui em baixo, em geral para coisas importantes, mas também conversamos por ela uma vez ou outra. Também é usada lá no Olimpo para rituais mais tradicionais.

“Olimpo”. A palavra ressoou na mente de Perséfone. Queria tanto voltar para casa que chegou a se irritar de estar ouvindo aquelas explicações, mas tudo se acalmou novamente quando as portas se abriram e ela avistou o interior.

–Uau. - Fora tudo que conseguira pronunciar. Por fora parecia ser tão pequeno, mas o vendo assim parecia tão vasto quanto o Campo de Punições.

–Eu sei, eu sei. - Hades suspirou, admirando seu trabalho. - Enfim, esse espaço aqui – Uma área toda verde que ocupava quase toda a entrada dos Campos, como se fosse um hall – é onde ficam os que chegaram aqui mas não realmente fizeram algo heroico, como aquela alma que eu julguei mais cedo. - Perséfone apenas acenou com a cabeça e continuou caminhando.

Se maravilhava com as árvores, a quantidade enorme de frutos que pendiam delas, as milhares de cores que ela via diante de seus olhos, algo que não encontraria, com certeza, em nenhum outro lugar do Submundo. Notara também que haviam outros ambientes, pequenos montes com neve, desertos com miragens em seu meio, casas de praia e templos, todo o tipo de construções encontradas no mundo dos mortais.

–O espaço se adapta ao que cada alma acha mais agradável, a maioria se delicia com um espaço que os lembre sua casa. E lá – Hades apontou para três pequenas ilhas que se postavam em cima de um mar artificial que ocupava o coração do Elísio. Todos os ambientes ficavam no entorno do mar. Suas ilhas continham a sua maioria coberta por uma nuvem, fazendo com que fosse quase impossível de distinguir o que havia nelas, a deusa apenas notou vestígios do que poderiam ser templos. -, aquelas são as Ilhas dos Abençoados, para onde vãos os heróis que decidiram renascer três vezes, e nessas três vezes alcançaram o destino dos Elísios.

–Não podemos ir até lá?

–Não, querida, nem eu sei direito o que há lá. Os Campos acabam por obter uma essência própria, então se transformam fora do meu controle.

Perséfone apenas murmurou e se sentou na beira do mar, enterrando suas mãos na areia. Fechara os olhos e suas lembranças das primeiras caminhadas que dera com seu tio, Poseidon, na beira de seus domínios, vieram à tona. Ficaram por um longo tempo ali, até que Hades a tirou de seu descanso e eles se encaminharam para o castelo.

–Hades.

–Pois não? - Perséfone quase foi capaz de notar um pouco de inocência no tom de voz do deus.

–O que pretende fazer comigo? - A pergunta saiu involuntariamente, e pegou Hades de surpresa.

–Ora, já lhe disse, saberás quando for tempo.

–Não gosto assim, quero saber agora.

–Amanhã, então. Amanhã talvez entenderás.

–Estás apenas me enrolando! - Entraram pelas portas do castelo. Hades suspirou. Haviam passado o dia inteiro sem discutir, e ela iria fazê-los brigar logo agora.

–Vá para o seu quarto, logo o jantar será servido, não briguemos agora, não há necessidade.

–Brigaremos no jantar então!

–Que assim seja. - O deus se virou e desapareceu pelos corredores até seu quarto. Perséfone imaginou que devesse fazer o mesmo. Ficar de pé no meio de um salão não a traria nada de bom.

Novamente, estavam apenas os dois na mesa. Ela achava estranho, estava acostumada a sentar em uma mesa cheia de ninfas para fazer as refeições, mas era até um pouco confortável. Não sabia o quão relaxante podia ser o barulho da mastigação de alguém. Seus olhos vagamente encontravam os dele, mas depois da pequena briga que tiveram quando ela chegou na mesa, não havia mais nada que os dois quisessem conversar. Tentavam interagir o mínimo possível.

Certo que ela talvez não devesse ter insistido para saber o que tanto ele queria com ela, não devia ter batido na mesa ou jogado uma taça em cima dele, mas ele também não precisava ter escurecido o cômodo apagando as velas. O mais esquisito para Perséfone é que ela sabia que aquilo tudo poderia acontecer. Era quando como se quisesse ver o quão raivoso ele poderia ficar. Algo dentro de seu cérebro a dizia que ele não havia atingido nem a metade de sua raiva.

Ela via em seus olhos que ele tinha uma fúria enorme reprimida. Um pouco com seu pai, seus irmãos, irmãs, sobrinhos e sobrinhas. Talvez a raiva fosse, já nesse ponto de sua existência, a base de seu ser. Achava curioso, porém, que ele não tivesse tentado reagir contra ela ainda. Não a ameaçara, apenas a assustara para que não jogasse mais nada contra ele. Não levantara a voz, apenas mudara seu tom. E seu olhar ajudava bastante.

–Sobremesa? - Uma serva viera oferecer a deusa. Ela aceitou, pois parecia que a caminhada que deram durante a tarde tinha esgotado todas suas forças, queria apenas comer e comer até se reabastecer. A quebra do silêncio podia quase ser sentida no ar, de tão cruel e repentina que fora. Hades fixou seu olhar nela após terminar sua própria sobremesa, e ela sustentou, como de costume. Ficou quase tonta de fitar aqueles olhos negros, que eventualmente mudavam para um tom escurecido de vermelho ou verde. Eram lindos, por verdade, mas tão tristes e tão sábios ao mesmo tempo.

Hades se levantou e caminhou para a ponta da sala. Perséfone se levantou antes que ele pudesse arrastar sua cadeira.

–Olha, eu estou precisando, como você já deve imaginar, de algumas roupas minhas. Algo que ao menos se pareça comigo.

–Se quiseres algo, há um bloco de notas no seu quarto, - ele a respondeu sem olhá-la, foi falando enquanto andava no corredor - faça uma lista do que necessita que, toda manhã, alguém irá buscá-la e entregar-lhe o que for possível.

–Posso pedir tudo?

–Tudo, desde travesseiros à escolha do jantar, roupas, acessórios, livros, objetos, mobília. Tentarei arranjar tudo que estiver em meu alcance.

–Tudo?

–Sim, Perséfone. - Ele parou na base da escada que daria para seu quarto e se virou. - Alguma outra dúvida?

–Sim.

–Não, não vou lhe dizer o porquê de estares aqui.

–Mas..

–Sem mas. Boa noite.

A deusa grunhiu e se dirigiu ao seu quarto. Iria enlouquecer com o suspense desnecessário, mas não estava com humor para brigar com Hades, seu estômago pedia que não se movesse muito bruscamente, ou estouraria.

Pegara um livro e se deitara para ler, depois de trocar de roupa e de arrumar o cabelo. Seus olhos já estavam cedendo, suas pálpebras semicerradas, quando ouvira a batida na porta.

–O que é? - Rosnou, levantando-se. - Está tarde já! - Abriu a porta e encontrou apenas uma espécia de tiara para cobrir os ouvidos e um bilhete. A letra bem desenhada e elegante encantou Perséfone. Se deitou novamente e colocou o acessório na cabeça. No bilhete lia-se:

“Eu sei como pode ser difícil, mas você terá de aguentar. Sei que é cruel, me perdoe por não poder explicar-lhe, eu sei que achas que tudo será mais fácil quando eu lhe explicar, mas não é verdade. Acredite em mim. Tente entender.

P.S.: O presente é para ajudar-lhe a dormir. Abafará os sons que a incomodam.

Boa noite. Άδης”


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Notas finais do capítulo

Okay lindos, é isso. Eu sei, não é muito, e eu não escrevi a briga da janta (por mais que a taça voando no Hades deve ter sido divertido), porque vocês vão ter bastante vezes pra ver eles brigando pela frente, não é como se ele fossem conseguir paz, né?
Espero que tenham gostado mesmo, deixem comentários dando a opinião de vocês, quero saber se minha escrita enferrujou com essa parada ou se tá tudo okay ainda sodinfasnifs

AHHHH, e gente, por favorzão, divulguem pra todo mundo que vocês conhecem que goste de mitologia, pode ser? Por causa da pausa, a história perdeu muitos leitores, e eu não gosto assim ): Tudo bem que talvez eu não mereça, mas quanto mais leitores e mais comentários, mais inspirada eu fico, viu? dofnasfadf

Ah e se lembrem, eu amo vocês todos por me fazerem escrever.

E E E quem não tem conta aqui no Nyah! mas tá acompanhando mesmo assim e quer me dar algum palpite, elogiar ou criticar, pode ser aqui http://ask.fm/FilhadeApolo q é mais fácil e rápido dofnasfoiasf ou é só falar nas mensagens.
Eu até adiciono vocês no facebook, viu? É só pedir.