A Luz Das Trevas escrita por Filha de Apolo


Capítulo 2
Primeiro dia - Parte 1


Notas iniciais do capítulo

Bah, eu não queria ter que dividir os capítulos, mas ele ficou realmente muito grande, então.. sorry :3
aproveitem.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/247579/chapter/2

Abrira os olhos com a esperança de que tivesse sido apenas um grande pesadelo. Queria sentir o brilho de Apolo em seu rosto, como todos os dias de manhã. Ouviria sua mãe reclamar que ela dormia demais, ela a beijaria de bom dia e desceria para preparar o café da manhã (cereais, como sempre), deixando Perséfone sozinha para se vestir e se arrumar. Pentearia os longos cabelos negros, com seu velho tom avermelhado. Os cachos se arrumariam sozinhos, caindo sobre os ombros da deusa. Vestiria um de seus vestidos leves, ou vestiria um dos que Afrodite a dera de presente, se fosse uma ocasião especial.

Mas não. Não ali. Ela não veria o sol, não veria sua mãe. Não estava em seu quarto, não vestiria suas roupas. Ficaria trancada em um quarto, sozinha. Não que fosse desconfortável, mas ela odiava ficar só, a não ser quando estava irritada ou triste, aí mataria qualquer um que a incomodasse.

Se sentou na cama e se espreguiçou. Havia dormido por cima das cobertas e de roupa, se lembrava disso, mas agora se encontrava com uma camisola que não era sua e uma coberta grossa. Ia se levantar, mas sentiu o ar gelado penetrar sua pele e se deitou novamente.

Ficou imaginando se fora Hades quem a vestira. Ao lembrar dele, um arrepio percorreu seu corpo.

Lembrou das últimas palavras que ele a disse, “eu preciso de você, minha querida”. Involuntariamente sorriu. Por mais confuso que fosse, que não entendesse o porquê dele, rei do Submundo, o mais velho e experiente dos Três Grandes, precisar dela. Logo dela, que não tinha nada de atraente. Se fosse por beleza, havia milhões de ninfas a quem ele poderia raptar, já que seriam mais fáceis e, cruelmente, ninguém sentiria falta delas. Sua mãe, por outro lado, devia estar fazendo o maior escarcéu lá em cima.

Mas ainda assim, ela havia sorrido. Era bom saber que ao menos alguém precisava dela.

Relembrando a noite passada, a raiva que ela sentira voltou. Havia se acalmado, como ele pedira, e descansado. Agora, lembrava daqueles olhos negros a fitando, a pele branca em contraste a sua, bronzeada. O modo como ele a guiara para dentro de seu reino e ela nem percebera onde estava se metendo. Deveria ter gritado enquanto podia, na floresta.

Lembrara de achar estranho e o fitar por alguns longos segundos. Tudo o que ouvira sobre Hades, sobre seus modos, seu reino e sua aparência, eram mentira. Não que isso justificasse suas ações ou amenizasse a raiva que ela sentia por ele, mas as mentiras eram tão cruéis que ela quase sentia pena. Lembrava de ouvir das ninfas com quem plantava e cuidava dos jardins, que Hades era uma criatura monstruosa. Que era irritado, cruel e injusto. Que não suportava a felicidade dos outros e que, por isso, fizera de seu reino o inferno. Que a única cor além do preto era o vermelho, provido do sangue derramado. Não fazia muito sentido, já que almas não sangravam, mas elas contavam com tanta certeza que Perséfone se deixou levar. E sobre sua aparência... diziam que Hades era horrendo, que era um esqueleto ambulante, sem vida, sem expressão.

E então agora, cara a cara com ele, vira que as mentiras era tão absurdas que chegavam a ser cômicas. Olhava para ele, aquele cabelo ondulado, tão escuro quanto a noite, os olhos negros, sábios. A pele pálida, com carne, era bem tratada, apesar de algumas cicatrizes.

Nem encontrara a crueldade, a injustiça e a violência com que ele fora descrito. Ele agiu tão delicadamente com ela. Claro que a trouxe a força, mas em momento nenhum ele a machucou. Por mais que ela gostaria de dizer que ele era um monstro, ele não agia como tal. Parecia tão desesperado. Não cruel, e sim necessitado, paciente.

Ouviu passos no corredor, fechou os olhos rapidamente e tentou controlar sua respiração. Escutou a porta do quarto abrir, alguém andar até o lado da cama. Não era ele, ela notou. O perfume era diferente... parecia mais jovem. O homem descansou uma bandeja sobre o criado-mudo. Por alguns segundos ela sentiu olhos a fitando. Uma mão percorreu o lado do seu rosto, movendo algumas mechas do seu cabelo para o travesseiro. Havia se sentado na ponta da cama e a estava observando. Imaginava quem fosse, quem iria vê-la, além de Hades?

O homem se inclinou, como se tentasse vê-la melhor. Ficou ali por alguns minutos. Deixou que sua mão acariciasse a de Perséfone, subindo um pouco seu pulso e voltando até seus dedos. Sua pele era macia, como a dela.

–Posso saber o que estás fazendo? - Agora era ele. Sua voz soava firme, mas ainda um pouco baixa. Controlara seu tom para não acordá-la, sem saber que na verdade nem estava adormecida. Quase não ouviu os passos de Hades, leves e cautelosos até sua cama. Sentiu o homem se endireitar, se afastando um pouco, mas não tirando os olhos dela.

–Ela é linda, meu senhor. - A voz do homem era carregada, cheia de confiança e paz. Se ele pedisse, ela o seguiria. Era como se sua voz movesse sua alma. - Hipnos viu o senhor chegar com ela, e viu o incidente do lago. Me contara de sua beleza mas eu não acreditei, tive de checar. - Perséfone sentiu o homem virar seu rosto levemente, deixando-o mais livre. - Ela não é como as outras deusas, não é a mesma beleza. Ela parece tão leve, tão frágil, não é a beleza dura e imponente de Hécate, por exemplo.

Perséfone lutou para não sorrir. Ele parecia tão meigo.

–Eu sei – A voz de Hades soou tão dura, tão cruel. - Eu a observo há tempos, criança – Hades suspirou, se tranquilizando um pouco. - Você verá quando ela acordar. Seus olhos são mel e brilham quando ela fica feliz. Seu sorriso encanta, como se não houvesse nada mais – Suspirou novamente. Deu por conta do que estava falando, e para quem estava falando e pigarreou. - Agora me diga, que pretexto usou para chegar aqui? Deixei bem claro que apenas eu a visitaria.

–As almas me deixaram passar, não havia muito o que pudessem fazer. E eu trouxe comida. - Ele disse, apontando para a bandeja. Hades levou a mão no rosto, impaciente.

–Você sabe que ela não pode comer a comida daqui. Eu já mandei trazerem algo lá de cima.

–Mas, senhor, com todo o respeito, qual a diferença? Você a manterá aqui, não? Então por que não a enlaçar com o Mundo Inferior desde já? - Perséfone franziu o cenho. Rapidamente voltou ao normal, lembrando que poderiam tê-la visto. Confusa, passou em sua mente todas as histórias que ouvira sobre o Submundo, mesmo as mais absurdas, tentando relacionar algo com a comida.

–Eu tenho tudo planejado. Chegará o momento em que ela poderá escolher, não a manterei aqui para sempre. E se ela nunca se adaptar? Eu não sobreviveria com tranquilidade sabendo que a tornei infeliz.

–E você acha que ela será feliz aqui de qualquer modo? Senhor, o que o faz pensar que ela o escolheria?

–Algo que está além da sua compreensão. Agora vá, Tânatos, e não intervenha em meus planos. Você tem uma boa quantidade de almas para guiar, não?

Perséfone sentiu Tânatos encolher com o tom de voz usado por Hades. Ele parecia não querer agredir o jovem, mas havia se descontrolado por um momento.

Tânatos levantou e saiu, fazendo uma breve reverência em frente a Hades antes de se dirigir, de cabeça baixa, pelos corredores do palácio até uma de suas passagens para as Portas da Morte.

–Você não precisava tê-lo tratado daquele modo – A voz de Perséfone soou fraca, quebrando o silêncio. Hades ergueu uma sobrancelha, levemente surpreso.

–Escutar a conversa dos outros não é muito educado.

–Oh, sim, porque você é um exemplo de educação – Perséfone disse, abrindo os olhos, sentando-se. - E além do mais, vocês estavam falando de mim ao meu lado, eu tinha todo o direito de escutar. Se não quisesse assim, que fosse para outro lugar.

–Vejo que acordou disposta – Ele disse, caminhando até uma das janelas e ignorando completamente os xingamentos “indiretos”. - Se for de seu agrado, posso lhe mostrar o Submundo.

–Ah, que bom! Eu estava mesmo louca para conhecer melhor a minha prisão – Ela disse, sarcástica, revirando os olhos.

–Ótimo. Vista-se. Há vestidos novos no armário. Se precisares de ajuda é só pedir no corredor, uma das almas a auxiliará.

–Eu estava brincan...

–Voltarei para começarmos – Ele disse, se dirigindo à porta. - E vista um casaco, está mais frio lá fora.

Ele saiu, deixando-a sozinha novamente. Parecia ter o dom de deixá-la intrigada e irritada. Levantou, relutante, das cobertas quentes e foi se arrumar.

XxxxxX

Os vestidos nem eram tão ruins quanto ela imaginara. O problema é que eles todos escuros. Tons escuros de vermelho, de azul, de verde. Na verdade eles eram pretos com alguns detalhes pequenos em cores diferentes.

Ela nunca havia usado preto em sua vida.

Vestira um preto, simples, com alguns detalhes em branco. Vasculhou a penteadeira à procura de joias. Achou diversas, todas completamente diferentes do que ela estava acostumada. Escolheu um conjunto de brincos e colar de pérolas negras.

Decidiu que não prenderia seu cabelo. Era bom tê-lo solto, balançando sobre seus ombros. O usava bastante preso, quando estava no Olimpo, já que cuidava das plantas e não queria sujá-lo de terra nem adubo. Escovou-o, deixando os cachos para frente.

Quando levantou e se mirou em um espelho comprido que havia no quarto, sorriu. Estava, de um modo diferente, bonita. Era como se olhasse sua sombra.

Não havia se passado muito tempo de que havia se sentado para esperar Hades e ouviu algumas batidas na porta.

–Sim? - Ela disse, doce.

–O Senhor a aguarda no final do corredor. - Uma voz gélida a respondeu. Sentiu um arrepio. Devia ter sido uma das almas que Hades mencionara. Não sabia bem o que estava esperando, mas se surpreendeu quando saiu para o corredor.

Duas almas, mulheres, estavam paradas ao lado de seu quarto. Pareciam perdidas em devaneios, lembranças do que haviam sido um dia. Quando perceberam a presença e o olhar de Perséfone, a reverenciaram. Perséfone sentiu suas bochechas corarem.

–Não precisam... - Ela murmurou, sem jeito. Sentiu uma mão tocar seu ombro. As almas se recolheram. Se virou e viu Hades. Se desvencilhou delicadamente do seu toque. Ele se virou e saiu andando, olhando para trás algumas vezes para ter certeza de que ela estava o seguindo.

–Por onde queres começar, por fora ou por dentro? - Ele disse, assim que chegaram na sala de tronos.

–Por fora, acho que é melhor. Depois, se aqui segue a ordem natural das coisas, quando ficar mais tarde vai esfriar...

–Ah. Seu raciocínio está certo, mas eu ainda estou esperando o sol artificial que pedi a Apolo para que as coisas funcionem assim.

–Depois disso tudo, duvido que ele dê algo a você – Ela murmurou para si. Caminhando ao lado de Hades até o portão principal. - Então, vamos começar por dentro?

–Ãn... você tinha dito...

–Eu sei, mas não vai esfriar mesmo, então vamos começar por dentro – Ela disse, soando autoritária. Hades ficou a observando. - Por favor? - Ela disse, desviando seu olhar.

–Claro, como queiras – Ele disse, virando e voltando a caminhar pelo corredor de onde eles vieram.

–Então... - Ela apertou o passo para chegar até ele e depois voltou a acompanhá-lo. - Pretende me deixar trancada aqui por quanto tempo? Assim, só para eu ter uma noção - ”Se eu vou sobreviver ou não”, ela acrescentou em sua mente.

–Eu... - Ele disse, deixando a voz morrer. Na verdade ele não sabia. Tudo dependeria do quanto ele conseguiria mantê-la ali sem que Deméter viesse vê-la. Seria tortura demais ter a mãe ali e Hades impedi-la de vê-la. Ele não queria fazê-la sofrer, mesmo que ela provavelmente fosse sofrer de qualquer maneira.

–Você...? - Perséfone falou, sem paciência. - Olha só, não é só porque você é...

–Chegamos – Cortou Hades. Eles haviam andado lentamente até uma porta. Hades a abriu e entrou. - Essa aqui é a Sala de Jantar. Pode ver que ela tem uma porta direto pra Sala dos Tronos.

–Hades, porque é “Sala dos Tronos” se há apenas um trono? - Ele a fitou, fazendo-a corar levemente. Ele abriu a boca, como se fosse falar, mas depois desistiu. Ela resolveu insistir depois, até porque ela ainda queria saber quanto tempo ficaria ali.

Perséfone parou para observar a sala.

Vislumbrá-la, na verdade. Sombria e estonteante ao mesmo tempo, a sala era carregada de cinza, preto e tons próximos ao vermelho. Duas janelas em vitral se erguiam na parede, sua vista bloqueada por cortinas negras que pareciam rasgadas ou queimadas e que se encaixavam perfeitamente na cor magenta do papel de parede. Uma grande cristaleira se postava no lado direito da sala, exibindo uma coleção de taças de cristal, um conjunto pomposo de pratos e talheres e mais alguns utensílios de cozinha.

No centro da sala estava a mesa de mogno negro, com três cadeiras de cada lado e duas maiores nas pontas, como tronos, estofadas com veludo vermelho. A mesa estava posta para o almoço, Perséfone notou. Um prato em cada ponta da mesa. Tudo que estava preparado era majestoso, digno de um rei, tão bonitos quanto os utensílios expostos na grande cristaleira.

–Vejo que gostaste, minha senhora. - Perséfone deu um pulo, se virando na direção da voz gélida que a chamara de volta à realidade. Uma alma pairava, vestida de cozinheira, no canto esquerdo da sala, onde Perséfone notou que havia uma porta, revestida pelo mesmo papel de parede dos arredores da sala, camuflando-se com as paredes. Assim que percebeu o susto de Perséfone, a alma se encolheu um pouco e abaixou a cabeça – Me perdoe, senhora, minha intenção não era assustá-la.

–Tu-tudo bem – a deusa disse, tentando fazer sua voz soar tranquila. -, tudo bem mesmo. - Perséfone sorriu levemente.

Perséfone teve seu rosto corado bruscamente quando seu olhar varreu a sala e chegou em Hades, que a fitava de braços cruzados, encostado do lado da porta principal. Um sorriso tímido brotava no canto de seus lábios, involuntariamente, enquanto a analisava.

–Vamos? Nós não temos, tipo, um batalhão de outros lugares pra ver? - Ela disse, soando mais grossa do que esperava, o despertando de seu transe. Ele piscou os olhos e a olhou novamente, assentindo.

–Vamos.

XxxxxX

Depois de horas andando, o estômago de Perséfone começou a roncar alto de fome.

Haviam conhecido o primeiro e o segundo andar inteiros do Palácio, juntamente com a maioria dos habitantes dele. Quartos vagos, quartos de deuses, escritórios, banheiros, armários. Passaram pela ala reservada à Hécate, a deusa da magia e fiel serva de Hades, que não havia gostado muito de Perséfone.

Hades mostrou à jovem deusa como entender os corredores, como distinguir as portas e onde ficava cada coisa, mas ainda assim insistira para que ela só saísse do quarto se fosse necessário.

Estavam se aproximando do quarto de Perséfone, que havia esquecido sua raiva para dar lugar à curiosidade imensa que ela guardava. Ela mexera em cada maçaneta, cada quadro, cada janela que encontraram pela frente. Quando Hades parou em frente à porta da “cela” de Perséfone, a deusa passou reto e foi até o fim do corredor.

–Não passamos por aqui. - Ela comentou, parando em frente a portas duplas, grandes e elegantes, e virando para Hades.

–Eu ia deixar para depois do almoço, já que seu estômago parece não aguentar muito mais.

–Mas o quê é aqui? - Ela virou para as portas. Pegou uma maçaneta e tentou girar, apenas para encontrá-la trancada. - Hein?

–Nada de mais. Te trarei aqui depois que comermos, combinado? - Ele parecia estar falando com uma criança. - Agora troque de roupa, se quiseres, e desça para comer. Estarei te esperando.

–Eu vou sozinha? Mas você disse que era para eu não sair sozinha, apenas se...

–É só um teste. Você não vai se perder, certo? Acabei de lhe mostrar o caminho.

Perséfone bufou, a raiva voltando a consumi-la.

–Ah claro, sozinha de novo – Ela entrou no quarto e fechou a porta na cara de Hades, não dando-lhe tempo de reclamar.

Hades suspirou, observando a porta. Virou e saiu andando. Não tinha porquê se desculpar ou qualquer coisa do gênero. Subiu as escadas para seu quarto, deixando Perséfone irritada para trás.

Depois de caminhar, emburrada, de um lado para o outro, Perséfone foi até o armário no closet e retirou todos os vestidos de lá. Jogou alguns na cama, outros pendurou, com cabides, em maçanetas, todos de um modo acessível, para que conseguisse vê-los em conjunto.

Se escorou em uma parede e os observou. ”Se ficarei por aqui, o farei do meu jeito”.

Saiu do quarto, caminhando até uma das almas que ficavam de guarda, esperando seu chamado.

–Olá – ela disse, forçando um sorriso simpático. A alma de curvou, murmurando um “minha senhora” quase inaudível. -, você pode conseguir algumas coisas para mim?

–Sim, senhora. - A alma sussurrou, assentindo levemente.

–Ótimo, vou precisar de algumas bacias profundas. Umas cinco servirão. Tesouras, linhas e agulhas também. Papéis e penas com tinteiros também. - Ela parou por alguns instantes, refletindo. - E também cinco vasos pequenos para plantas. Pode conseguir isso para mim? - Perséfone adicionou a pergunta no final, diante da expressão apreensiva da alma.

–Claro, senhora, eu só precisarei da permissão do senhor Hades... Talvez eu demore para conseguir os vasos, senhora.

–Tudo bem, qualquer pote não muito grande servirá. Quanto ao Hades, eu o comunico, querida. - Perséfone sorriu, fazendo a serva ficar um pouco sem jeito diante de toda a sua delicadeza. A alma reverenciou a deusa e saiu para aprontar as coisas.

Descendo as escadas, Perséfone caminhou até parar em frente a uma porta. Na realidade, não fazia a mínima ideia de onde estava, mas torcia para ser a sala de jantar.

Abriu a porta, apreensiva.

–Hades?

–Não. - A voz seca a respondeu. Feminina. A deusa da magia largou o livro que estava lendo e andou até a porta, bloqueando a entrada de Perséfone.

–Ah, Hécate... - Perséfone olhou para o chão, desviando o olhar duro que a deusa a dirigiu. - Me desculpe, estou procurando a sala de jantar.

–Ela fica para o outro lado.

–Obriga-ada. - Perséfone disse, se virando e indo embora. Se amaldiçoou por gaguejar. Já havia percebido que, de cara, Hécate não a aprovou. Ela se dirigiu à Perséfone como se esta fosse uma intrusa, se metendo em seu reino. E se dirigiu a Hades com toda a ternura possível.

Depois de caminhar mais um pouco, passando três vezes pela sala dos tronos (que continha várias entradas e saídas diferentes), chegou até a sala de jantar.

Hades estava no fundo da sala, encostado na parede, lendo uma lista enorme de nomes. Assim que ela entrou e seu perfume chegou ao seu alcance, o deus ergueu os olhos.

–Se perdeu?

–Sim – ela disse, suspirando derrotada. -, fui parar no quarto de Hécate.

–Hum – ele disse, andando até ela -, imagino que tenha sido agradável a sua visita. - Se não fosse pelo micro sorriso que ele dera, Perséfone acreditaria que ele estava falando sério, mas era apenas sarcasmo disfarçado. Ela estava acostumada.

–Ah, sim. - Ela disse. Hades puxou a cadeira de uma das pontas da mesa, esperando ela sentar. Demorou alguns segundos, mas ela entendeu que era para ela a cadeira. Se sentou e Hades a empurrou delicadamente para a frente. Ela utilizava todas as suas forças para odiar o cavalheirismo, mas os esforços estavam se mostrando inúteis. Ele havia feito isso durante a manhã inteira, a tratando como uma dama, com modos que ela nunca imaginaria ver em Hermes, Apolo ou até mesmo seu pai, Zeus. Era para irritá-la, mas ela não conseguia.

Ele andou até a outra ponta e se sentou. Logo que o fez, servas serviram a comida rapidamente e saíram, restando apenas uma.

–Minha senhora, desejas beber o quê? - A alma disse, dirigindo-se à Perséfone, sem encará-la. A deusa olhou para Hades, esperando uma sugestão.

–Perséfone, você bebe? - Ele perguntou, enrolando a lista de nomes. Ela queria responder que sim, mas não iria mentir apenas para parecer mais madura.

–Apenas em ocasiões especiais.

–Hum... então traga-nos água mineral, querida – Hades disse, virando para a alma, que assentiu e volto à cozinha. Perséfone ergueu uma sobrancelha para o “querida”. Nunca vira seu pai chamar uma serva assim, muito menos uma das cozinheiras.

–E então, vai me dizer quanto tempo ficarei aqui? - Perséfone disse, colocando o guardanapo de pano em seu colo. Hades fez o mesmo.

–Quanto tempo for necessário. - Ele disse, se servindo de um pedaço de carne vermelha. Perséfone revirou os olhos e bufou por causa da resposta indireta.

–Necessário para o quê? - Disse, servindo salada em seu prato.

–Para você entender.

Ela iria perguntar o que deveria entender, mas resolveu comer, já que seu estômago estava se manifestando de forma indelicada. Comeram os acompanhamentos e a carne, que Perséfone demorou para identificar como gado temperado, em silêncio, ouvindo apenas a respiração um do outro. Apenas quando a alma voltou, com as águas, que o silêncio foi quebrado por um agradecimento de ambas as partes.

–A comida não é daqui, certo? - Perséfone disse, cansada do clima que se estabelecera no cômodo. Hades ergueu os olhos, da comida para Perséfone, depois os baixou de volta para a comida.

–Certo. Vem do seu mundo, tanto as carnes, quanto o acompanhamento. Até a água.

–Por quê? - Ela perguntou, cruzando seus talheres, satisfeita.

–Você sabe o porquê. - Ele fez o mesmo que ela, limpando sua boca com o guardanapo e o deixando em cima da mesa ao se levantar. Perséfone o seguiu, ficando de pé, ao lado da porta.

–Sei?

–Sabe. - Ele abriu a porta, acenando para ela passar primeiro. Antes de sair, o deus virou e conversou algo com as servas que tiravam a mesa, algo que Perséfone não ouviu.

–Vamos àquela sala? - Perséfone disse assim que eles subiram as escadas para o segundo andar. Hades sorriu discretamente.

–Imaginei que não esqueceria. - Disse, se dirigindo diretamente à porta e a abrindo.

Perséfone acelerou o passo para entrar logo, se surpreendendo.

O salão era, provavelmente, o cômodo mais iluminado que ela encontrara até agora, no castelo. Gigantescas estantes, cheias de livros, se erguiam nas paredes cor de vinho. Haviam escadas para alcançar os livros mais altos, com rodas, e escadas fixas que levavam ao segundo andar da biblioteca, que era um mezanino que fazia a volta em toda a sala.

Havia uma mesa grande, no centro da sala, com dois sofás aconchegantes, um em cada lado. Perséfone imaginou que se houvessem reuniões, estas se realizariam ali. Um trono, não tão majestoso quanto o oficial, da sala de tronos, mas ainda assim elegante, estava postado em uma das postas da mesa.

Poltronas de leitura estavam espalhadas, discretas, perto dos cantos da sala. O lustre que descia do teto era como um esqueleto, todo feito de ossos que, de alguma forma, ainda portavam detalhes em cristais. Os ossos dos finais das linhas, que formavam, cada uma das seis, uma parábola com a vértice para baixo¹, estavam em chamar, ardendo com tal intensidade que iluminavam o cômodo suficientemente. Apenas alguns candelabros eram necessários, onde o mezanino, com seus corrimãos prateados, fazia sombra.

Hades sorriu ao ver a expressão atônita de Perséfone.

–Me orgulho dela. A projetei sozinho, e colecionei cada livro que se encontra aqui. - Ele deu um passo a frente, respirando fundo, os olhos com um leve brilho diferenciado.

–É linda.

–Sinta-se à vontade para utilizá-la. Lembre-se de que elas estão separas por categoria, em ordem alfabética. Se precisar de ajuda, é só me chamar.

–Como sempre. - Ela comentou, soando mais seca do que gostaria.

–É... - Hades disse, levemente abalado. - Vou para os meus aposentos, então.

–Não vamos terminar de conhecer o castelo? E resta ainda os campos lá fora.

–Deixamos isso para outro dia, soube que pediste alguns apetrechos para plantar e... desenhar, talvez? Não importa. Te deixarei à vontade, divirta-se a seu próprio modo.

–Ãn... obrigada.

Ele saiu sem acrescentar mais nada, deixando a porta aberta. Perséfone fitou as paredes repletas de livros por mais alguns instantes antes de sair. Decidiu que voltaria ali mais tarde, estava precisando descobrir mais sobre sua própria família, e algo a dizia que poderia encontrar as respostas que sua mãe tanto se negara a responder.

Partiu para seu quarto, encontrando tudo o que pedira empilhado de forma organizada em sua cômoda. Suspirou, prendendo o cabelo com uma presilha e se ponto a trabalhar.

Depois de encher as vasilhas de água e os vasos de terra, Perséfone murmurou algumas palavras, fazendo surgir mudinhas de plantas diferentes em cada vaso. Pegou, então, os papéis e a pena e se dirigiu à biblioteca.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Um graaaaaaaaaaande beijo e um muito obrigada para a SohnSah pela linda recomendação :3333 (sigam o exemplo dela, gente!)
1bj pro meu professor de matemática, com suas parábolas e vértices (que na verdade eram as pernas e a bunda, mas ele também sabe usar nomes filosóficos K)
mts beijos pro meu meio-irmão lindo e maravilhoso, Gabriel (ap0lo | tumblr), que me ajudou com (mentira, ele praticamente fez pra mim) a decoração da sala de Jantar.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Luz Das Trevas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.