A Vida de Uma Garota Nada Popular escrita por Lu Carvalho


Capítulo 30
Natal de uma Garota Super Desanimada




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O mundo ficou preto e branco.

Mas meus lábios ardiam em vermelho.

Era isso! Isso que me corrompia. Isso que jazia a dormência temporária de meus membros. Isso que me era indecifrável.

Agora era óbvio demais.

Eu gostava de Matheus há muito.

E nem sabia.

Eu amassei seus cachos como se fosse a última vez. Pressionei forte os dedos em seu ombro como se fosse a última vez. E pus-me a esquecer de tudo como se fosse a última vez. Afinal, acho que era.

Primeiramente, Matheus ficou paralisado. Creio que não sabia se ou me beijava, ou afastava-me para relembrar o bom senso.

De qualquer forma, cedeu. Tudo o que nos estava entalado na garganta foi trocado naquele beijo. Todo um ano foi recompensado. Eu estava louca de tantos ampéres. A cada movimento, uma corrente elétrica desdobrava-se. Ele tinha muita firmeza. Acho que num timbre desesperado, mas calmo, fez tudo certo. Dançou suas mãos por minhas costas, trazendo-me para mais perto.

Uau.

Eu gostava muito de Matheus.

O mundo estava preto e branco. Charmoso e feliz.

Aquela coisa da minha nuca pulsava mais forte que nunca. Aquelas tais borboletas voaram finalmente, e fui preenchida por toda a paz do mundo. Matheus, com suas mãozonas, segurava minhas bochechas tão tão que derreti-me toda.

Sorri. Ele sorriu. Reencostamos nossos narizes e sorrimos feito bobos.

Ele selou-me outro beijo. Suspirei. Soltei:

–Matheus, não vai.

Ele não tinha palavras. Estava gago.

O beijei de novo.

–Por favor.

Afastei-me, assustada com seu silêncio.

–Eu... tenho que ir. Acho.

–Não, não, não! - protestou, trazendo-me de volta para perto de si. - Eu... É...

–Por favor. -repeti.

Ele não disse nada. Ficamos apenas em pé, de mãos dadas frente a frente.

Já era. Eu gostava de Matheus. Agora era tudo claro demais. Eu gostava dele pra caramba! Eu não conseguiria ficar sem ele!

Ele não disse nada.

Como eu não queria que o momento se estragasse, fui beijá-lo novamente. E continuamos, feito dois insanos sedentos por este momento. Eu o estimava tanto, mas nem sabia. Mas nem sonhava.

Certo momento, repeti:

–Não vai...

O dono dos cachinhos sorria sem parar. Eu sorri por ele sorrir. Mas o que eu iria dizer era não vai dar. Tornei a falar:

–Matheus, eu meio que estou falando sozinha... E aí?

–E-Eu não sei. - enfim, disse.

Gotas iniciaram a cair do céu.

Uma. Duas. Cinco. Dezesseis.

–Eu tenho que ir. - soltei. -Você pode me ligar?

Ele sorria mais que tudo. Deu-me outro beijo. Sorri, de estômago flamejante. Ele assentou. E fui para as escadas.

Virei a cabeça, para olhar uma última vez Matheus. Ele sorriu de novo. Eu sorri. Adentrei-me no prédio.

E esta foi a última vez que o vi pessoalmente.

***************************************

Já reparou? Já reparou como um segundo destrói anos de trabalho? Já reparou como detalhes fortes do nosso livro se tornam entediantes? Já reparou que quando estamos mergulhados numa poça rasa de lama a única coisa que nos alivia é a própria lama? Já reparou que muitas das nossas questões nunca serão resolvidas?

Já reparou que quando encaramos o teto,enquanto deitados na cama, nossa existência é mera e duvidosa?

Aquela garota de 16 anos prestes a completar 17, faria 17 no dia santo de Natal.

E eu estava pirando.

Digo, fazer aniversário no Natal sempre foi um saco. Todos camuflam o dia mais importante do ano com esse tal de papai Noel. Sabe, qual é! Ruim também que ganho apenas um presente. Enfim, eu não queria mais fazer 17. Isso me deixava bem mais perto da fase adulta. E eu não sei lidar com a fase adulta.

É curioso o quanto o tempo te muda.

Digo, minha história era realmente um clichê. E, olha, que eu sempre condenei clichês! Eu acredito que de tanto ódio por clichês, eu virei um. Afinal, convenhamos... Eu tinha uma arqui inimiga, uma paixão platônica por seu namorado, um único melhor amigo - que gostava de mim - e um cara que apareceu do nada e virou meu mundo de cabeça pra baixo. Eu sou o clichê em pessoa.

Entramos em recesso na escola, devido ao tempo de festas. Não vou negar, foi um alívio. A escola não me cabia mais, entende? Eu estava tão mais liberta mentalmente, que voltar pra escola parecia ser um erro. Como dar um cigarro pra um ex-fumante. Ou seja, não encaixava. Tanto que não tinha mais enxaqueca de Anne e Liam.

Nossa, Anne e Liam. Você ainda lembra desses nomes? Parece que após a viagem desfoquei meu foco direto para outros horizontes, e nem importar com eles me importo agora. O que é engraçado. De um jeito ou de outro, eles eram as coisas mais importantes da minha vida. Eu girava em torno de raiva por Anne e amor por Liam. Será que se eu dissesse para a Mari do passado que em pouco tempo eles dois seriam pontos insignificantes, eu acreditaria? Acho que não.

Sabe, uma coisa que me peguei pensando; sempre quando alguém me pergunta como foi meu dia e como eu estou, respondo as mesmas coisas. Agora, será que o faço porque sempre estou bem e o meu dia sempre foi bom? Ou será que faço isso porque já é automático? Ou, pior, porque não sei como dizer? Dizer como foi o dia. Dizer como estou. Isso sim é aterrorizante. Sabe, ser incapaz de dizer aos outros. Mas o pior - pior de verdade - deve ser não ter reparado no que aconteceu, e portanto não saber dizer. Porque mesmo se eu não conseguisse dizer, eu saberia o que aconteceu. Eu saberia as coisas que ouvi ao decorrer do dia. Saberia as coisas que senti. Saberia as coisas que vi. Mas e se eu não soubesse? Se eu simplesmente não tivesse notado?

Até a idéia de ser normal demais já aflige. Sabe, aquela coisa de que no final das contas você apenas reproduziu exatamente a vida de outro alguém. Outro alguém que já repetira isso. A sensação hedionda de um dia improdutivo. A sensação aterrorizante de que esses dias sejam meses, e os meses sejam anos. Anos sejam uma vida. Acredito que todos tenhamos essa coisa.

Essa coisa.

Essa coisa péssima.

Eu quero poder olhar para minha vida daqui a trinta anos e ter orgulho do que fiz. Ter orgulho das escolhas corajosas e impiedosas. Impiedosas de medo. Eu quero poder ter o dom de saber que palavras usar e que horas as usar. Eu quero poder saber o que saber. Eu quero poder fazer. Eu quero poder.

Você pensa nisso também?

Por que é que isso acontece?

Por que é que eu não sei o que quero fazer?

Eu gostaria de te dizer agora a fórmula para se encontrar, para saber seus anseios e o que fazer da vida. Mas a verdade é que nós nunca saberemos! Mas a gente tenta. Eu tentei, por exemplo. Acho que meu negócio é desenhar. Mas pode não ser. Mas pode ser! Isso eu só descobrirei tentando. Portanto, a coisa mais útil que poderei dizer-te agora é tente. Tente antes que te tentem.

Porque eu fui tentada. E é a pior coisa do mundo!

Depois de porvolta uma semana, Thiago me perguntou o que é que eu tinha em mente. O que é que eu ia fazer. Lógico que não soube responder. Fiz cara de pasma e caiu a ficha. Eu estava no terceiro ano. E não sabia o que fazer.

Isso me levou a uma série de reflexões. Quais algumas estou te dizendo.

Foi numa loja de conveniências que isso aconteceu. Estávamos comprando decorações de Natal (e aniversário) e etc. Eu havia me comprometido a fazer a ceia junto de Bruna, só que tinha quase certeza que no final das contas pediria para minha mãe entrar no meu lugar. Então, eu tinha que amenizar as consequências trazendo enfeites bonitinhos.

Mas, de qualquer jeito, ela não poderia ficar brava, porque depois seria meu aniversário. E é proibido na lei sentimentos contrários a felicidade no aniversário dos outros.

Pro meu alívio, Bruna e eu estávamos ok. Muito OK! Ela pediu desculpas, dizendo que exagerou quanto a Johnny e que a culpa não era minha. Eu também achava isso, mas na hora pedi desculpas também pelo meu comportamento. E voltamos a ser sorrisos. Viu? Como algumas palavras fizeram um bem-estar danado. Algo que deve ser estudado com cautela.

–Não sei. - respondi na maior sinceridade do mundo. -Não sei o que vou fazer.

–Como assim? - perguntou Thiago, num timbre de desaprovação. -É impossível que você não tenha idéia.

Meus olhos estagnaram em um guirlanda bonitinha.

–Surpresa, então: eu não tenho a mínima idéia do que eu tô fazendo com a minha vida.

O clima ficou tenso.

Ele sempre soube o que queria fazer, e quando fazer. Ele quer mudar o mundo, criando alguma empresa que possa ajudar. Por isso ele fará Economia. Agora, eu? Eu quero mudar o mundo. O meu mundo. Pode até parecer egoísta, mas é verdade. Eu sou alguém tão dispersa de tudo, tão não planejada. Se eu não conseguir mudar o meu mundo, como mudarei o de todos?

Ele não entende isso.

Após passar as compras no caixa, demos de cara com a Quinta Avenida petrificada em neve. Thiago vestia um big sobretudo e um cachecol, enquanto eu, a friorenta do casal, vestia dois grandes casacões, uma touca vermelha e luvas. E duas meias. E uma calça moletom. E uma bota. Mas ao entrar na lojinha, de temperatura bem mais agradavelmente quente, tivemos de nos desarmar. Agasalhamo-nos outra vez, e começou:

–Como assim?

Irritada, explodi:

–Thiago, você bem sabe que eu não sei. Qual é a surpresa?

–A surpresa é que isso não é normal! Você tem que saber o que você quer fazer!

–Mas eu não sei! A única coisa que eu sei fazer é desenhar, e olhe lá! Não, eu não pesquisei faculdades até agora e não, eu não sei se farei uma faculdade.

–Mas porquê?

–É caro demais! E eu não saberia que curso fazer.

Andávamos rápido e apressados. Eu queria acabar logo com a conversa.

–Você não precisa saber logo de cara. Pode experimentar e depois escolher.

–As coisas não são assim, Thiago.

–Não são porque você não quer. -bufou baixo atrás de mim.

Joguei as compras na calçada. Virei-me completamente:

–Já é assustador o suficiente não saber o que quero. Mas é ainda mais assustador ter ninguém que me suporte.

Entramos num silêncio desconfortável.

Cabisbaixo e sem jeito disse: -Não foi isso qu...

–Eu sei. - interrompi. - Eu sei.

Peguei as compras novamente, dei dois passos à sua direção e, próximo a ele, disse:

–Você tinha um plano na sua cabeça; iríamos pra faculdade juntos e bla bla bla. Parte de mim acreditava nisso, e agora que eu sei que não...

–Desculpa. - completou.

–Eu não sei de mais nada.

E foi essa a conversa. Após deixarmos as compras em casa (que na verdade é um apartamento), Thiago despediu-se e partiu. Fui obrigada a pensar mais sobre o acontecido sozinha e acabar com o nosso pote de sorvete.

Enfim, dias depois eu conversei com meu pai, sabia? Conversei, converseeei, conversei. Discutimos toda a relação, de forma bem intensa.
Bem intensa.

Ele explicou mais sobre sua depressão. Seu tempo em Chicago. Aquela tal mulherzinha. Não quero dizer muitos detalhes. A única coisa que você precisa saber é que eu conversei com ele. E que estamos bem melhores agora. Não quer dizer que ele virou o pai do ano. Mas que estamos bem melhores. E consigo sobreviver o meu aniversário. E o Natal.

Eu também conversei com minha mãe. Soube mais do que rolou em Chicago. Coisas bem intensas. Mas pro meu alívio, eles não ficaram ou qualquer coisa assim que pais divorciados não poderiam fazer. Apenas vieram comemorar o Natal como uma família novamente. E o meu aniversário de 17 anos.

Como uma família.

Tudo aparentemente ok, sabe? Tudo, sim, ok.

Ao mesmo tempo que nada estava ok.

Digo, eu faria 17 anos. E meu namorado ia pra muito, muito longe. E só isso.

Exceto que não era só isso. Que o real motivo para nada estar bem é que um idiota que ajudou-me a levantar quando ralei o joelho apareceu por ser meu colega de desenho. Meu colega que virou um amigo descomunal. Qual eu não importo se é filho do presidente, filho do David Beckham, filho da Meryl Streep ou do filho do mendigo da esquina. Só me importa que este cara conseguiu entrar na minha vida sem pedir licença, e saiu dela sem aviso. Só me importa que antes eu não idealizava algo entre nós, e quando ele deu por partir me embasbaquei toda. Só me importa que eu o beijara, naquele impulso irreal, e ele foi embora. E ele foi embora.

Embora.

E não voltaria.

Talvez assim seja melhor mesmo; que ele não volte.

.........

24 de dezembro.

Aquelas musicas natalinas soam incessantemente em nosso vídeo cassete.

Já te contei isso? Nós temos um vídeo cassete! Sim, bem pré-histórico, eu sei. Mas bem útil. Meu pai trouxe suas fitas antigas para assistir conosco, e devido ao nosso aparelho antiquado, podemos revê-las! A maioria são gravados nossos, quando pequenas e bobas. O resto são vídeo-clips. Quais estamos ouvindo agora.

Meus pais estão na sala, discutindo formalmente algo. Bruna e eu estamos preparando a mesa. Trocamos poucas palavras, a fim de aproveitar melhor o som e o momento. Afinal, será o nosso primeiro Natal juntos em muitos anos. A sensação é estranha.

Voltei a ser aquela menina assustada de antes, esfomeada para a ceia começar.

Mas mesmo assim, não era isso. Não era o fato de estarmos todos juntos outra vez, não era o fato de ser Natal, não era nada disso.

Era eu. Eu me sentia tão estranha.

Será que era porque eu faria 17 amanhã?

Bruna decidiu decorar a casa. Eu decidi acender o incenso. Meus pais decidiram abrir a janela, dando vez aos flocos de neve.

E Thiago decidiu aparecer atrasado.

–Desculpa - cumprimentou-me num selinho. - Demorei para achar!

–Achar o quê? - ele entrou e eu fechei a porta. Apoiei-me na maçaneta e arqueei as sobrancelhas para ele.

–Hmmm... nada. - e sorriu.

O tempo lá fora estava num misto de nevasca tempestuosa. Noticiaram no jornal que era possivel um apagão temporário na noite de Jesus. Mas eles estavam errados! Evidências históricas indicam que Jesus nasceu em março ou abril, muito longe de 25 de dezembro. Acabou-se por estagnar 25 de dezembro para camuflar uma festa pagã famosa da época. Como uma competição entre festas. Qual Jesus saiu ganhando. Sabia que nem no ano 0 ele nasceu? Dizem que fora 4 a.c. Pois é! Dê um Google nisso.

Enfim, estava um tempo horrível. Mas estamos aquecidos e seguros no apartamento.

Thiago foi cumprimentar minha família, enquanto eu ainda estava lá na maçaneta, o observando ser ele.

–Mari. - Bruna chega ao meu lado, recheada de gliter e cola. - Tudo bem?

–Ahn? - fiz.

–Sei lá, você parece triste.

–Eu tô bem - respondi, ainda fixa em meu melhor amigo, que logo logo não estaria mais aqui.

–Então porquê é que você está tentando entrar na porta?

–Quê? - saí de minha posição e fiz-me estreita.

–Você estava deslizando na madeira, quase caindo. Acorda, Mari! - Bruna tapeou minha bochecha esquerda de leve- É Natal, e você tem que estar feliz.

Sorri sem graça e fui em direção a cozinha. Eu tinha de tirar o tender do fogão. Averiguo meus pais papeando com Thiago alguma coisa bastante interessante, pelo o que parece. Aquela sensação estranha invade de novo. Thiago é tão legal, e tão social. O que é que o atraiu em mim, esse monte de sistemas embaralhados?

Pensando nisso, avistei a mochila dele no balcão. Lembrei que ele disse "demorei para achar".

Provavelmente estava guardando um presente pra mim.

Enquanto eu simplesmente esqueci de comprar algo.

Uma força magnética sobrenatural levou-me a fussar sua mochila.

Casaco. Celular. Chaves de carro. Chaves de casa. Kit-Kat. Hmmm, perdeu. Desodorante. Cartão postal. Cartão postal? Cartão postal.

Tirei o cartão postal da mochila. Era um cartão postal de Natal. Por quê é que havia um cartão postal com ele? Era pra mim? O tal cartão postal continha uma caligrafia corrida, bonitinha até. Todos os is são marcados por um coraçãozinho. Bonitinho. Dizia "Um Feliz Natal, com muito carinho e amor, da sua amiga mais querida. Anne.".
AHN?

Thiago levantou do sofá e ao ver-me na cozinha direcionou seu passo à mim.

Dona da maior cautela do planeta, ao fechar o zíper tive a proeza de quebrá-lo. Eu não sei o que acontecera, mas emperrou e não queria fechar de jeito algum! Numa medida de desespero, joguei a mochila debaixo da pia e estagnei com aquele cartão postal peculiar.

Lembra quando disse que não me importava com Anne? Mentira. Ele devia muitas explicações sobre esta carta!

Sorridente, chegou a dizer:

–Como vai a comida?

–O que é isso?!?! -cortei.

–Ahn?

–Isso! - levei o cartão postal direto a seus olhos. -Desde quando você conversa com Anne?

–Ah. - disse ele, na maior calmaria do mundo. - Isso.

E não disse nada até eu tapear seu ombro, a procura de explicações.

–Hmmm... -ele sentou-se, arrancou uma banana de seu cacho e dançou seus dedos pela casca. -Eu não sei como você vai interpretar isso, mas eu vou dizer, ok?

–Ok.

–Primeiro, abaixe esta faca.

Joguei a faca na pia.

–Hmm... Então... Como a escola acabou, e você bem disse que não se importava com eles, você precisa levar tudo em consideração. Antes de tudo, sabe que eu sempre fui seu amigo, né?

–É. - fuzilei-o com o olhar.

–Hm, certo. Mas antes, bem antes, eu frequentava um acampamento.

–E?

–E... -ele levantou e aproximou-se de mim. - que neste acampamento, havia outras crianças.

–E? - afastei-o com a palma da mão, quando tentou aproximar-se mais.

–E que uma dessas crianças é a dona do cartão postal. Anne.

Pisquei algumas muitas vezes.

–Ta. E?

–E? -disse confuso, como se o que houvesse dito fora extremamente esclarecedor.

–Ta. Vocês acamparam juntos. Uau. Grande coisa. Mas ela é nossa inimiga em comum! Não amiguinha que manda cartões postais cheios de corações!

–Hmmm... Na verdade...

–Ah não -disse, com as veias pulsantes da testa. -Não me diga que você é amiguinho que manda cartões postais...

–Quando eu te conheci ela teve ciúmes, sabia? Tanto que começou a te odiar.

Uma interjeição de surpresa invadiu minha voz.

–E também a me odiar. Enfim, ela às vezes me odeia. Às outras vezes, não.

E?

Uma expressão de interrogação surgiu nele.

–Não é só isso, é?

–O resto não é importante.

–Aposto que é.

–Mas não é.

–Então diga.

–Ok; ela gosta de mim.

Continuei esperando revelações.

–E talvez ela goste muito.

Esperei.

–Ok. Ela me beijou!

Uma longa e falha interjeição de espanto e surpresa despejaram da minha boca.

–Mas eu não fiz nada ela que se jogou e eu que fui santo de me afastar e ah Mari não faça essa cara de nojo nãaaaaaaaao não não volte aqui Mariana, não Mari volta para de fugir, Mari!

–Sai daqui!

–Mari - quando conseguiu me travar, disse: - Foi na escola. Vestiario, pra ser mais específico. Eu estava lá me trocando, ela apareceu, disse algumas coisas, eu disse outras, e veio. Daí eu me afastei e fui embora. Simples assim. Agora ela tenta se desculpar incessantemente por isso, mas está tudo bem porque não foi nada, certo?

Eu pensei. Pensei. E pensei.

Eu não estava brava. Chocada, mas não brava. Porque, afinal, isso aconteceu comigo.

A diferença foi que eu que me joguei.

E que eu omiti tal evento de Thiago.

Uma onda de vergonha e remorso preencheu-me em cheio.

–Certo. -disse.

–E outra coisa; já passou. Não é importante. Os outros entram e saem da nossa vida. Assim -estalou os dedos.- E nos deixam marcas. Mas colocamos nosso curativo e seguimos em frente. Porque isso aqui -ele apontou para nós dois. - que vai ficar. Isso não precisa de curativo. Porque somos sinceros um com o outro.

Thiago apoiava suas mãos em meus ombros, de olhar fixo no meu.

Destruiu. Ele destruiu-me.

Porque ele estava certo. Muito, muito, muito certo. E eu não queria que ele estivesse. Mas ele estava. Ele está. E isso não é justo.

Não é justo.

Abracei-o, porque é Natal e eu não queria ficar brava no Natal. Ele pediu mais uma série de desculpas por não ter dito antes, e eu disse para ele calar a boca e ir entreter meus pais enquanto eu preparava a mesa.

Ele me deu um beijo. Eu revirei os olhos. E ele foi para a sala.

Vesti meu avental, calçei minhas luvas e aventurei-me a terminar a ceia de Natal.

//////////////////////////////////

Eu liguei. Eu liguei para ele. Depois daquela noite eu liguei para ele. Eu queria dizer o que estava sentindo, sabe? Dizer que mesmo não sabendo o que aquilo era, e mesmo tendo um compromisso estreito e fiel com Thiago, eu estava disposta a tentar conosco. EU NÃO ESTAVA PENSANDO DIREITO,OK? Mas sim. Eu liguei para ele para dizer isso. Quando ele atendeu, porém, fui surpreendida com sua surpresa. Perguntei o porquê de tanto espanto, para então ele assumir que estava no aeroporto. Mais precisamente, na sala de embarque. Logo de cara eu matei a charada; ele iria embora, de verdade. Minha ficha não caiu ainda, admito, mas ele foi. Eu perguntei o porquê, e vomitei sufocos que diziam se aquele beijo, a viagem e todo o resto não serviram pra nada. Eu estava tão irada (não sei se com ele ou comigo, por ter cogitado a possibilidade de jogar tudo pro alto e ficar com ele), que tudo o que ele disse depois eu não fiz esforço para ouvir, e concluí a ligação dizendo que desejava uma boa vida em Washington para ele, e um "passar bem".

Cara, você não tem noção da merreca que fiquei depois. Eu passei uma tarde inteira deitada, fixa na cama, sem piscar uma vez sequer. Morguei a fim de esclarecer meus sentimentos. Entender o que se passava. E, sei lá, talvez entender o que foi tudo isso. Toda essa relação com o Matheus.

No final das contas, não consegui chegar a nenhuma conclusão. Mas decidi que era melhor esquecer de uma vez por todas o acontecimento, e apenas seguir com a vida.

Thiago teve a decência de contar. Mas eu não queria fazer o mesmo. Talvez porque eu já tenha superado e realmente não foi nada.

Ou, talvez, porque tenha significado algo.

////////////////////

–Finalmente! -anunciei alto para minha família: -A CEIA ESTÁ PRONTA!

Uma onda de comemoração deu-se em meio ao barulho da tormenta de fora. Todos abundaram-se na mesa de jantar e, felizes da vida, prepararam-se para comer o bendito do tender.

Nesta, um estrondo sabotou a noite e as luzes desligaram.

O tão prometido apagão.

–Hmmm... -Bruna, em meio ao escuro. -Eu acendo as velas.

/////////////////////////////

De velas devidamente acesas, todos abundaram-se na mesa de jantar e, felizes da vida, prepararam-se para comer o bendito do tender. Ríamos do acontecido e zuávamos uns com os outros. Thiago assumiu para minha família seu feito grandioso mais recente; que íria para Harvard e moraria bem perto de lá. Não dentro do campus, mas perto. Bruna esbanjou suas resoluções pro ano novo; uma dieta rígida, academia todo dia e boas notas. Eu apontei gentilmente que ano passado ela prometeu a mesma coisa pro universo. Ela retrucou que eu também fiz a mesma promessa e não se cumpriu; parar de ser chata. "Ha-ha-ha. Você é muito engraçada, não, Bruna?" "E você é uma desp..." Antes que minha irmã dissesse a palavra proibida, minha mãe nos deteu e disse para mantermos a postura, pelo menos no Natal. Meu pai perguntou se éramos sempre assim e em unissônio respondemos que sim. Ele riu. Mas eu não sei porquê riu, porque não era para ser engraçado. Era apenas a verdade.

É uma cena perfeita; meus pais juntos outra vez, minha irmãzinha feliz, meu melhor amigo realizado e sorridente ao meu lado, e o tender mais suculento que já provei na minha vida. Todos resplandecem alegria e satisfação. Todos comem com fervor e amor. Todos esbanjam umq plano pro ano novo. Todos, reunidos com seus entes queridos. Todos de sorrisos significativos.

Enquanto eu estava vazia. Não triste. Não raivosa. Não alegre. Apenas... vazia. Eu não tenho perspectiva de futuro. Mal sei a roupa que vestirei amanhã, quiça sei o que farei deste ano que se segue! Qual é o meu problema?

Seguimos conversando mais.

Quando Thiago bateu com seu garfo no copo de vidro algumas vezes, para chamar atenção:

–Pessoas. - levantou-se e disse: -Estou alegre em dizer que meu relógio marca 23:58. - Bruna sacou seu celular, e apontou para ele. Minha pulsação cardíaca aumentou rapidamente. E que daqui a exatos dois minutos haverá dois acontecimentos.Um; temos o nascimento de uma das figuras mais importantes da história. Uma pessoa peculiar, que conseguiu mudar o mundo. Pelo menos, o meu mundo. Esta pessoa maravilhosa que há uma década é minha melhor amiga, -meu coração começou a bater muito forte. Assim, muito forte. e desde o começo dos tempos é maravilhosa. Esta pessoa que pode até ser confusa por dentro, mas faz tudo parecer mais simples para mim. Daqui a dois minutos, este grande evento marcará a data de 17 anos. O outro, é o Natal. -Thiago veio até minha cadeira e se ajoelhou. Eu estava tremendo, quase chorando de tanta emoção. : -Mariana Sward dos Santos. Metade americana, metade brasileira. Mas inteira você. -puxou de seu bolso uma caixinha azul de veludo. -Não se preocupe, eu já falei com seus pais. -sussurou num piscar de olho direito.- Isso não é um pedido de casamento, -abriu a caixinha, dando vista a uma chave.- mas é um pedido importante do mesmo jeito. Mariana Sward, quer morar junto comigo?

Demolida em choro, levantei da cadeira, puxei a gola da camisa dele até levantá-lo e tasquei-lhe um beijo:

–Sim, sim, sim, sim, sim e sim!

Minha família aplaudiu frenéticamente. Minha irmã filmava tudo (e eu nem percebi!), minha mãe chorava sorridente e meu pai parabenizou-nos, também todo sorrisos.

Abracei Thiago sufocantemente e num suspiro, sussurrei em seu ouvido:

–Seu idiota, conseguiu me enganar direitinho, não?

Ele riu: -Ficou surpresa?

Dei-lhe outro beijo: -Um pouco só.- Olhei para meu relógio e percebi que: -Agora, oficialmente, tenho 17 anos!

Outra onda de comemorações se seguiu. Meus pais me abraçaram muito, muito, muito apertado.

–Parabéns, querida! -minha mãe. -Pra você também, Thiago.

Meu pai, acanhado, apertou a mão de Thiago. Para mim, mais envergonhado ainda, se possível, perguntou:

–Posso te abraçar?

Bobinho. Abracei-o fortemente e disse:

–Obrigada.

–Pelo quê? -aliviado, soltou.

–Por estar aqui.

Ao desvencilhar-me, sorri profanamente.

Meu pai assentou.

Bruna estragou nosso momento quando veio nos abraçar.

–Ahhh, vocês dois. -apertou-nos a bochecha. -Mas vou te avisando, Thiago: ela ronca muito, demora horas para sair do banheiro, tem um mau hálito triste de manhã e é uma das pessoas mais desorganizadas dessa galáxia. Eu te desejo boa sorte!

Thiago gargalhou, enquanto eu a fuzilei com o olhar.

Bruna sabiamente resolveu nos deixar sozinhos.

–E então? - Thiago, ao abraçar minha cintura novamente. - Uau, né?

–Uau -respondi de volta, dançando meus dedos por sua nuca. -Uau. Você consegue imaginar como serão esses próximos cinco anos?

Num suspiro de sorriso largo, desatou a falar:

–Não. Mas, sei lá, pra quê imaginar? A gente vai viver, e vai tentar fazer com que tudo dê certo. É a única coisa que eu imagino.

Franzi os ombros e os deixei cair novamente: -Pois é.

–Mas e você?

–Eu o quê?

–Como imagina esses cinco anos?

Após muitas trocas gasosas, e uns muitos segundos, concluí sozinha que:

–Sei lá.


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