Commentarius Angeli - Um Testemunho escrita por Francisco Lima


Capítulo 3
Capítulo 3 O Ninho da Ave dos Condenados




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Capítulo III – O Ninho da Ave dos Condenados


27 de Agosto de 2011, agora são 19h12min, há muito tempo eu não tinha tido um sábado tão agitado. Se não estou enganado existe uma antiga lenda do folclore britânico, que se refere a um cachorro negro com olhos brilhantes como fogo, que anda por estradas e cemitérios trazendo medo e morte. Agora se minha memória não me falha, a lenda parece melhor difundida na cidade de Yorkshire, onde se acredita que a pessoa que o avista morre pouco tempo depois, mesmo que o tenha visto de longe. Já aqui no Brasil, o uivo dos cães e por vezes associado a presságios de morte.

Não sei exatamente qual aparência teria este cachorro fantasmagórico britânico, com que raça ele se parece, até porque não sou muito bom para reconhecer raças de animais, mas o pastor belga que vi esta noite enquanto andava com Thais me lembrou desta lenda. Eu pesquisei na internet hoje à tarde, os cães possuem uma capa de células refletoras de luz nos olhos chamada “tapetum lucidum” que reflete a luz que entra nos olhos melhorando a visão do animal a noite, assim como os gatos. Mesmo assim aquele enorme pastor belga, com olhos brilhantes, sentado no fim da rua, não teria como eu telo visto e não ter ficado no mínimo apreensivo.

Já estou me acostumando com este novo habito de escrever como foi o meu dia, bom, na verdade, vou escrever sobre esta madrugada, sobre o meu dia, basta escrever que dormi boa parte dele já que passei a noite anterior fora. Meus pais e os pais de Allan acham que passamos a noite na balada. Felizmente para nós eles gostam dessa nossa interação social, o que é ótimo, pois no momento atual, não acho que precisamos de mais algum empecilho.

No instante em que vi Thais imaginei que iria pular pela janela e sair escondido de casa, porem minha mãe entrou no meu quarto e perguntou se eu já ia sair, pois a minha amiga estava me esperando e ela sabia que Allan nos encontraria no caminho. Admito que achei isto estranho, afinal eu não havia comentado nada com ela ou com o meu pai de que iria sair com amigos. Bem mas considerando os últimos acontecimentos, isto esta longe de ser o mais estranho a se comentar. – Uma respiração funda enquanto se espreguiçava aconteceu involuntariamente neste momento, terminando com um bocejo.

- Oi Thais, tudo bom? – Perguntei a ela com sono – Seus pais sabem que esta aqui? Minha casa fica um pouco longe do centro de São Paulo.

- Meus pais são tão flexíveis quanto os seus, e eu não moro em Sampa, sou de Mogi das Cruzes, moro a poucos minutos de ônibus das Universidades. – Ela me respondeu empurrando os óculos para traz com o indicador direito deslizando sobre o nariz.

- Você é de Mogi? E por que fomos nos encontrar tão longe? Eu poderia ter ido com Allan até Mogi, ou mesmo Suzano, seria bem mais perto pra todos nós.

- Porque o Mosteiro é um lugar muito mais apropriado, é um local sagrado e de grande importância, até porque a distância não é nenhum problema. – Sim, eu me lembrava do que Thais havia feito naquela tarde, eu até tinha acabado de escrever sobre isso, e sequer pude dormir o sono dos justos, ou ao menos dos que tem sono. A questão para mim estava simplesmente associada a uma lógica, podíamos ter nos encontrado em um lugar mais perto, mas infelizmente, eu acho que a Thais não é bem o tipo de garota que gosta de fazer as coisas do modo mais simples, bom, na verdade acho que nunca conheci uma garota que gostasse de fazer isso.

Estávamos caminhando pela calçada, então ela se virou pra mim e disse:

- Feche os olhos, acho que isso vai ajudar você a se manter calmo, nosso destino é um pouco longe daqui e eu já deixei o Allan por lá.

Acho que algumas pessoas devem achar que isso seria legal, eu não me assustaria se fosse comigo, eu tomaria iniciativa em momentos como este, mas nenhuma destas pessoas realmente piscou os olhos e quando os abriu estava em um lugar completamente diferente. Por mais que você tente se acalmar, não tem como achar isso normal, não tem como isso não causar um choque no seu cérebro. Por mais que eu soubesse o que ia acontecer, e tentasse me acalmar isso não funcionaria.

Fechei os olhos, respirei fundo como se fosse mergulhar em uma piscina e tentei dizer pra mim mesmo, não há surpresa desta vez, você sabe o que vai acontecer. Eu sabia, e isso não significou nada, ainda estava com medo, então senti a mão da garota em meu ombro esquerdo e a ouvi dizer:

-Pode abrir os olhos agora Micael.

E então eu os abri, e respirei fundo mais uma vez dando alguns passos para trás – Wagner inconscientemente tomou um folego leve ao se lembrar do momento antes de voltar a escrever.

- Mas estamos no mesmo lugar. – Disse a ela com um ar de surpresa, e sim diário, estar no mesmo lugar me surpreendeu.

- Você esta muito tenso, se eu te levasse neste instante você teria se assustado novamente – Ela me falou e então passou os dedos da mão direita por entre o cabelo que lhe cobria o rosto, olhou para os lados e então me encarou.

- Se acalme garoto! Você já fez isso antes, desta vez iremos de verdade.

Fechei meus olhos novamente e quando os abri, estávamos onde tudo começou, em Jabaquara, não sei ao certo a rua, mas estávamos lá, então ela me disse:

- Vamos, por aqui! O Allan esta nos esperando.

- Porque não nos trouxe para o exato lugar onde ele estava? Eu perguntei.

- Eu não teria como saber se seriamos vistos ou não. - Ela me olhou nos olhos – Eu sei que não parece, mas eu prefiro ser discreta.

Novamente estávamos caminhando em uma calçada, mas é claro, em um lugar completamente diferente, aquilo era algo que de certa forma me atormentava, mas a presença da garota conseguia me acalmar.

- Ei Thais, você é mesmo... Gabriel?

-Eu sei que é difícil de acreditar não é? Mas como teríamos chegado até aqui? Sim, eu sou Gabriel. – Com calma no olhar ela se virou para mim – Eu sei, não é todo dia que você se depara com uma coisa como esta não é?

-Não, não mesmo, bem, mas, por mais estranho que isso tudo seja, eu esperava que o Arcanjo Gabriel fosse um homem.

-Eu entendo – Ela olhou para o chão e depois se voltou para mim novamente – Até poderia ser na forma de um homem, eu simplesmente preferi nascer como uma mulher, e depois foram os humanos que decidiram que o nome Gabriel era um nome masculino, eu possuo o nome que me agrada, é isso que importa para nós, não o gênero.

- E você me chama de Mic...

- Porque você é um de nós! – Ela me respondeu antes mesmo que eu concluísse a minha pergunta.

Foi então que passando por uma esquina eu o vi no fim de uma rua, um cão negro, com pelos longos, uma juba vistosa, e olhos que brilhavam em uma expressão em parte ameaçadora, e com um tom hipnotizador. Uma leve brisa que balançou os seus pelos o fez parecer ainda mais sombrio, e neste momento me lembrei da lenda do cachorro negro do folclore britânico. Provavelmente fosse apenas a minha imaginação, mas olhando para aquele cachorro, eu senti um calafrio, algo me dizia que aquele animal estava acostumado com a presença da morte.

-O que foi? Perguntou – me Thais.

- O cachorro! – eu lhe disse apontando para a direção do cão com o polegar, mas quando voltei o olhar novamente para onde ele estava não o vi mais, nem um sinal sequer do animal, apenas a rua, e o vazio, o silêncio.

-Não há razão para se preocupar com essas coisas, vamos nos apressar, Allan esta nos esperando e eu já o deixei sozinho tempo demais! – Ela me puxou pelo braço e aceleramos o passo.

Allan estava sentado em um ponto de ônibus com sua bengala dobrada na mão direita. Ele parecia estar bem atento.

Desculpe a demora Lucas, ela ainda esta lá? Thais perguntou.

- Se meus sentidos não estiverem me enganando, ainda a ouço e ela parece estar onde estava quando a vimos.  –Allan respondeu.

-Mas ninguém apareceu? –Thais perguntou.

- Não, não que eu tenha percebido! – Allan respondeu.

- Do que vocês estão falando? –Eu perguntei.

- Aquela criatura, a ave gigante que você viu, é um monstro das sombras com força o bastante para causar desastres derrubando aviões, mas aqueles seres são conjurados e enquanto não impedirmos aquele que os invoca, eles continuaram aparecendo – Allan então se levantou e afirmou com convicção – Ela não vai nos ver!

- Feche os olhos Micael! Thais me ordenou e no mesmo instante, nos transportou para o auto de um edifício. Um prédio cinza, com dois prédios maiores ao lado, um deles um prédio bege com vidros reflexivos que de dia, acredito que reflitam a cor azul. O outro, um edifico branco com curvas atípicas, não sei como descreve-las, mas certamente deve possuir uma arquitetura singular. – Assim que abri os olhos a mão de Thais deslizou do meu ombro direto para o meu peito, então ela olhou para mim e disse murmurando:

- Mantenha seu coração neste ritmo, e seus pulmões funcionando rapaz!

Estávamos atrás de uma estrutura que servia como abrigo para caixas d’água. Olhando pelo canto da parede, podia ver uma garota loira agachada com a mão dentro de um grande circulo riscado no chão com treze velas vermelhas acesas contornando o circulo. De onde eu estava não podia ver, mas o cheiro de ervas com um toque suave de patchouli indicava que algo estava sendo queimado, e olhando de onde eu estava, sem conseguir ver por causa do corpo da garota, deduzi que era algo no meio do circulo.

- O ninho da ave dos condenados. – Murmurou Thais olhando para mim como se pudesse prever as perguntas que ainda se formavam na minha mente.

- Parece que chegamos bem na hora. – Falou Allan também em voz baixa.

- Me esqueci de lhe entregar isso, ponha no pulso rápido! – Thais me ordenou entregando-me um relógio de pulso.  Ele tinha uma pulseira de metal reflexiva, como aço cirúrgico inoxidável, destes que se fazem bisturis e anéis de compromisso, seus números estavam representados em algarismos romanos, sustentados sobre uma borda preta que permitia se enxergar o esqueleto do relógio no centro, tal como este, outros dois pequenos círculos que também permitiam a visualização do esqueleto do relógio no centro, estavam dispostos do lado direito, um mostrando os dias da semana e outro as fazes da lua, os ponteiros pretos com contorno prateado destacavam-se com elegância.

-Por quê? O que é isso? – Sim diário, eu sabia que era um relógio, mas a importância que aquilo parecia ter para Thais indicava que aquilo era mesmo importante.

- É sua arma! – Allan murmurou.

Se tudo aquilo fosse um filme e eu estivesse assistindo, acho que neste instante encarnando o personagem eu responderia: “Eu não acho que informar a hora errada para aquela pessoa vai ajudar”, mas confesso que naquele momento, não tive esta criatividade.

De súbito, o vento ganhou força, o silencio que se fazia presente deu lugar para seus sons que ganhavam mais força a cada segundo. As chamas das velas tremulas balançavam com velocidade ate se apagarem, e no instante que isto aconteceu a fumaça carregando a fuligem das velas, pareceu-se misturar com uma outra fumaça até então invisível sobre o circulo de magia e uma nuvem negra começou a se formar com um odor desagradável.

A fumaça então tomou a forma de uma enorme ave negra, não sei o tamanho ao certo, mas parecia ter uma abertura de asas em torno de quatorze ou quinze metros, surgindo então diante da garota loira, com um pescoço longo e uma cabeça que lembrava muito a de uma tartaruga, o monstro parecia ter suas penas encharcadas em óleo que pingava de suas asas, garras enormes, uma calda com penas longas e quando abriu a boca lançando um som estridente, pude sentir um cheiro que reconheci de imediato, aquele era um acido mineral muito utilizado nas aulas de laboratório da faculdade, o cheiro forte e desagradável denunciava a substância, o acido sulfúrico pingava da boca da fera.

- Escutem os dois, eu quero que peguem a garota viva! – Ordenou Thais em voz baixa.

- Não é bem com ela que estou preocupado! – Respondeu Allan.

Eu pude ver a fera, pude prestar atenção em como ela era e no que eles conversavam a minha volta, mas não podia me mover, não podia respirar, sequer desviar o olhar ou pedir ajuda, e então senti o abraço de Thais pelas minhas costas com sua mão sobre meu peito, então ela sussurrou para mim:

- Eu lhe disse para manter a calma, e para manter seu coração e seus pulmões funcionando. – As mãos de Wagner começaram a suar enquanto escrevia – Como antes, ela me acalmou de uma forma que não sei explicar, foi então que recuperei os movimentos do meu corpo.

Com um gesto da garota loira, a ave voo e foi então que com o som forte da batida de asas do monstro se distanciando, que Allan deixou o esconderijo e se dirigiu ao encontro da pessoa que conjurou aquele monstro.

- Fique onde esta, nem pense em fugir! – Ele disse para a garota enquanto se dirigia a ela guiando-se com sua bengala articulada.

- Fugir? Eu estava esperando os ratos saírem da toca! – Ela respondeu com ar arrogante. Então com um assobio a garota fez com que a ave horripilante voltasse em alta velocidade, como que se caísse em queda livre sobre Allan. Nesse instante não consegui gritar, não consegui avisa-lo, mas também não fiquei paralisado, corri desesperadamente em sua direção achando que meu amigo tinha morrido, eu tinha que busca-lo, mesmo morto, não poderia deixa-lo ali, não poderia deixar que aquele monstro o devorasse, e nada disso aconteceu, em instantes, eu havia imaginado tudo aquilo, e o que estava diante de mim, era a fera, lurando, mordendo a lamina de uma lança prateada que Allan segurava no lugar de sua bengala.

O pescoço do monstro parecia ter uma força brutal, contorcia-se enquanto lutava contra a resistência de Allan que demonstrava dificuldade para suportar o peso investido pela fera sobre ele, então a ave o ergueu pendurado por sua lança e o atirou a metros de distância, a ave então investiu em sua direção. Allan estava caído e sua lança estava a pouco mais de um metro do alcance de sua mão, e no instante em que a ave estava para lhe desferir o ataque que provavelmente seria mortal, ela não o fez, deixou a postura de ameaçadora abandonando a posição de predador e permaneceu imóvel.

Ao fundo uma melodia doce e serena tomava o papel de trilha sonora da ocasião. O monstro, até então uma ameaça parecia agora indefeso ao som daquela musica, inativo, e totalmente vulnerável. Era ela, Thais estava atrás de mim, sentada sobre uma caixa de madeira com as pernas cruzadas, uma expressão tranquila, com um terço entrelaçado no braço esquerdo, tocando com sua flauta transversal que reluzia refletindo o brilho das lâmpadas, uma composição de Mozart, “Agnus Dei” o Cordeiro de Deus. Wolfgang Amadeus Mozart, ele dizia que a musica é capaz de acalmar as feras.

O monstro que até então para nos era uma fera violenta e perigosa, agora diante de Thais não era mais do que um rato indefeso diante do “Flautista de Hamelin” do conto folclórico alemão escrito pelos Irmãos Grimm. Neste instante eu percebi, o monstro não era um rato indefeso diante de Thais e sua musica, mas sim diante de Gabriel, o arcanjo.

Allan tateou o chão em varias direções e então eu gritei para ele:

- Esta na sua frente!

Ele então a encontrou levantou-se e se pôs em posição de combate, respirou fundo duas ou três vezes e então gritou:

- Ei Micael, vamos a caçada começou!


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