Mil Tsurus escrita por Seto Scorpyos


Capítulo 2
Capítulo 2




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/218966/chapter/2

Abri os olhos meio zonzo e me peguei totalmente preso à cama. Arregalei os olhos e olhei em volta, Kim estava jogado no chão todo amarrado e Jong, preso à parede.

– Kim! Kim! – eu gritei, tentando faze-lo acordar – Jong!

A minha voz chamou a atenção e uma mulher pequena e delicada entrou no lugar. Ela estava usando preto justo e eu pensei que parecia uma dessas garotas dos mangás.

– Ahn! Vejo que acordou... – ela disse, se aproximando da cama.

A voz dela era melosa demais, baixa e fininha, mas não pareceu normal. Pareceu que ela estava forçando para ser assim.

– Quem é você? – eu perguntei, sem querer realmente saber.

– Tori.

O nome acendeu uma luz no cérebro e eu a encarei, agora com raiva e desconfiança. A mulher gargalhou e me olhou inteiro, me fazendo estremecer de leve. O olhar dela não foi normal.

– Então foi você que tomou meu lugar na equipe e na cama do Rindaman, não é?

Eu arregalei os olhos, espantado.

– Como? Acha que estou transando com Rindaman? – eu estava chocado.

Não que o homem não tivesse presença, mas nunca sequer pensei em um relacionamento de qualquer espécie.

Qual é?!?!

Depois de tudo, arrumar um namorado?

– Está enganada. Eles não são amantes.

Ela olhou para trás e segui seu olhar. Jong estava acordado, olhando para ela com os olhos faiscantes. Da cama no nível do chão, eu notei que Kim também estava acordado.

– Ele é hétero, se não se lembra. – Kim acrescentou, sarcástico.

Eu pensei que não era uma boa irritar a mulher. Nem o inferno segura a ira de uma mulher desprezada, não é o que dizem? E apesar da postura displicente dela, eu podia ver o ombro tenso e a veia pulsando no pescoço.

Ela é perigosa, muito perigosa e estava irritada.

Com um sorriso gelado, ela nos olhou longamente e então, se virou para mim.

– Antes de morrer, vai desejar nunca ter saído da Casa Amarela.


Eu não tive tempo de processar o que ela disse antes da sessão de tortura começar. Vi Kim ser afogado em água gelada e Jong levar choques pelo corpo e eu mesmo passei pelas mesmas coisas. Fomos espancados, pendurados e enforcados... O braço do Jong foi quebrado com um bastão de beisebol e os pés de Kim, esmagados. Eu acabei com o tornozelo quebrado, sem as unhas de um pé, que arrancaram com um alicate, com os dedos da mão direita quebrados e surdo, quando um deles achou divertido atirar a centímetros do meu ouvido.

Kim e eu fomos forçados. Na frente do Jong... por diversas vezes, de diversos jeitos, por diversos homens. Não sei quanto tempo passou naquela espiral de violência e dor, mas no fim, não tínhamos mais voz para gritar. Usaram seus corpos, mãos e armas para nos violarem de todo o jeito possível e pelos olhos sem brilho de Kim, eu sabia que a alma dele estava partida.

A minha não... eu já sobrevivia com ela quebrada... mas doeu vê-lo morrer ainda que estivesse vivo fisicamente... ou meio vivo.

Jong foi forçado a assistir e participar. Fizeram-no penetrar Kim usando o cano de uma escopeta e ameaçaram apertar o gatilho, fazendo-o gritar. Em mim, o obrigaram usar as mãos.

Ele gritava de desespero e angústia, mais do que quando era torturado.

No fim, só nos olhava, perdido e tão quebrado quanto a gente.


Quando abri os olhos, estava jogando no canto, imundo e sangrando. Não era novidade e eu suspirei, sentindo as costelas estalarem. Os homens estavam de costas, rindo de alguma coisa que eu não queria saber o que era. Uma descarga de adrenalina percorreu meu corpo quando ouvi “matá-los”.

Ergui e cabeça e varri o lugar com o olhar. Kim estava jogado no canto, solto como eu, mas parecendo desmaiado. Jong estava pendurado e meio acordado. Um dos homens apontou uma arma para ele e riu quando a colocou dentro do ouvido dele.

Eu não pensei em nada.

Empurrei o que estava mais perto e quando ele caiu, peguei a arma e puxei o gatilho. Ainda vi o homem que ameaçava Jong olhar para mim surpreso, mas não pensei. Não vi um ser humano e simplesmente puxei o gatilho. Quando eles caíram, eu estava tremendo, mas mesmo assim me ergui, cambaleando. Os ferimentos não ajudavam muito, mas o torpor da adrenalina me manteve em pé. Atirei nas correntes e o coreano caiu pesadamente no chão. Eu tentei ergue-lo, mas ele resistiu.

– Vá embora... – mandou, sem forças – Me deixe aqui e vá embora!

– Se você pular, eu pulo junto. – rebati, ouvindo minha própria voz falhar horrivelmente e vir de muito longe.

Um zumbido me impediu de ouvir direito, mas achei que fui claro quando ele me olhou e então, tentou se erguer. Pegou uma das armas no chão e segurou usando a mão que ainda funcionava, enquanto eu fui até Kim. Ele estava meio mole, desacordado. Jong se ajoelhou perto e colocou os dedos no pescoço dele.

– Está morto.

Eu o ouvi de longe, mas não podia ser. Olhei para ele e de volta para o jovem torturado à minha frente. O rosto dele estava amassado, inchado e cheio de sangue.

– Vamos, Uruha...

Senti-me puxado, mas eu não podia. Não podia deixar Kim ali, daquele jeito. Olhei em volta sentindo o desespero aumentar e Jong me sacudiu. Ele mexeu a boca, mas não entendi nada e devo ter feito uma cara de idiota, porque ele começou a gritar. Aí sim ouvi.

– Daqui a pouco vai estar cheio de caras! Temos que ir! AGORA!

Eu sabia que ele estava certo, sabia que era o aceitável, mas ainda assim...

Me ergui e puxei Kim para meus braços, jogando-o sobre o ombro. Nós dois oscilamos perigosamente e meu corpo inteiro estremeceu de dor, mas eu ignorei. Não ia deixar ninguém para trás. Jong me olhou e então, passou na frente e saiu do quarto. Eu o segui apoiando-me na parede e arrastando a perna. O pé são estava sem as unhas e doeu de maneira lacinante, mas eu mordi o lábio e apertei o corpo no meu ombro.

Ele estava frio ao toque.

Eu os odeio.


Jong ficou sem balas e pegou mais armas no chão, usando o braço inteiro. Eu segurei Kim com a palma da mão, já que os dedos estavam quebrados e atirei com a outra, matando dois quando ele estava no inclinado. Depois ele olhou os homens e respirou fundo, segurando o lado do corpo. Quando finalmente saímos, eu olhei em volta e tentei me arrastar até um carro estacionado, mas não consegui. O corpo falhou e o peso de Kim nos jogou no chão, mas eu não desisti. Jong estava atirando nos homens de fora, que se esconderam atrás de algumas caixas e eu aproveitei para me arrastar pelo chão e puxar Kim.

Escalar o carro foi complicado, mas eu consegui e abri a porta, subindo de um jeito meio estranho, mas que funcionou. De cima do banco do motorista eu tentei erguê-lo, mas as forças faltaram e perna estalou, me fazendo gritar de dor. O sangue e o suor do meu corpo tornaram minha mão boa escorregadia e eu não conseguia usar a outra por causa dos dedos quebrados.

Não podia dizer se estava gritando de medo, dor ou desespero e então, Jong simplesmente se materializou na porta e empurrou Kim para cima de mim, entrando no carro.


Na estrada, ele limpou o sangue do rosto e olhou para mim, espremido entre Kim e o banco. Ele disse alguma coisa, mas eu não ouvi. Depois de alguns minutos, Jong me olhou de novo e eu o olhei de volta, envolto em um vácuo de silêncio e dor. Eu não sabia direito onde estávamos nem o que estávamos fazendo e era impossível eu dizer onde estava doendo.

Eu o vi gritar e gesticular, batendo a mão boa no volante, mas não reagi. Olhei para fora e para as luzes que passavam velozes pela janela do carro. Senti frio.

Arregalei os olhos quando senti Jong me sacudir pelo ombro... ou seria Kim? Eu o vi gritar, mas som nenhum saiu da boca dele e eu o olhei, estranhando o tom brilhante da pele.

Espantado, eu ri. Vi que ele arregalou os olhos e me soltou, recuando. E eu ri.

Ele segurou meu rosto e eu o encarei. Ouvi de longe algo como “Fica comigo”, mas não pude responder. Senti um peso no peito e olhei para baixo, para as costas de alguém cheia de marcas e cortes... Quando ergui os olhos de novo, o rosto dele estava cheio de água...

“Porque o rosto dele está molhado?” pensei, olhando para ele.

“Lágrimas” a palavra explodiu na minha cabeça e eu quis dizer a ele que estava tudo bem, que íamos conseguir e que eu não ia a lugar algum... eu quis dizer, mas não disse.

Eu não pude dizer nada.


***


Acordei encarando o teto de novo, com uma sensação de que já tinha acontecido antes. Olhei a porta e pareceu conhecida. Por um momento, eu não soube onde estava e então, me lembrei. Cuidadosamente, virei a cabeça e vi meu braço e mão engessados. Suspirei e senti tudo se mexer por dentro, mas não doeu tanto quanto eu achei que doeria.

Isso era bom.

Inclinei um pouco a cabeça e vi meu pé enfaixado e a outra perna, engessada. Eu franzi a testa quando notei que meu ouvido estava estranho, parecendo estar cheio de água.

Não. Não era bom, era pior que antes.

Procurei não entrar em pânico e olhei de novo para a porta. Uma enfermeira entrou e me encarou, derrubando a bandeja. Antes que eu pudesse tentar dizer alguma coisa, ela se virou e saiu correndo.

Eu fiquei olhando, e sério que não entendi. Tudo bem que eu devia estar parecendo um monstro inchado e desgrenhado, mas sair correndo era demais!

Minha auto estima nunca ia se recuperar disso!

Eu ri dolorosamente, tossindo ao mesmo tempo em que ria.


Olhei para a porta e Rindaman estava lá, austero como sempre. Eu o encarei e meu sorriso morreu.

– Disse alguma coisa? – eu perguntei, confuso.

Ele respirou fundo e deu a volta na cama.

– Eu disse: bom ver que alguém está se divertindo.

Ergui a mão para tocar minha cabeça, mas ele não deixou que eu continuasse.

– Está surdo do outro ouvido.

Eu o encarei e o observei puxar uma cadeira e se sentar, e como antes, tirou a máscara.

– Estamos providenciando um aparelho, já está quase pronto. – ele explicou, tirando o chapéu também.

Tive que prestar toda a atenção do mundo para ouvi-lo e isso me deixou tenso. Digeri a notícia e então, respirei fundo.

– Jong? – perguntei, mal ouvindo minha própria voz rouca.

– No quarto ao lado, em estado crítico. Na fuga, levou três tiros e por causa das torturas, sofreu muitas lesões internas.

– Talvez eu não devesse ter... – murmurei.

– Não pense nisso! Se não tivesse aproveitado a chance e reagido, teriam morrido de forma horrível e em vão. Ele tem uma chance boa, é forte.

Olhei para ele e vi que acreditava nisso realmente. Ele não hesitou nem desviou os olhos e eu quis acreditar também.

– Obrigado por trazer Kim.

Agora doeu. E muito. Olhei o lençol branco e brinquei com as pontas, franzindo a testa com o esforço de não chorar. Eu não chorava e não queria chorar.

– Tem que cuidar melhor das suas mulheres. Eu não tenho nada a ver com isso e Kim morreu por nada... Jong está mal e eu não muito diferente... – eu tinha que descarregar a raiva e a frustração em cima de alguém e ele pareceu uma boa opção.

Se fosse olhar, Rindaman era realmente o culpado de tudo.

– Não posso dizer que não tenho culpa, e lamento o que aconteceu.

A voz dele soou fria e eu dei de ombros, desdenhando do sentimento.

– Não serve para nada, agora. – eu rebati, sabendo que estava sendo cruel – Matou ela?

– Ainda não.

Eu ri, sarcástico e então o encarei.

– Kim morreu de um jeito horrível, com a alma despedaçada... Jong provavelmente nunca mais vai dormir em paz e eu... bem, posso estar acostumado com isso mas é sempre chocante e doloroso... me tornei um assassino... estou surdo e sabe Deus o que mais... É... o placar está dez a zero para ela.

Se olhar matasse, eu estaria duro e seco no chão, mas não mata e eu não desviei o olhar. Estava cansado e muito estressado. Muito mesmo.

Rindaman se ergueu e respirou fundo, recolocando a máscara e o chapéu. Eu o observei em silêncio, sem vontade ou motivo para pedir desculpas. Depois que ele saiu, eu fechei os olhos e tentei dormir, mas não consegui.

Eu chorei de novo. Chorei por Kim, por Jong e por mim. Nenhum de nós merecia o que aconteceu.


Tachibana, Kyoko e Gin me visitaram e depois de uma semana, tirei as ataduras do pé. Os dedos sem unha estavam estranhos, mas pelo menos a infecção foi controlada. Na segunda semana, me deixaram andar um pouco pelo corredor, usando uma bota especial no gesso. O braço ainda estava engessado, mas dava para agüentar.

Eu fui até o outro quarto e Jong estava todo entubado, magro e pálido. Eu sabia que não estava diferente, mas pelo menos estava acordado para tentar.

Apesar da raiva de Rindaman, eu não consegui me lembrar do ataque e nem de como fomos levados. Estávamos na Gruta e depois... nada. Um branco total na mente.

Ele contou que nós desaparecemos há quase dois meses e durante esse tempo, receberam pistas falsas e procuraram em lugares distantes, mas estávamos perto do porto de Hakata. Depois que eu apaguei, Jong conseguiu dirigir até uma rua mais movimentada e fomos encontrados pela polícia. Antes de desmaiar, Jong conseguiu dizer o nome e o telefone de Tachibana. Rindaman acionou seus contatos e fomos levados direto para o hospital. Estávamos aqui há pelo menos um mês.

E eu só acordei há duas semanas.

Perdemos a cremação de Kim e todas as cerimônias fúnebres, mas eu não tinha certeza de querer estar lá para ver...


Eu fui ver Jong e contava para ele os progressos que estava fazendo, contava histórias e piadas sem graça. Outras vezes eu cantava para ele... devo admitir que depois de colocar o aparelho, ficou bem melhor. Eu podia ouvir minha própria voz.

Costumava fazer isso várias vezes por dia e no meio da madrugada também. Os médicos e enfermeiras não estranhavam mais me ver nos corredores às três horas, indo ou vindo. Foi essa minha mania que nos salvou de novo.


Meu coração quase parou quando parei na porta do quarto e a vi pelo vidro. Pelo jeito, Tori não ia desistir enquanto não nos matasse. Eu olhei em volta, desesperado por algo que pudesse usar.

Não encontrei nada, mas não ia ficar parado. Entrei no quarto quando ela se preparava para esfaquear Jong e coloquei o gesso na frente. Ela se virou, surpresa, e eu a soquei.

Tudo bem, me processem! Mas aquilo não era uma mulher e sim um demônio disfarçado.

Ela não perdeu tempo e me deu uma rasteira, me fazendo cair com tudo, mas não me abalei. Eu não podia me dar ao luxo de sequer ficar tonto e quando ela ergueu o corpo para me atingir, eu a chutei na cabeça usando a perna boa. Meu pé doeu horrores, mas ignorei, me ajoelhei e peguei a faca enorme.

Me apoiei na cama e apertei o botão da enfermaria, sem tirar os olhos da mulher no chão. Como eu simplesmente grudei o dedo no botão, um monte de gente apareceu, apavorado. Expliquei em poucas palavras e ela foi levada, ainda desmaiada. Olhei o gesso e vi o furo da faca, engolindo seco quando avaliei a chance de atravessar.

Suspirei e olhei quando senti uma mão em meu braço. Jong estava acordado e me olhando, confuso. Eu sorri de leve e me deitei ao lado dele e só então, comecei a tremer.


****


Encarei a mulher com a sobrancelha franzida. Ela era realmente bonita e eu não entendi o porque da paranóia. Na verdade, eu nem queria estar ali e sim com Jong, sendo desentubado e liberado das máquinas e outras tranqueiras que estavam nele. Muito mais interessante, do meu ponto de vista.

Ela me olhou e riu, maldosa.

– Transei com seu gato, sabia... Shiroyama Yuu... um gostoso muito bom de cama! – eu senti um peso no peito, mas acho que não deixei transparecer, porque ela fez uma careta estranha – Eu fiz com que soubesse que conseguiu o dinheiro para pagar as dívidas na prostituição. Eu filmei você na Casa Amarela e mostrei a ele e à seus amigos... sua família... – ela riu e o lado inchado e roxo fez o rosto dela se contorcer ainda mais – Eles acham que você voltou para as ruas por vontade própria, porque é um vadio mesmo...

Tachibana avançou para ela, mas eu o segurei. Ela ergueu a sobrancelha, surpresa, e Gin me encarou, indignado.

– Essa vagabunda! E eu ainda achei que Rindaman estava sendo injusto! – reclamou, levantando-se.

Eu a encarei e sorri de leve, sacudindo a cabeça. Me virei e ia saindo, quando ela começou a gritar e me xingar, mas de repente parou. Eu ergui a cabeça e dei de cara com Rindaman olhando para trás de mim e engoli seco com o brilho gelado do olhar dele.

– Onde vai, Uruha? – perguntou, olhando dela para mim.

– Vou ver Jong e ajudar a puxar alguns esparadrapos... – respondi, dando a volta nele.

– Vai perder o melhor. – ele avisou e eu parei depois da porta, surpreso com a boneca à minha frente.

Menor, mais delicada e infinitamente mais bonita que Tori, uma moça de longos cabelos estava à minha frente. Ela me olhou e eu sorri e me inclinei.

– Desculpe. – pedi, recuando um passo.

– Takashima Kouyou?

– Sim. – eu a olhei, surpreso.

– Obrigado por trazer meu irmão. – ela disse, com voz firme apesar dos olhos ligeiramente desfocados.

Eu me endireitei, constrangido. – Não tem que me agradecer, ele faria o mesmo por mim.

– Porque o trouxe? – ela perguntou, inclinando levemente a cabeça.

– Nem passou pela minha cabeça deixá-lo lá. – respondi, sincero.

Ela sorriu e eu elevei uma sobrancelha. A moça era realmente linda, daquelas de revista e se fosse minha praia, eu investia. Dei passagem a ela e me recriminei por pensar assim da irmã de Kim, mas foi inevitável. Parei no meio do corredor quando ouvi Tori gritar, enlouquecida.

Não consegui entender nada e me virei, assustado. A moça de preto estava parada à porta e eu cheguei a voltar alguns passos, preocupado, quando ela me olhou e por Deus, o olhar dela! Eu gelei por dentro e recuei, assustado.

Tachibana me pegou pelo braço e eu nem vi quando ele saiu da sala.

– Vamos embora. – comandou, meio que me arrastando depois de tomar a bengala da minha mão.

Não discuti, mas por um segundo, tive pena de Tori.


****


Eu atendi o telefone ainda encarando a tela, distraído.

– Takashima – eu disse, notando onde estava o erro no meu programa de monitoramento.

– Eu restabeleci a verdade para seu ex namorado, amigos e família – a voz feminina baixa e delicada soou, sem cumprimento.

Sun Hee Kim.... ou Pássaro Negro.

Respirei fundo e me recostei na cadeira. Tentei pensar na enormidade do que ela estava me contando.

– Não precisava – eu respondi, depois de alguns minutos – E nem da recompensa.

– Sei que não, mas eu quis. – ela respondeu imediatamente e então, outra pausa – Quer saber o que eles disseram?

– Não. – minha resposta saiu segura, mas meu olhar caiu sobre a minha mão. Estava tremendo.

– Você é um homem estranho, Takashima Kouyou. – ela respondeu e eu sorri, sem vontade.

– Agradeço o dinheiro, mas não...

Ela me interrompeu com uma risada baixa.

– Não é só pelo resgate do meu irmão, mas por ter me dado a chance de revidar. Até a vista, Kou.

A moça desligou o aparelho e eu também, mas mesmo que quisesse, não conseguiria trabalhar. Pensamentos e lembranças encheram minha mente e eu descansei a cabeça entre as mãos. Mesmo com todo o sistema de computação que eu tinha e com todos os mecanismos de rastreamento e identificação, eu nunca procurei.

Nunca abri meu antigo endereço de e-mail, nunca fui para Tókio e nem mesmo fiz uma busca básica no google. Eu suprimi essa parte da minha vida, conscientemente. Primeiro, porque eu não tinha nada para mostrar e depois, eu não estava mais interessado. Ocupado, eu queria me afastar o máximo da vida antiga e construir uma nova e me concentrei nisso o máximo que pude.

Não nego que fiquei com medo, no início. Não procurei ninguém por medo, depois por mágoa e tristeza... acho que juntou tudo e eu não quis dar minha cara a tapa de novo. Ainda bem que não fiz essa besteira caso contrário, teria sido escorraçado de novo.

Agora, eu não conseguia ver o sentido que faria procurar por eles. Kai pode até estar arrependido e querer conversar... Reita também... mas quanto a Ruki e... Aoi... eu não sei. Eles costumavam julgar as pessoas com muita dureza, acho que por nunca terem passado nenhum tipo de privação. Os pais de Aoi eram ricos e Ruki também vinha de uma família importante. Dinheiro nunca foi problema para eles e por causa disso, não sabiam da metade dos perrengues que os pobres tinham que passar.

Para eles, circunstâncias atenuantes não existiam.


Se eu voltasse agora, dez anos depois, talvez meus pais me tratassem melhor quando soubessem do meu saldo bancário. Ainda mais depois do depósito de Sun Hee, mas não era isso o que eu queria. Eu queria ter tido uma família de verdade, que me amasse desde que nasci e não que me aceitasse depois de comprovar o saldo da minha conta. Eu vi famílias pobres dividirem o pão entre os filhos, e vi carinho das mães mesmo com a falta de tudo em casa.

Nós tínhamos dinheiro, mas eu nunca tive carinho, apoio ou qualquer coisa do tipo. Sempre fui isolado, tratado com frieza e até descaso. Minha mãe nunca me levou ao médico ou ao parque para brincar... e minhas irmãs fizeram da minha vida um inferno com mentiras e humilhações.

Eu não queria essa família de volta, nem mesmo para me desforrar.


Devo admitir que sinto falta de Reita e de Kai, meus melhores amigos. Eles sabiam o que eu fiz antes e nunca me julgaram, mas me entristece lembrar que não me ajudaram quando fui humilhado publicamente. Às vezes penso que não havia nada que eles pudessem fazer, mas eu não me convenço que eles não pudessem dizer uma frase ou duas em minha defesa. Ainda mais porque ela estava mentindo.

Pelo menos na parte de que eu pedi emprestado e não queria pagar. Não posso dizer nada quanto a eles reclamarem que eu ficava pedindo dinheiro... não sei se é verdade ou não.

Tudo parece tão pequeno, agora, tão sem importância... como uma briga de crianças... Ok, eu admito que as consequências foram graves, mas por causa da louca. Se não fosse ela, nada daquilo teria acontecido comigo.

Nas duas vezes.


Eu ri, incrédulo. Era mágoa demais para pouca coisa e então, abri minha caixa de mensagens. Primeiro limpei todos os spams e propagandas, depois fui no fim e verifiquei que existiam pelo menos vinte mensagens não lidas. Vinte mensagens em dez anos... minha vida social era um fracasso.

Fui até a última e comecei a ler, preparado para tudo. Primeiro Reita e depois Kai agradecendo o pagamento, mas ressaltando que não precisava. Kai usou cinco linhas para me pedir desculpas por não ter dito nada na hora, mas ganhou pontos comigo quando admitiu que ficou envergonhado.

Por nós dois.

Reita foi mais sucinto no agradecimento e também nas desculpas. Analisando bem, ele não pediu desculpas propriamente, apenas ressaltou que ela não tinha o direito de falar aquilo e que quem tinha maior obrigação era Aoi.

Nenhum dos dois admitiu que reclamou do dinheiro que me deu. As mensagens de Aoi foram típicas. Primeiro, me xingou e brigou com tudo o que tinha direito sobre eu ter voltado para a prostituição e reclamou que paguei a ele com dinheiro “sujo”. Nada de pedidos de desculpas ou explicações. Depois maneirou um pouco, mas se disse o mais decepcionado homem do mundo por eu ter voltado para “aquela vida” e magoado comigo. Ele ressaltou que a mãe e a prima tinham razão quando disseram que eu não servia para ele. Na última, quase um ano e meio depois, não havia palavras e sim, o convite do casamento dele com a prima.

Essa doeu.

Eu fiquei olhando o convite e pensei em qual dos dois mandou para mim a prova que ele me superou. Se ele ou a noiva... ou a mãe... não importava. Era doloroso ver que ele não se sentiu culpado pelo que deixou acontecer e simplesmente seguiu a vida. Ele se viu como uma vítima minha e não pensou sequer uma vez no que eu poderia estar sentindo.


Passei para a próxima mensagem e era de Reita de novo, me dando uma bronca por ter sumido mas deixando claro que se eu “escolhi” viver nas ruas, eu devia arcar com as consequências.

A penúltima era de Reita, que cobrou contato e queria saber mais sobre o meu “cativeiro”. Ele não se desculpou pelas coisas que disse antes.

A última me fez sorrir. Kai estava se derretendo de culpa e pedidos de perdão por não ter me procurado antes. Ele explicou que a polícia os procurou para contar que desbarataram uma quadrilha de tráfico de pessoas, e que eu fui encontrado no cativeiro. Contaram a eles uma história louca sobre drogas e maus tratos para explicar o vídeo e por fim disseram que eu estava num local protegido por ser testemunha e passando por tratamento psicológico, por isso a demora em contatar meus parentes. A imaginação de Sun Hee não pareceu ter limites para explicar meu sumiço por tanto tempo.


“Seus pais me ligaram quando a polícia os procurou. Eles queriam saber se você entrou em contato comigo... Por favor, me perdoe ter acreditado que você voltou para aquela vida... Várias vezes você nos disse o quanto detestou aquela época e que só fez por precisar de dinheiro. Eu lamento tanto...

Espero que você tenha se recuperado e que me procure quando puder. Eu estava comentando com Nao (meu namorado que você não conhece) que eu provavelmente não te reconheceria agora, tanto tempo depois, mas que eu esperava que você pudesse me perdoar.

Meu Deus, Uruha! A gente não procurou a polícia porque aquela mulher da quadrilha disse que você estava lá por livre e espontânea vontade! Que cruel!

Eu sinto muito.


Eu sorri, com saudade. Abri a caixa de respostas e comecei a escrever. Contei a ele que estava bem, mas que estava surdo de um ouvido e usando bengala (meu tornozelo não aguentou). Contei que trabalhava num café e que me dei bem como publicitário free lancer. Anexei algumas fotos e desenhos para ele ver, mas não coloquei endereço nem telefone de contato.

Enviei a mensagem e fechei a caixa. Sei que deixei dois de fora, mas eu ainda não estava pronto.



A resposta de Kai, aliviada e cheia de detalhes, veio logo. Fiquei sabendo que ele abriu um restaurante junto com o namorado quase marido e que estavam bem, que eles terminaram a faculdade e que Reita também era publicitário, mas trabalhava em um escritório. Ruki estava trabalhando como estilista e Aoi no escritório dos pais. Disse que mostrou os desenhos para os outros e que minhas fotos estavam maravilhosas. Ele reconheceu o trabalho de uma propaganda que fiz há algum tempo e eu fiquei feliz por isso. Contou que todos estavam bem, mas não mencionou o casamento do Aoi.

Eu queria saber por que.


Quase um mês depois, encontrei uma mensagem de Reita, me cobrando por que não escrevi a ele também. Falou de seu relacionamento com Ruki e me pediu meu endereço e telefone. Queria me visitar e falar comigo.

Eu respondi que estava ocupado com uma viagem de trabalho e que não dava para ser, por enquanto. Então ele mandou outra mensagem insinuando que eu não queria que eles vissem como estava vivendo, com cópia para Kai e para mais dois endereços que eu não identifiquei.

Essa mensagem nem respondi.


Trabalhamos em algumas missões e eu ainda estava meio estressado por ter que usar bengala, mas saiu tudo bem. Mais grana na minha conta e mais uma estrela na parede.

Uma mania que peguei, de colar uma estrela no mural para cada missão como mercenário que eu realizava. Para quem não queria nem saber, já contava com dezessete estrelas e um passaporte lotado de carimbos. Na verdade, eu já estava na segunda via do documento.


Kai mandou mais mensagens, ignorando claramente a provocação de Reita. Eu respondi a todas, mas mantendo distância e parece que ele percebeu. Eu mandei algumas animações que fiz e um desenho especial do Kratos para Nao, já que eu soube que ele amava God of War. O próprio me mandou uma mensagem de agradecimento animada, cheia de pontos de exclamação e emoticons.

Trocamos algumas mensagens e o namorado do Kai pareceu uma pessoa divertida.

Reita tentou consertar em outra mensagem, mas não pediu desculpas e tentou dizer que teve razão ao me cobrar. Também não respondi a esse.


Kai me mandou receitas e fotos dos dois, além de fotos com Reita e Ruki. Eu respondi com meu endereço e um convite para uma visita.

É... eu sei... estou totalmente louco! Depois de velho... sabe como é...


****



Eu estava trabalhando no caixa do café quando Kai chegou. Por causa da minha perna, não pude mais fazer as entregas e nem andar de bicicleta, e para meu desgosto, acabei confinado aqui, no caixa. Soube que eram eles assim que os vi por causa das fotos, e sorri quando eles se aproximaram.

– Takashima-san, por favor – Kai perguntou, tímido.

– Oi, Kai!

Fiquei olhando a surpresa no rosto dele, os olhos dele se arregalarem e não senti a empolgação que achei que ia. Eu pensei que ficaria bem mais feliz ao vê-los. Depois das apresentações, dei a volta para me sentar com eles e vi o olhar deles recair sobre a minha perna e a bengala. Kai empalideceu.

– Meu Deus... – murmurou, baixo.

Ignorei a raiva por ser alvo de tanta pena e o deixei afundar em comiseração. Pelo jeito, o amante dele notou e se remexeu, inquieto.

– O homem é lindo e está bem, onde está o coitado que achou que encontraria? – perguntou, seco.

Kai olhou para ele espantado, mas eu sorri. Era esse o espírito. Podiam ter tentado quebrar minha alma duas vezes, mas eu sou mais que isso.


Ambos ficaram impressionados com meu apartamento e Kai leu cada um dos meus diplomas. Tá certo que não terminei a escola, mas não era um inútil qualquer e decididamente, tenho mais recursos agora para não morrer de fome do que quando fazia a faculdade.

Expliquei a Nao o que fazia e mostrei o equipamento de computação, deixando de fora todos os programas que não queria que ele visse. O carinha é muito inteligente para o próprio bem.

Kai insistiu em me ajudar a fazer o jantar, mas não deixei. Queria mostrar que agora, sou tão bom cozinheiro quanto ele. Assim que ele provou o primeiro pedaço, abriu um sorriso e pegou o guardanapo.

– Uau! Isso está realmente bom! – comemorou, me olhando – Até que enfim!

– Um dia miojo cansa. – eu rebati, calmo.

Soube que eles se assumiram para suas famílias e a de Nao o deserdou. A de Kai, não.

– A tia sempre foi mais compreensiva, mesmo. – eu comentei, diplomático.

– É... mas não consegui incentivar Reita a fazer a mesma coisa. – ele continuou, encolhendo os ombros – De Ruki ainda se lembra, não é?

– Lembro. Foi posto para fora...

– É... mas depois que fez sucesso e ficou rico, o pai dele apareceu... não deu em nada porque Ruki não o deixou se aproximar. – ele tomou o resto do chá gelado e hesitou – Soube do casamento do Aoi?

Hora de erguer os muros e usar as máscaras.

– Soube. Alguém me mandou um convite. – coloquei minha voz em modo robô e o olhei sem emoção.

Eu podia fazer isso.

Kai franziu a testa e empalideceu um pouco, trocando um olhar com Nao.

– Depois que você sumiu, ele ficou um tempo com a garota que nos trouxe a informação – eu aparei o golpe, mas confesso que me incomodou ouvir que aquela louca não mentiu – Mas depois ele não resistiu ao assédio de Akima, além do mais, a mãe dele estava muito em cima, querendo o casamento. Eles... ficaram casados quase quatro anos, mas não deu certo.

Ele se calou e eu não disse nada. Na boa, eu não tinha nada para dizer sobre isso e confesso que doía pensar nele com outra pessoa. Ele me olhou e então, sorriu sem jeito. Nao o encarou de um jeito sério e então, se virou para mim.

– O divórcio não significou muito para eles. Vivem juntos e viajam juntos... depois brigam e se separam por dois, três meses e então ficam juntos de novo. Pouco antes de a polícia vir nos procurar, tinham viajado juntos para a Austrália, de férias. – o olhar dele se enterneceu e eu dei pontos a ele por isso – Desculpe por dizer isso assim, mas do jeito que Kai explicou, pareceu que se separaram de verdade e essa não é a verdade.

– Eu não quis... – o moreninho começou a protestar, mas o amante o olhou, sério.

– Pode até não ter sido sua intenção, mas deixou no ar que o casamento não existe. Pode não existir no papel, mas ela tem a chave do apartamento dele, tem coisas e roupas dela lá, ela entra e sai quando quer e dorme com ele. Pode não ser mais casamento, mas é um caso no mínimo. – o jovenzinho me olhou, inseguro.

– Tudo bem – eu disse, sendo simpático e falso – Bom ter me explicado.

– E você, tem alguém?

Nao me encarou e Kai o repetiu. Eu podia dar um sem número de respostas que trariam um sem número de reações. Resolvi ser sincero, mentir cansa.

– Não. Ainda sou completamente apaixonado por Aoi e não consigo me ver com outra pessoa. – os olhos dele se arregalaram e vi arrependimento neles. Ergui uma mão, tentando aliviá-lo – Não consegui seguir em frente como ele... mas foi bom ter me explicado a situação, ou ainda continuaria a ter esperanças...

– Uruha... – Kai murmurou, pálido.

– Eu devo confessar que me sinto estranho por ele ter ficado com ela. – suspirei e encarei a borda do copo – Aquela garota ferrou com a minha vida e achei que ele não aceitaria isso... pensei que...

Dei de ombros e sorri, sem vontade. Eu podia sentir a frustração aumentar e então respirei fundo.

– Sei que tenho boa parte da culpa pelo que aconteceu, mas se ela não tivesse feito aquilo no meu aniversário, eu não teria voltado para as ruas e tudo o que aconteceu depois, nunca existiria. – eu falei baixo, mais para mim do que para eles.

– Nunca entendi... – Kai começou incerto.

– Ela disse que vocês reclamaram de me ajudar e estavam em dificuldades por fazer isso. – eu o interrompi e o encarei – Como vocês ficaram calados diante disso, assumi como verdade e tentei devolver o dinheiro. Eu nunca quis que se endividassem por me ajudar e depois que perdi o emprego e o apartamento, não me restou outra opção.

Kai ficou um pouco mais pálido e Nao olhou dele para mim, consternado. Eu até pensei que podia deixar por aquilo mesmo, mas eu não quis.

– Não culpo vocês por quererem receber, ainda que quando me ajudaram, não disseram que era empréstimo. Eu só queria que tivessem dito para mim, em vez de dar a ela munição para me ferrar.

Tomei o resto do chá e me levantei, juntando os pratos. Nao fez o mesmo e eu não disse nada. Me ajudou a juntar tudo e quando comecei a lavar, ficou do meu lado para enxugar e guardar.

– Não sabia de onde ela tirou isso... depois soubemos que foi Ruki. Ele e Reita estavam combinando uma viagem de férias e... bem, Reita usou o dinheiro para te ajudar. – eu o observei passar a mão pelo cabelo, desconsolado – Ruki ficou uma fera e contou a ela, frustrado.

Houve um silêncio desconfortável entre nós e Kai se recostou à parede e cruzou os braços, nos observando trabalhar.

– Ela assumiu depois que fez aquilo para te envergonhar mesmo... mas não achou que você iria tão longe. Disse que estava envergonhada e muito arrependida e se ofereceu para explicar tudo a seus pais e pedir desculpas a você, mas não deu tempo. Quando te procuramos, soubemos sobre a faculdade e o emprego... depois o apartamento... E quando o dinheiro começou a chegar, eu confesso que fiquei um pouco desnorteado. Eu queria pedir desculpas, mas estava envergonhado demais e achei que acabaria voltando para perto de nós quando esfriasse a cabeça.

O silêncio voltou e terminamos de limpar a cozinha. O jovem estava muito envergonhado e quase não olhava para mim, mas ele não tinha culpa nenhuma, chegou depois.

– Vocês podem ficar com meu quarto, eu durmo aqui. – expliquei, tirando as coisas de cima do sofá e antes que Kai protestasse, fiz o sofá se transformar em uma cama - Meus amigos dormem aqui de vez em quando.

Kai me observou por um tempo e então, se sentou no sofá menor.

– Aqui parece ser bem caro... – comentou, sério – Não é muita despesa?

Voltei o sofá para o lugar e sentei, fazendo Nao se sentar também. Pelo jeito, Kai não ia desistir.

– Comprei esse apartamento com a indenização que recebi. - era meia verdade, mas qual é! Eu já estava exausto daquela conversa e começando a me arrepender de tê-los convidado – Levei um tempo para decorar e fiz os tapetes, as cortinas e os quadros. Também fiz os origamis que decoram tudo – olhei o lustre e sorri de volta para o moreninho – Minha maior conta é de energia, mas dá para pagar... eu não tenho muitos luxos e para mim – olhei em volta e sorri mais abertamente – Não falta mais nada.

– Seu pai me procurou depois da polícia... ele estava preocupado e queria saber se tinha entrado em contato comigo – ele cruzou as mãos e me encarou – Já procurou por ele?

– Ele ligou para a agente que estava a par do caso e disse que diante da situação, ele era o meu representante legal e que qualquer valor de indenização, devia ser colocado sob a tutela dele. Argumentou que eu nunca soube lidar com responsabilidades e que podia conseguir um laudo médico que atestava isso. – diante do olhar estarrecido dele, eu ri, divertido – Durante toda a conversa, ele não perguntou onde eu estava e se estava bem, só quis deixar claro que o dinheiro que talvez eu pudesse receber, devia ser colocado em conta sob a responsabilidade dele.

– Mas que... – Nao começou e parou, indignado.

– No fim, a agente perguntou se ele estava minimamente preocupado comigo ou só queria o dinheiro mesmo... só então ele percebeu o que fez e tentou consertar, dizendo que minha mãe e irmãs estavam prostradas com o que aconteceu e que queriam me ver. Ele ressaltou que já tinha encontrado uma clínica perfeita para mim e que o dinheiro seria usado para me dar condições dignas de viver o resto dos meus dias em paz e tranqüilidade.

Kai estava chocado e abriu e fechou a boca várias vezes. Nao me olhou, sacudindo a cabeça.

– Não o procurei, Kai, nem vou procurar. Meus pais nunca foram meus pais e minhas irmãs transformaram minha vida num inferno. Só quiseram se aproximar por causa do dinheiro, mas eu sou maior de idade, vacinado e não sou louco. – encolhi os ombros com um sorriso – Não preciso mais da aprovação deles para nada.

– Sinto muito... – ele murmurou, baixinho.

– Eu também senti, mas cheguei finalmente na idade de não me importar mais tanto com isso... eu posso superar, como fiz com muitas outras coisas. – respondi, encarando-o.

– O que acontece agora? Vai ficar aqui ou voltar para Tókio?

Foi a minha vez de arregalar os olhos, espantado.

– O que eu faria em Tókio? – perguntei, surpreso. Ele me olhou confuso e eu indiquei o apartamento – Eu moro e trabalho aqui. Tókio só me trás lembranças ruins e não quero voltar para lá. – eu o olhei significativamente – Não tem mais nada para mim em Tókio, Kai.


Eu falei a verdade e mostrei a eles. Apresentei os dois para todos do grupo, menos Rindaman que não apareceu por dias. Eles chegaram a trabalhar comigo no café uma manhã e ensinei a Kai as receitas dos bolos que faziam tanto sucesso. Passeei com eles em Fukuoka e os levei a todos os lugares legais que conhecia. De todas as alternativas, agradeci que tenha sido Kai o primeiro a vir.

Eles foram embora depois de duas semanas, e apesar de ter sido bom, fiquei aliviado. Eu não estava acostumado a ter gente em casa o tempo todo e quando me vi sozinho de novo, sorri. Pena que não deu para aproveitar o silêncio do meu apartamento por que dois dias depois, já estava embarcando para a Coréia do Sul.



*****



O trabalho foi legal, mas pela primeira vez em tempos tive que intervir e checar o local pessoalmente. Graças aos céus não tive que transar com ninguém dessa vez e o pagamento foi bem melhor: cento e setenta mil dólares. Pena que não pudemos ir direto para casa e sim, desembarcarmos em Tókio para o caso de uma investigação sobre espionagem industrial.


Rindaman me olhou de um jeito estranho e então me estendeu a pasta. Abri e vi um homem de meia idade já um pouco esculhambado e ergui uma sobrancelha, curioso.

– Esse é o cara? – perguntei, passando as folhas e guardando as informações na cabeça.

Devolvi a pasta e o encarei, confuso com o olhar dele.

– O nome dele é Yushimaza Norito, e é seu cunhado.

Eu franzi a testa e então, olhei para os outros. Todos estavam me encarando.

– E dái... – eu disse, sem realmente entender qual era o problema

– Seu cunhado. Sua família.

Tachibana respondeu e eu finalmente entendi. Roubei o chá gelado do Jong e me ajeitei no sofá.

– Sem problemas.

O bom da equipe é que quando alguém dizia isso, ninguém contestava, mas era melhor dizer com total certeza.


– Cara safado! – eu murmurei, encarando a tela do computador.

E ri, divertido.

Sério, o cara era um rascunho, só pode! Até eu sou mais homem que ele!


O espertalhão estava traindo a Takashima mais velha com outro homem, membro da diretoria da empresa concorrente e estava na cara que recebia informações sigilosas. Em duas semanas, tínhamos material para uma prisão perpétua. O que não contávamos é que teríamos que nos mostrar. Um caso envolvendo quase dois bilhões... bem, não dava para querer fonte anônima, não é?

Rindaman até tentou espernear, mas não deu. Nossos empregadores exigiram comprovação total do vazamento de informações e lá fomos nós.


Fiquei surpreso com o luxo da sala da TechJapan e troquei um olhar divertido com Jong, que se sentou a meu lado. Tachibana, Gin e Morg sentaram-se do outro lado e Rindaman, no meio. Os engravatados da empresa nos olharam austeros e mereci um olhar mais detido. Apesar de saber que minha figura impressionava um pouco, sempre ficava constrangido e muito puto! O que as mulheres desse país estavam fazendo?

Só então fomos informados que deveríamos prestar depoimento na Comissão de Negócios Imobiliários e entregar o relatório. Tachibana quase teve um surto, mas Rindaman se certificou que não haveriam câmeras, para desconsolo dos empresários que queriam uma crucificação pública.

– O que farão com as informações é problema de vocês, já que pagaram por elas, mas minha equipe e eu não faremos parte desse circo. – ele disse, tão gelado que eu cheguei a estremecer de leve.


No tribunal, ou sei lá o que era, cada um de nós teve que explicar o que fez e como chegou às informações. Ficamos no raso e eles se irritaram, ameaçando nos processar. Rindaman se ergueu e todos nós com ele.

– Faça isso.

Depois dessa, saímos e levou menos de dez segundos para irem atrás da gente. Tachibana rolou os olhos e resmungou que nunca mais trabalharia para políticos. Fizemos coro com ele.

No meio do depoimento, uma mulher invadiu a sala e nos acusou de armar para o marido dela e querer jogar o nome de uma família respeitável na lama.


Encarei minha irmã mais velha e espantado, vi que toda a beleza estonteante dela sumiu. Ela estava corpulenta, com um terninho de saia apertado demais e com a maquiagem meio estranha. Tentei ver nela a jovem que transformou meus dias em inferno puro e de conhecido, só vi a amargura e a arrogância. Nisso ela não mudou.

Quando ela me encarou, seus olhos se estreitaram. Por um segundo, achei que ela ia me insultar como sempre, mas se limitou a nos ameaçar de processo e coisas do tipo. Jong se aproximou de mim, me olhando preocupado.

– Se não der... – ele murmurou, olhando de mim para ela.

– Não esquenta, ela nem me reconheceu. – respondi, calmo.

Infelizmente para mim, ela me ouviu e se virou, me encarando de cima até embaixo. Eu ainda estava calmo. Os tempos em que ficava com medo do que ela podia fazer já tinham passado.

– Qual o seu nome? – ela perguntou, altiva.

– Takashima Kouyou.

A minha resposta a fez empalidecer muito e recuar, espantada. Eu não me movi, encarando-a.

– Devia saber que só um vadio como você seria capaz de descer tão baixo quanto acusar um homem descente da mesma doença que você tem. – ela cuspiu, com tanto desprezo que eu cheguei a piscar.

– Sério mesmo? – eu rebati, descontraído e a vi franzir os lábios. Ela ficava com uma aparência de megera daquele jeito – Sou eu o vadio ou o seu marido que te traía com homens só para se dar bem na profissão?

Ela ergueu a mão para me esbofetear, mas eu a segurei. Não mesmo. Não nessa vida.

Nunca mais.

Devo ter deixado todo o meu ressentimento e toda a minha revolta expresso no meu olhar, porque ela empalideceu de novo e recuou ainda mais quando a soltei.

– Se quiser, tenho os vídeos do seu marido na cama com os amantes... – eu provoquei, sentindo um prazer sádico ao ver que podia machuca-la – Tenho as conversas também... e você é muito burra por não ter notado as faturas do cartão. Tem certeza de que ainda sou o vadio por aqui?

Senti os dedos de Jong no meu braço e recuei a violência. Ela já estava no chão e não teria graça bater em cachorro morto. Ela colocou a mão no rosto e saiu correndo da sala, acho que chorando. Me sentei e respirei fundo, ignorando os olhares. Pela próxima hora e meia, explicamos ao juízes quase todo o processo de obtenção das provas e mostramos as autorizações para as escutas e filmagens.


O homem sentado na outra mesa não tirou os olhos de mim. Meu “cunhado” me encarava com tanta raiva, que Jong e Morg reagiram, perguntando se havia algum problema.

– Que eu saiba, um garoto de programa não tem credibilidade para acusar ninguém. – ele cuspiu, tão arrogante quanto a esposa.

– Um garoto de programa talvez não tivesse, se não fosse nesse exato minuto um agente das Forças Especiais do Departamento de Investigações Federais do Japão.

Eu olhei espantado para Rindaman, que me lançou um breve olhar. Yushimaza se encolheu no banco, fulminado pelo olhar gelado e Jing entrelaçou os dedos nos meus, abaixo do nível da mesa.

– Depois a gente te explica... – murmurou, sério.

Fiquei quieto e ouvi o resto das acusações e o acordo para que o espertinho não fosse preso. Ele se apressou a querer entregar o esquema todo e o olhei com desprezo. Sujeitinho covarde!


Na saída, dei de cara com meus pais e Temari, mas não senti nada e continuei andando. Só parei porque meu pai me segurou pelo braço. Tachibana, Morg e Jong se materializaram perto de mim e Rindanam parou, atento. Eu olhei da mão no meu braço para ele, que comprimiu os lábios.

– Você vai desfazer o que fez com sua irmã. – ordenou, baixo – Não vou aceitar que apareça aqui depois de tanto tempo apenas para envergonhar nossa família.

– Olá, papai! – eu debochei, soltando o braço num puxão – Que bom ver vocês com saúde! Eu estou bem, apesar de usar bengala e estar surdo de um ouvido! Agradeço terem se preocupado com meu dinheiro, enquanto estava no hospital, mas não precisava. – diante da menção da tentativa de golpe, ele empalideceu e ficou tenso – Lamento que Temari tenha escolhido se casar com um homossexual enrustido, e lamento que ele seja um traidor... mas essas coisas acontecem nas melhores famílias! Isso só mostra que dinheiro não compra tudo, nem esconde segredos por muito tempo. – eu sorri, falso - Desculpe, agora tenho que ir!

Curvei-me da forma mais respeitosa que consegui e olhei para a minha mãe. Ela ainda parecia feita de cera, sem nenhum fio de cabelo fora do lugar. Não senti nada quando olhei para eles e de algum jeito, sei que eles sabiam disso. Não existiam laços entre nós.

Eu acompanhei o pessoal com calma, apoiando mais pesadamente na bengala por causa do cansaço. No elevador, tive que me apoiar em Jong, que me enlaçou pela cintura sem se preocupar com os olhares.

Senti-me patético.


No quarto, recusei o jantar e fiquei deitado, olhando pela janela. Eu não esperava nada diferente, mas mesmo assim, tinha que admitir que doeu ser tratado daquele jeito. Nenhum cumprimento, nenhum interesse...

Quantos anos sem notícias? A última vez que me viram, eu estava fazendo vinte e dois, agora já tenho trinta e seis... Quatorze anos...

É tempo demais... quase uma adolescência...

Uma sombra na porta me fez olhar. Rindaman me encarou com aqueles olhos negros.

– Seus pais estão aqui.


****



Com um suspiro, sentei pesadamente na poltrona e coloquei a bengala de lado. Notei com satisfação que alguém já providenciou as bebidas para ele, e também que estavam na sacada, do outro lado da porta de vidro.

– Não podemos ter mais privacidade? – meu pai perguntou, seco.

– Não.

Eu respondi e o encarei, meio perdido porque não estava sentindo nada. Nem medo, nem decepção, nem mágoa...

Os dois se mexeram e ficaram em silêncio. Minha mãe trocou o vestido por outro, mais sóbrio e mais caro, ainda assim, estava com o mesmo ar artificial de antes. Acho que nunca vi minha mãe descabelada ou sem maquiagem, e muito menos desarrumada.

– Você precisa entender que temos um nome a zelar. Seu depoimento foi decisivo para a condenação de seu cunhado e isso pode ser revertido, se você quiser – ele começou, me olhando sem qualquer tipo de sentimento – Deve entender que desde que você foi embora, eu e sua mãe precisamos fazer o que foi preciso para manter o nível da família, e sua irmã fez um bom casamento.

– Está querendo colocar a culpa do seu fracasso em cima de mim? – eu perguntei, usando a pausa dele.

Meu pai me encarou, surpreso.

– Não me venha com essa de que a culpa por ter Temari ter aceitado se casar com um gay é minha porque saí de casa. Não me lembro de ter tido opção.

O rosto dele avermelhou um pouco e então, ele respirou fundo para se controlar. Minha mãe colocou o copo sobre a mesa e se inclinou para frente.

– Filho, sei que não fomos os melhores pais do mundo, mas deve entender que você sempre foi difícil de lidar. Eu e suas irmãs tentamos de tudo para que fosse mais próximo a nós e depois que saiu... bem... – ela hesitou de um modo tão artificial que tive um certo nojo – Nós temos um nível de vida e um nome importante. Talvez você possa nos ajudar e dizer que foi tudo um engano... Nossa família não precisa de outro escândalo depois...

Ela parou e me olhou significativamente. Eu ri da superficialidade dos dois.

– Deixa eu ver se entendi. Vocês querem me convencer que saí de casa porque quis, que vocês e minhas irmãs me amavam de verdade, mesmo quando me humilhavam e castigavam sem razão. – ambos se remexeram, mas eu não liguei. Estava incrédulo demais para me importar – Vocês me amavam quando me forçaram a usar roupas que elas não queriam mais porque não queriam gastar comigo. Me amavam quando me deixaram trancado durante as festas e jantares... me amavam quando fiquei doente e fui abandonado no hospital porque nenhum de vocês teve tempo para ficar comigo e me amavam quando me proibiram de comer com vocês à mesa e só poder pegar o que sobrava do prato delas. Vocês me colocaram para fora quando eu tinha quinze só porque minhas irmãs não suportavam a concorrência e vocês não suportavam a vergonha de terem um filho gay.

Minha mãe fez um gesto, mas eu continuei.

– Então, para manterem o padrão de vida ela se casou com um gay, sabendo que era gay e agora a culpa é minha. Vocês não estão preocupados com o fato dele ter traído a sua filha querida com um homem e sim, com o prejuízo que isso vai causar. É isso?

– Kouyou... – meu pai começou, mas eu ergui uma mão.

– Devo considerar então que a minha saída de casa deixou vocês na miséria e que quando falaram que não esperavam nada de mim porque eu nunca seria nada, estavam apenas brincando?

Eles se entreolharam e minha mãe molhou os lábios.

– Não foi assim...

– Está me chamando de mentiroso?

Devo ter feito uma expressão muito maligna porque ela empalideceu e se encolheu. Olhei para o meu pai e vi que ele também estava desarmado e pálido. Ela retorceu os dedos, encarando as unhas.

– Nunca soube como lidar com você – finalmente olhou para mim, com os olhos arregalados – Nunca soube lidar com sua beleza ofensiva e nem com sua delicadeza natural. Era uma afronta para mim e para suas irmãs. Os colegas delas... pretendentes... nunca mais olhavam para elas depois que você entrava em algum lugar... Depois que tomei a péssima decisão de te forçar a usar as roupas delas, ficou pior. Você conseguia ser mais bonito vestido naqueles trapos do que elas com vestidos caros.

O tom de raiva dela não me surpreendeu muito. Ela podia sentir um monte de coisa a meu respeito, mas amor nunca esteve na lista. Meu pai a encarou, espantado.

– Eu sabia que elas mentiam para te prejudicar, mas eu não ia fazer nada. Elas mereciam um pouco de atenção e você roubava tudo! Sempre com esse olhar altivo, sempre com um sorriso que deixava todo mundo bobo por você... e quando seu pai...

– Já chega, Anika! – ele ordenou, com violência.

Eu ergui a sobrancelha e senti que aí tinha coisa. Devia ser aí o problema e então, a encarei.

– Quando ele fez o quê? – perguntei, ignorando o olhar furioso que ele me mandou.

– Ele me chamou pelo seu nome. – o olhar dela, cheio de raiva e inveja, me fez recostar na poltrona – Enquanto me possuía, ele me chamou pelo seu nome. – o tom dela baixou ainda mais – Ele ficava excitado quando te batia... quando te via chorar de fome ou de dor... quando te via vestido de mulher... eu tinha que aceita-lo na cama, duro, sabendo que era você que provocava aquela reação...

Toda a raiva e mágoa que ela sentia por mim estavam estampados no olhar desolado e eu me ergui com dificuldade, querendo sair dali o mais rápido possível. Rindaman e Jong se materializaram a meu lado, mas ela ainda não tinha terminado. Mesmo com meu pai tentando detê-la, ela também se ergueu e me encarou, com as lágrimas escorrendo.

– No seu aniversário eu vi o brilho nos olhos dele – ela aumentou o tom de voz, descontrolada – Vi o desejo, a cobiça... ainda mais depois que aquela vagabunda disse que você era um garoto de programa... – o rosto dela estava contorcido, atormentado – Depois que você saiu ele foi atrás... me deixou lá sozinha e foi atrás de você... eu encontrei os dois conversando... ele pegou com ela seu endereço e disse que ia tirar você de perto daquele moreno idiota...

Minhas pernas falharam e um deles teve que me segurar, não sei dizer quem. Ela se aproximou e me agarrou pela jaqueta.

– Sabe o que ele fez? Ele alugou um apartamento para te colocar... foi atrás de você mas não te encontrou... e descontou sua frustração em mim... arrumou amantes e mandava que elas pintassem o cabelo de loiro... Tentou me fazer pintar também...

Alguém a puxou para trás e eu vomitei... senti mãos me segurando, e apesar de eu não ter nada para vomitar, meu estômago ainda estava na garganta.

– Você estava tão lindo... tão mais lindo do que antes... nunca tive chance depois que você nasceu... depois que você começou a respirar... Minhas filhas não tinham chance nenhuma... sei que não é o mais bonito do mundo, mas reconheço que é muito mais bonito que elas... mais delicado... mais educado....

Eu a ouvi mas, desesperado, arranquei o aparelho do ouvido. Eu não queria mais ouvir aquelas coisas... não queria mais saber... a voz dela estava tremendo e eu gritei, agoniado. Continuei gritando até que tudo escureceu.


Dei por mim encharcado, sentado dentro da banheira com Jong me abraçando por trás, me balançando suavemente... Rindaman estava sentado no vaso sanitário fechado, me encarando.

– Eles foram embora.

Eu o olhei e não queria entender, mas entendi. Eu lia lábios com precisão cirúrgica, mas senti Jong colocar o aparelho no meu ouvido. Não queria voltar para a realidade nem ouvir mais nada, mas eles não tinham culpa... eu não tinha culpa...

– Seu pai estava muito abalado mas sua mãe o forçou a reconhecer que não pediu apenas a tutela do seu dinheiro, mas a sua também. – eu o olhei e ele encolheu os ombros – Ele disse a Sun Hee que te colocaria numa clínica, mas não era essa a real intenção. Ele ficou animado quando soube que você estava bem, física e mentalmente, e planejou te levar para um lugar distante de todo mundo.

Senti os braços de Jong me apertarem e apesar da segurança, não ajudou muito.

– Isso é doente! – eu comentei, inconformado – Eu nunca percebi nada... nunca... - parei, respirando fundo – Bom, pelo menos agora eu sei de onde vem tanta hostilidade. Não dava para elas realmente me amarem...

– Isso não é desculpa, Uruha! – a voz de Jong soou baixa atrás de mim – Você não tem culpa da lascívia do seu pai. Ela tinha que te proteger, não te hostilizar.

– E eu devo acrescentar – Rindaman comentou, me fazendo encara-lo – Que suas irmãs não são tão feias assim. Confesso que não são páreo para você, mas se ela tivesse uma postura diferente, elas o teriam encarado como um amigo e não como rival.

Eu tive que sorrir diante da tentativa deles de melhorarem a situação. Eu me encolhi contra Jong, um pouco mais consolado.


Depois de alguns minutos, eu reagi e me ergui. Rindaman saiu do banheiro e Jong se ergueu.

– Vou me trocar no meu quarto. – ele explicou sem necessidade.

O observei também sair e quando fiquei sozinho, tirei a roupa e tomei banho realmente. Apesar do desejo profundo, as palavras da minha mãe não saíram da minha mente. Reconheço que foi doentio, mas eu passei as próximas horas me lembrando de coisas que aconteceram que podiam confirmar aquilo e para minha infelicidade, encontrei muitas. Coisas que, na hora, eu não podia entender nem classificar, mas agora... toques desnecessários, o estranho brilho no olhar dele. Fiquei horrorizado ao lembrar que ele realmente ficava excitado ao me bater.

Me vesti sem nem perceber e quando me deitei, estava tão triste que achei que pudesse morrer. Sabia racionalmente que não tinha culpa disso, mas foi difícil encarar o desejo do meu próprio pai. Fiquei tentando imaginar se talvez eu pudesse ter feito algo diferente, mas não consegui. Eu não podia ter feito nada porque nem percebi onde estava o erro. Nunca fui desses garotos erotizados e perdi a virgindade pouco antes de ter que trabalhar como garoto de programa. Tudo o que aprendi, foi nas ruas mas então, era tarde demais para perceber qualquer coisa.

Eu fui superando tudo o que acontecia comigo, incapaz de desistir. Superei ter sido mandado embora de casa, superei as ruas, o abandono de Aoi e depois, superei a Casa Amarela. Encarei quando Rindaman me jogou na fogueira naquela viagem e superei o seqüestro, a morte de Kim e minhas limitações físicas. Podia dizer que meu maior mestrado, era em sobreviver.

Me tornei especialista nisso.



***


Me joguei no sofá e respirei fundo, abraçando minhas almofadas. A volta para casa foi rápida e sem stress, graças aos céus. Só no avião soube que meu pai me procurou de novo no hotel, mas Rindaman o parou antes de chegar a mim. O que conversaram, eu não soube e nem ia perguntar.

Não pode chover para sempre, ok?


A rotina retomou e eu fiz mais alguns trabalhos de publicidade. O café estava muito movimentado e quando chegava à noite, minha perna estava latejando. Não que eu ficasse de pé o dia todo, mas andava muito, de um lado para outro.

Realizei missões simples, mais pelo belo retorno financeiro e já podia dizer que minha aposentadoria estava garantida.


Kai reclamou um pouco quando soube que eu estive em Tókio e não fui vê-lo, então eu contei a ele que estava trabalhando e não tive tempo. Ele aceitou a explicação e quis combinar quando eu iria visitá-los. Não estava em meus planos voltar a Tókio, mas a idéia me pareceu boa.



Eu ri da cara de espanto que ele fez quando entrei no restaurante e quando fez menção de vir a mim, eu sacudi a cabeça. Estava com fome e queria comer, então, podia esperar. Nao veio e se sentou comigo, conversando animadamente. O homem era um poço de boa vontade.

– Se quiser, posso te levar lá em casa para ajeitar suas coisas. – ele disse, me encarando com um sorriso.

– Não precisa, já encontrei um hotel.

Se eu soubesse a expressão maligna que ele podia fazer, não teria dito nada. De repente, o jovem amigável se transformou em um demônio mal encarado.

– Porque não vai ficar conosco? – perguntou e eu me encolhi. Pareceu o silvo de uma serpente.

– Calma, Nao. Quando me conhecer melhor, vai entender que não gosto de ficar onde não controlo. – respondi, tentando apaziguar a fera – Não é nada contra vocês, é só um sentido de auto preservação aguçado demais.

– Não somos uma ameaça. – ele disparou, depois de me encarar por um tempo.

– Para mim, todos podem ser uma ameaça. – eu rebati, tomando o chá gelado – É apenas questão de oportunidade. – diante do olhar sombrio dele, eu sorri de leve – Desculpe, Nao... mas não é negociável.

Quando Kai se juntou a nós, Nao contou a ele que eu não ficaria com eles. Para minha surpresa, o moreninho entendeu.

– Entendo. Depois de tudo, você não tem porque confiar nas pessoas. – ele comentou, triste – Mas vai ficar conosco o máximo, não é?

Eu sorri e concordei. – É claro!

Ele olhou por trás de mim e o sorriso se abriu mais – Reita! Vem ver quem veio nos ver!


Reita e Ruki se sentaram conosco e tive que agüentar o olhar avaliador do baixinho ruivo sobre mim. Eu estava como sempre, de calça jeans e casaco, mas ele me olhou como se usasse um Armani.

Encarei Reita com assombro. Ele estava loiro e ainda usava a faixa no rosto.

– Por que ainda usa isso? – perguntei, curioso.

Ele sorriu de lado – Estilo.

– Boa resposta. – eu concordei, com um sorriso e então, olhei a pequena ameaça – Desse jeito, vai me decorar.

Ele piscou e um brilho estranho passou por seu rosto.

– Estava apenas conferindo. Você está mais bonito agora... e isso é frustrante. – ele resmungou, balançando a cabeça.

Não deu outra e todos rimos, descontraídos. Ele me olhou inconformado.

– Como ainda pode ser tão... tão...

Eu o olhei e vi que ele realmente não estava tentando me atingir e sim, tentando entender como eu ainda podia estar inteiro depois de tudo.

– Ruki, eu sou um sobrevivente. – respondi, calmo.

Ele empalideceu um pouco. – Eu não quis... quero dizer... me sinto um pouco culpado porque no fim...

Não o deixei terminar. Se entrássemos ali, toda a alegria do reencontro sumiria como fumaça.

– Pode começar a pagar me mostrando a loja que comprou esse piercing de estrela. É lindo!

Ele piscou confuso e então me encarou. Percebi que ele entendeu e a conversa saiu do terreno pantanoso e foi para compras, brincos e acessórios. Ninguém para saber isso como ele.

– E aí, algum namorado rompendo nossas portas atrás do loiro dele? – o ruivo perguntou, me olhando malicioso.

– Não. – eu respondi, rindo.

– Mas e o coreano lindo? – Ruki voltou a perguntar, olhando de Kai para mim.

Eu olhei o moreninho e ele pareceu se afundar na cadeira. – Contei sobre Jong... ele... bem...

O homem corou tão absurdamente que acabamos rindo, deixando-o com mais vergonha ainda.

– Jong não é meu namorado, apesar de parecer muito. Passamos um perrengue horrível há algum tempo e tivemos que contar um com o outro... – eu expliquei e suspirei, encarando o chá – Acho que isso fez com que nossos laços se fortalecessem, mas não no sentido sentimental da coisa.

– Parece que as piores coisas acontecem com você, Uruha – Ruki comentou, sem graça.

– É... deve ser porque sou mais teimoso que a maioria. – eu respondi, com um sorriso – Eu me recuso a desistir e além do mais... eu devo isso a alguém...

Apesar deles insistirem um pouco, não disse nada sobre Yuuya. Aquele era um assunto só meu e depois de alguns minutos, acabaram cedendo.

– Vamos combinar sair hoje à noite. Podemos avisar o Aoi.

A frase descompromissada de Ruki fez um silêncio constrangido cair sobre a mesa. Ele nos encarou confuso e depois, corou. Eu sorri, encolhendo os ombros.

– Na boa, gente. Não quero ver ele e a esposa. – eu respondi, sem tentar parecer forte.

– Ele está divorciado. – Reita respondeu de pronto, virando-se para mim – Ele vai querer te ver e sabe disso.

– Pode até ser, mas não quero problemas, Reita. Nao me contou que esse relacionamento é meio iô-iô e não quero ter que enfrentar situações constrangedoras. – eu esclareci, firme.

– Ainda o ama, não é?

Ele não ia desistir e eu não queria mentir, apesar de saber perfeitamente que isso me colocava numa situação frágil.

– Nunca deixei de amar. – respondi, respirando fundo – Mas agora é passado e ele seguiu em frente. Está tudo bem.

Eles me olharam e eu pude ver que não acreditavam em mim. O olhar de Kai estava cheio de pena e isso me irritou.

– Não sou uma vítima, Kai. Guarde sua pena para quem precisa dela.

O moreninho corou e desviou os olhos dos meus. Eu sabia que tinha sido violento, mas esse sentimento sempre me irritou. Convivi com ele tempo demais para aceitar agora.

– Desculpe... – a voz dele quase não saiu e Nao me olhou, com um pouco de raiva.

– Tudo bem, só não me olhe como um cachorrinho perdido, ok. Eu não preciso disso.- respondi, mais diplomático e então olhei em volta – Acho que vir aqui foi uma péssima idéia.

– Nem começa! – Reita respondeu, sacudindo a cabeça – Se você não quer ver Aoi, tudo bem. É uma escolha sua e vamos respeitar. Ainda podemos sair e te mostrar as mudanças que aconteceram...


Deixei Nao e Kai no restaurante e Reita voltou para o trabalho. Fui com Ruki dar um passeio e acabei entrando em tantas lojas que fiquei zonzo. O baixinho parecia uma bateria quando se falava em roupas e acessórios. Tive que protestar para ele não ousar em me transformar num modelo de calças vermelhas.

– Nem morto! – eu reagi, encarando a peça como se ela fosse pular no meu pescoço.

Ele me olhou e rolou os olhos, bufando. Tirando seus ataques de purpurina, foi até legal. Visitamos nossos antigos lugares legais e foi estranho ver como tudo mudou. Manobrei o baixinho até que chegamos perto de onde era a Casa Amarela e no local agora, era uma distribuidora de pesca. Olhei aquele lugar que me causou tanta dor e me tirou tantas coisas, e não pude deixar de sentir dor.

– O que era ali, Uruha? – o ruivo me perguntou, acendendo um cigarro e acompanhando meu olhar.

– O lugar onde fiquei preso. – respondi, baixo.

Ele arregalou os olhos e me encarou, pálido.

– Tão perto assim de nós? – podia ouvir a incredulidade na voz dele.

– É... – murmurei, olhando o prédio e o rio – Não me lembrava direito de como era...

O olhar do pequeno me fez sorrir, mas acho que não adiantou muito.

– Não se preocupe, Ruki. Sei que não imaginavam que eu pudesse estar ali forçado. Eu entendo.

Apesar da minha negativa, ele ainda ficou tenso e resolvi sair dali. Andamos um pouco mais e o levei até o hotel onde estava hospedado. Ruki deixou o carro e encarou a fachada com a sobrancelha erguida.

– Esse lugar é caro! – resmungou, olhando de lado para mim.

– Eu sei. – respondi, com um sorriso – Gosto de ser paparicado.

Ambos rimos e eu fiquei aliviado. Não era minha intenção provocar qualquer sentimento de culpa em ninguém ali. Eu só quis ver o lugar, só isso. Ele mexeu em todas as minhas coisas, e não pude deixar de compará-lo a uma criança.

Depois fomos até a casa dele, para que pudesse tomar banho e trocar de roupa para o jantar. O apartamento era pequeno, devia ser menor que o meu, mas aconchegante. A decoração era meio duvidosa, mas a cara do baixinho.


No jantar, estávamos rindo de alguma coisa quando Reita tocou minha mão. Eu o olhei e ele indicou algo atrás de mim com a cabeça.

– Aoi!

Me virei, sentindo o coração bater na cabeça mas a primeira coisa que vi não foi o homem que eu ainda amava, mas a mulher pendurada ostensivamente no braço dele. Tive que invocar todos os meus sentimentos negros para não gritar de frustração e olhei em volta, notando o constrangimento geral que eles provocaram.

– Boa noite! Fui eu que peguei o recado e achei que podia vir também! – eu notei a falsa animação de Noriko e quase gargalhei quando ninguém respondeu a ela.

Aoi estava olhando para mim e vi que se eu não tomasse uma atitude, não ia dar certo. Ergui meu copo e indiquei a cadeira vazia.

– Boa noite! – respondi, educado – Acho que vamos ter que conseguir outra cadeira.

Ninguém se mexeu para ajudar e depois de algum tempo, ela deu uma cotovelada no ex marido.

– Aoi! Pegue uma cadeira para mim! – pediu, sem jeito.

Finalmente foram acomodados e eu o observei. Ele estava muito bonito, mas mais velho do que eu imaginava. Na curva dos olhos já tinham marcas do tempo e as têmporas estavam grisalhas. Ele era mais velho que eu cinco anos, mas parecia bem mais.

– Eu não sabia que estaria aqui. – ele disse depois de um tempo – Desculpe se... – parou, sem jeito.

– Mas eu disse no recado que deixei no seu celular. – Ruki rebateu – Pôxa, nem o celular!

Ela empalideceu e ele respirou fundo, sem jeito. Eu conhecia mulheres legais e incríveis e podia dizer que gostava da companhia delas, mas essa... por favor.

– Não tem que pedir desculpas, Aoi. – eu sorri de leve e ele sorriu de volta, incerto – Mas depois temos que conversar, Ruki.

O baixinho corou e eu sacudi a cabeça. Era próprio dele fazer esse tipo de coisa sem pensar nas conseqüências. Houve um instante de constrangimento, mas tive que engolir o peso no estômago e fingir que tudo estava bem. Os pedidos foram feitos e eu me arrependi de ser tão diplomático, tanto quanto Ruki se arrependeu de tê-los convidado. Noriko não parou de me provocar, lançando pequenas farpas e falando do seu relacionamento com Aoi. De novo, vi com tristeza que ele não tentou pará-la nem mudar de assunto. Reita e Kai fizeram o possível, mas ela não parava.

– Uruha, você está ótimo apesar de tudo. – ela comentou, me avaliando deliberadamente – É claro que não podia ser diferente, já estava acostumado, não é?

Eu sorri com a alfinetada, mas ela decididamente não sabia com quem estava lidando. Respirei fundo e acho que meu desprezo deve ter transparecido, porque eu a encarei de volta e ela empalideceu, agarrando-se ao braço de Aoi.

– Pelo amor de Deus, mulher! Quantos anos você tem? Cinco? – eu respondi, já sem vontade de ser educado – Além de mal educada é muito burra – ela abriu a boca e se endireitou, mas eu não dei chance – Vira o disco! Que coisa! Eu não fico jogando na sua cara que armou com meu pai para me tirar de perto do Aoi... Não contei nada sobre seu planozinho sujo e não está me vendo dar birra, está?

Eu não queria mais ser diplomático e qual é? Quem consegue diante de tanta provocação?

– Além disso, eu sou aquele que deveria estar cobrando alguma coisa, mas sabe... vocês se merecem... – olhei para os dois e Aoi desviou os olhos – Eu confiei nele e contei sobre mim e olha só! Descubro que o cara é um fofoqueiro, além de um covarde. Depois de tudo, se casou com você, que armou para me humilhar só porque estava verde de inveja, não é querida?

Eu não estava gritando, mas ela avermelhou o rosto de tal forma que achei que ia ter uma convulsão. Eu sorri, maldoso.

– Sou mais bonito, mais educado, mais delicado... Eu sou corajoso e forte... – peguei a taça e bebi, com um sorriso – Achou mesmo que eu ia me encolher e chorar? – o medo nos olhos dela me fez sorrir ainda mais – Achou que pudesse chegar aqui e me jogar na cara essa relação doentia e me faria tremer? Isso é tudo o que tem para me mostrar?

O silêncio podia ser cortado com uma faca e a vi olhar para Aoi.

– Uruha... não precisa... – ele começou, molhando os lábios.

– Já que você não é homem para segurar sua mulher, eu preciso sim. – respondi, fazendo ele arregalar os olhos – Eu não digo nada se ela age com você assim normalmente, mas por uma questão de educação e civilidade, devia guardar o veneno para si e suas amigas e não atrapalhar um jantar que devia ser alegre. Eu não vim aqui para ver vocês e nem queria que estivessem aqui, então não vejo porque tenho que agüentar calado as mal criações da sua mulher.

Eu o olhei e não vi o homem incrível por quem tinha me apaixonado com tanto abandono. Isso me deixou triste e com um sentimento de vazio insuportável.

– Fui para as ruas para pagar o que vocês disseram que eu devia. Fiz o que tinha que fazer, já que perdi o emprego e o apartamento por causa do que a sua mulher fez. – eu o encarei, mas ele não fez o mesmo – Não tive culpa de ser seqüestrado nem de você ter ido para a cama com a integrante da quadrilha, que queria ter certeza de que eu não seria procurado. Eu fiz o que tinha que fazer para sobreviver e não me envergonho disso. Eu saí de lá e refiz minha vida. – ela estava branca como papel olhando para mim com a boca aberta – Você é amarga e rancorosa, Noriko! Não deixou o passado para trás e nem seguiu a sua vida, mas a culpa não é minha. Você fez o que achou certo e teve o que quis, agora arque com as conseqüências e pare de procurar mais problemas. Eu não vou aceitar isso.

Ela engoliu seco – Está me ameaçando? – perguntou, olhando para os outros.

– Estou avisando. – diante do olhar dela, eu sorri de novo – É muito mais do que o que costumo oferecer.


Ignorando os dois, comecei a conversar com Nao e depois de um tempo, estávamos discutindo formas e propaganda. Reita aproveitou para entrar no assunto e de repente, Aoi pediu licença e saiu da mesa, arrastando a esposa. Ruki observou e então se virou para mim, sem jeito.

– Desculpe, Uruha. Eu devia ter previsto que ela mexe no celular dele também. – pediu, baixinho.

Eu encolhi os ombros.

– Tudo bem, não foi agradável, mas pelo menos estabelecemos alguns limites. – respondi. Vendo a expressão dele, fiquei com pena. Ruki não era romântico, mas tinha a mania de querer sempre saber o que era melhor para os amigos. – Vamos comer?

O jantar ficou mais leve depois que eles saíram e eu escondi a tristeza no fundo do peito. Passei pelas horas e cheguei mesmo a me divertir.



Sentado na cama do hotel, não dava para não querer chorar até morrer. Não foi assim que pensei que nossa história terminaria. Na verdade, eu achei que nunca ia terminar.

Todos esses anos, eu pensei nele, senti saudade e mesmo magoado até a morte, eu não consegui me desvencilhar. Não quis me desvencilhar. Eu o amei todos os dias desde que o conheci e mesmo quando eu não quis lembrar, sabia que o sentimento não tinha morrido.

Sempre foi ele, até esse exato minuto e dói ter que encarar que eu estava me agarrando a uma lembrança morta. Eu podia me chutar por ter me exposto a isso, mas foi bom.

Eu não gosto de dor em conta gotas. Demoram mais para sarar.


Fiquei mais dois dias ali e não vi o casal de novo. Os quatro fizeram de tudo para que eu esquecesse a experiência ruim e eu colaborei. No fim, lágrimas de Ruki na despedida e promessas de visitas futuras.

Foi assim.


****


De volta ao meu apartamento, fiquei aliviado por ter minha vida de volta. Viajei para a Europa e meu queixo caiu com os italianos. Quanto homem bonito! Quase chega aos pés da Coréia do Sul, mas ainda falta.

Os trabalhos foram complicados e eu tive que ir a campo fazer o mapa para a invasão por mim mesmo. Senti a adrenalina correndo nas minhas veias enquanto estava nos corredores, disfarçado. Eu não podia invadir o lugar, minha perna não deixou.

Depois de terminado, um italiano charmosíssimo me convidou para jantar. Eu quase não fui, mas Jong ameaçou me trancar num mosteiro do Tibet então... É claro que eu sei que ele não faria, mas não custa bancar o difícil, não é?

Foi interessante flertar depois de tanto tempo, mas quando ele tocou no meu braço, fiquei com medo e quase saí correndo. No fim, terminamos a noite numa cantina pequena e aconchegante, bebendo vinho e comendo pizza com as mãos. Ele entendeu e foi compreensivo, me deu os contatos dele e me pediu para ligar, quando quisesse.



Quando voltei para o café, soube que Aoi tinha estado lá. Encarei Kyoko que me olhou de volta, expectante. Notei a alegria dela e me peguei pensando que devia contar a ela uma coisa ou duas sobre meu passado.

– Ok. Recado dado. – eu disse, sem querer maiores detalhes.

Ignorei os olhares dela, de Téa e de Gin. Tachibana apenas ergueu uma sobrancelha e Jong ficou preocupado. Eu nunca disse nada, mas se tivesse que apostar, Rindaman, Tachibana e Jong eram minhas fichas. Eles pareciam saber tudo sobre todo mundo.

Trabalhei normalmente e recebi as cantadas de sempre das senhoras mais habituais. Era como um ritual me convidarem para sair e eu inventar as razões mais loucas para não fazê-lo. Minha última foi a visita de um et perdido que eu precisava devolver para casa. É divertido!


O telefone tocou, alguns dias depois e eu apertei o botão de atender quando passei, indo me sentar à mesa dos computadores. Precisava buscar um sistema e escrever alguns programas.

– Takashima. – falei, tomando um pouco do chá gelado e deixando a caneca sobre a mesa.

Santa tecnologia!

– Uruha?

A voz de Aoi soou no apartamento vazio e eu olhei o aparelho sobre a pequena mesinha.

– Ele. – respondi, apertando a caneta com força.

– Eu... bem... estive aí, não sei se seus amigos contaram... você estava trabalhando... – ele hesitou e eu franzi a testa – Queria conversar...

– Não temos nada para conversar, Aoi. – rebati, mais controlado.

Encarei a tela e comecei a digitar os comandos, concentrando-me no trabalho. Evitaria sentir o máximo que pudesse.

– Desculpe pelo jantar – a voz dele estava baixa e pareceu cansada, mas engoli a preocupação e não disse nada. Ele esperou de depois de alguns minutos, respirou fundo. – Acho que te devo um monte de desculpas e explicações. Por isso fui até aí... eu quero explicar...

– Não precisa.

É, eu estou estressado.

– Precisa sim. Eu posso explicar talvez não tudo, mas boa parte do que aconteceu. Quero saber sobre você, como está... e eu não pude me aproximar mais. Por favor, eu prometo que é só uma conversa... depois eu vou embora e nunca mais te incomodo.

Eu desviei os olhos da tela e encarei o aparelho. Na boa? Eu não sou curioso e nem me meto onde não sei onde está a porta de saída, mas isso tem que parar. Por nós dois tem que terminar.

– Ok. Estou aqui até o final de semana e depois viajo de novo. É todo o tempo que tem.

Eu respondi e desliguei a ligação usando o teclado, sem esperar pelo que ele tinha a me dizer a mais. Não estou empolgado para essa conversa, mas sei que é necessária.



***


Abri a porta e não me surpreendi por vê-lo, no dia seguinte à ligação. Gin, Jong e Kyoko olharam de mim para ele e eu me apressei.

– Entra, Aoi. – saí da frente e indiquei uma poltrona vazia – Estou terminando um trabalho. Já conhece, Gin e Kyoko, não é? Este é Jong.

Eu me sentei e ele fez o mesmo. Pela próxima meia hora, terminei o trabalho de propaganda do café e peguei as últimas gravuras para o livro. Quando se despediram, Jong me encarou preocupado.

– Me liga se precisar. – disse, sem disfarçar.

– Ok.

Eles se despediram e eu servi chá gelado para nós, com alguns bolinhos. Ergui uma sobrancelha ao ver a mochila ao lado da poltrona.

– Não encontrou um hotel? – perguntei, educado.

– Eu... – ele ficou sem jeito e eu adivinhei a resposta – Pensei em ficar aqui...

Quando me sentei, ele começou a comer e eu tomei o chá, observando-o. Depois de alguns minutos, me encarou.

– Desculpe, estava com fome... eu saí de qualquer jeito e só peguei o principal... – se explicou, um pouco corado.

– Tudo bem, Aoi. Não sou seu inimigo. – respondi, com toda a calma que podia tirar do desespero – Quer tomar um banho e dormir um pouco? – diante do olhar espantado dele, encolhi os ombros – Parece que vai desabar a qualquer minuto.

Achei que ele ia recusar, mas não. Terminou de comer e mostrei a ele o banheiro e cedi meu quarto. Eu ia ter que arrumar ou um apartamento maior ou ajeitar uma cama no laboratório. Deixei-o sozinho e fui trabalhar.

Depois de algum tempo, Jong me conectou pelo viva voz através do sistema de satélites e eu franzi a testa.

– Não começa, Jong! Que tal me dizer onde está o erro no programa de varredura? – eu perguntei, oferecendo outro caminho que não o da conversa pessoal.

Juntos, navegamos pelo programa e refizemos algumas leituras, corrigindo bugs que eu nem sabia que tinha aparecido. Ocasionalmente, fazíamos comentários e piadas. Numa dessas, eu ri e ergui a cabeça, dando com Aoi parado no portal, me encarando com os braços cruzados.

– Jong, ligo depois. – eu me despedi.

– Ok. Não esquece de segunda! – ele me lembrou e eu sorri.

– Claro que não! Coréia do Sul, esqueceu? – eu tive que provocar e ele gargalhou, desligando.


– Você tem muitas coisas aqui... – ele comentou, olhando em volta e então, observou meus desenhos – Nunca pensei que tivesse talento com desenhos.

– Tem um monte de coisas que faço hoje, e que não sabia que era capaz. – eu respondi, me levantando – Só descobrimos nossos limites quando somos forçados a ultrapassá-los.

Ele ergueu a sobrancelha e me encarou, surpreso.

– Onde leu isso?

– Em lugar nenhum, é só um lema meu. – respondi, encolhendo os ombros – Verdades que parecem frases feitas, mas não são. Vem, vou fazer o jantar.

Conferi as horas e percebi que era tarde. Não que fizesse alguma diferença, mas ainda assim... Ele me observou o tempo todo, sentado ao lado da bancada da cozinha. Para desanuviar o ambiente, falei sobre assuntos gerais e quando ele percebeu meus diplomas, se levantou e foi ver. Ficou algum tempo parado olhando os quadros e todo o resto. Acho que ele ficou surpreso.

– São tantos... – ele olhou para mim e passou a mão pelo cabelo – Eu só terminei a faculdade.

Eu sorri de leve e ele voltou a olhar minhas faixas e certificados.

– Karatê... kung fu... Deus, Uruha! – vi que ele pareceu chocado quando se virou para mim de novo – Tudo isso é para não se sentir uma vítima?

– Para não ser uma vítima. – eu corrigi, olhando as faixas – Lutar me deu segurança e confiança na minha força e na minha capacidade de resistir.

– Deve ter sido horrível. – ele comentou, sentando-se de novo.

Eu o encarei e encolhi os ombros.

– Não gosto de falar do passado, Aoi. Nunca me ajudou em nada e não acho que vá. – sabia que estava sendo seco, mas não pude evitar.

Ele encarou o suporte e brincou com os hashis, distraído.

– Eu fiquei com tanta vergonha por não ter falado nada... quis ir atrás de você e pedir desculpas, mas minha mãe fez um inferno... depois eu descobri que por causa de Noriko, perdeu o apartamento e o emprego... eu ia continuar pagando, só estava meio perdido e deixei o tempo passar. Devia ter te procurado e de dado segurança. – quando ele ergueu a cabeça, fiquei um pouco surpreso com a tristeza no olhar dele – Quando me pagou, fiquei com raiva... depois aquela mulher...

Aoi respirou fundo e eu servi um pouco de saquê para nós dois. Ele rodou o copo na mão, de novo com o olhar baixo.

– Me casei porque ela disse que estava grávida... – riu sem querer e encolheu os ombros – Fiz muitas burradas depois que te perdi e acabei com essa... mas era mentira e só descobri depois... minha mãe sabia... – ele respirou fundo e me olhou – Minha irmã descobriu tudo e me contou. Noriko chorou, se desesperou e ameaçou se matar então eu resolvi tentar mais um pouco... Quando me separei, minha mãe admitiu que não conseguiu aceitar minha opção e que estava muito envergonhada do que fez... pediu perdão por incentivar a Noriko a te maltratar e me contou das outras coisas... chorou e tudo o mais...

Eu terminei o refogado e servi a mesa, ouvindo em silêncio. Aoi mexeu um pouco na kobachi¹ com os hashis, distraído. Fiz o cumprimento e comecei a comer, mas ele não notou.

– Sei o que Nao deve ter te contado... e devo admitir que realmente é assim. – Aoi me olhou e eu continuei comendo – Não sou forte como você, Uruha. Sempre acho mais fácil deixar as coisas como estão do que enfrentar um pesadelo.

Ele ficou me olhando, esperando por algo que eu não sabia o que era. Não podia dizer a ele como viver a própria vida.

– Não vai comer? – perguntei, depois de algum tempo.

– Não tem outra coisa para me dizer? – ele perguntou de volta, um pouco irritado.

– Não. Essa é a sua vida, o jeito que você escolheu. Não vou te dizer se está certo ou errado nem vou dar palpites. – respondi, ainda comendo.

Aoi pegou a tigela e os hashis, mas não fez o cumprimento. Devia mesmo estar perturbado... Eu não disse nada e continuei a comer. Depois de algum tempo em silêncio, ele me olhou.

– Está satisfeito com a sua vida?

– Estou. – afirmei, olhando-o nos olhos – Posso dizer que não tenho mais grandes necessidades e estou preparado para enfrentar a velhice. Tenho uma casa, empregos e posso fazer frente à qualquer necessidade que apareça. Estou melhor agora.

– Não tem nenhum namorado... ou amante?

– Não.

Os olhos dele brilharam e eu me contraí por dentro. Conhecia aquele olhar e fiquei decepcionado por vê-lo agora.

– Isso é indigno, Aoi. Não pode pensar em se aproveitar da situação e querer me arrastar de volta para esse turbilhão que chama de vida. – eu acrescentei, desiludido.

Ele piscou, surpreso e eu larguei minha tigela, lutando para não colocá-lo para fora aos chutes.

– Veio aqui para quê? – perguntei de uma vez, já irritado.

Acho que ele não pensou em uma desculpa, porque ficou me encarando com os olhos arregalados.

– Vim te ver... eu queria estar com você e... bem...

Eu respirei fundo. Na boa, não mereço isso a essa altura da vida!

– Melhor terminar de jantar, pegar suas coisas e ir embora, Aoi. Não sei o que pretendia vindo aqui, mas não quero me envolver nessa bagunça e você não tem nenhum direito de querer isso.

Aoi empalideceu e recomeçou a comer lentamente. Eu não pude, perdi a fome.

– Não nego que esperava que pudéssemos... bem... Ruki me disse que ainda me ama e... – ele não me olhou e eu podia matar o baixinho por essa traição. Será que ninguém mais sabia ser discreto?

– Eu uso bengala, Aoi, mas não sirvo para ser uma. – eu respondi, sendo totalmente sincero e seco, pelo olhar dele – Não vou aceitar esse tipo de coisa.

– Pode então olhar nos meus olhos e dizer que não me ama? Que não me quer e que se eu te beijar, vai me recusar? – ele deixou os utensílios sobre a bancada e se inclinou, com um brilho atrevido no olhar – Sabe que seu corpo vai me reconhecer... sei que me ama e que quer tanto quanto eu...

Senti vontade de vomitar. Sério.

Olhei para o homem à minha frente e senti raiva. Ele estendeu a mão e me acariciou no rosto, sorrindo vitorioso quando eu não recuei. Quando ele se inclinou mais, percebi que ia me beijar.

Não deu.

Peguei o braço dele e puxei, fazendo-o cair sobre a bancada. Ele me olhou surpreso e usando o peso dele contra ele mesmo, virei o braço e o fiz cair no chão. Olhando para ele, no meio da comida e de cacos da louça quebrada, não senti pena. Não senti nada.

– Pegue suas coisas e saia da minha casa. Não é bem vindo aqui.

Ele me encarou assustado e eu recuei, mantendo os olhos nele. Quando ele se levantou, eu ignorei a roupa suja e o ar incrédulo.

– Acho que exagerei... – ele murmurou, sem me olhar.

– Seu problema é achar que pode fazer o que quiser, dizer o que quiser e que mesmo assim vou estar sempre disponível. Foi assim antes e é assim agora. Você transa com ela, dá a ela acesso irrestrito à sua vida, a protege e ainda assim, teve a cara de pau de vir me procurar.

Me esforcei para falar, a raiva estava tão grande que eu podia engasgar, mas mantive a voz baixa. Gritar não ia adiantar nada.

– O que queria de verdade, Aoi? Depois de mais de quinze anos, o que veio fazer aqui?

Ele me olhou e eu vi que estava confuso. Rolei os olhos e ri, incrédulo.

– Nem você sabe! Incrível! – olhei o homem que povoou meus sonhos quase a vida toda e respirei fundo – Se você queria saber como vivo, já sabe. Se queria saber se me dei bem... – apontei meus diplomas – Já sabe. Estou vivo e bem e perdôo você por ser um idiota. Agora quero que vá embora.

– Acho que me confundi... – ele murmurou, olhando para o chão – Quando tinha alguma coisa errada, fazíamos as pazes na cama e achei que... – ele passou a mão pelo cabelo e eu quis esmurra-lo com toda a força – Desculpe. Devia saber que não podia ir tão depressa.

É. Ele merecia apanhar.

– Acha mesmo que depois de tudo o que passei, pode resolver tudo me levando para a cama? – os olhos dele se arregalaram – Estou saturado de sexo até a alma, Aoi e se antes resolvíamos tudo na cama é porque você é incapaz de conversar. Incapaz de resolver o que quer, lutar por alguma coisa ou desejar algo. Quando tive a chance, agarrei com as duas mãos e lutei como um leão. – eu sabia que estava sendo cruel, mas essa era a verdade – Eu não queria voltar para as ruas, então... tive que trabalhar muito para conseguir ficar longe de lá. Estava machucado, doente e sozinho, mas consegui me agarrando ao fato de não querer nunca mais estar naquele lugar de novo.

O olhar dele se desviou e eu senti vontade de chorar. Aoi sempre foi meio omisso em relação a tudo e agora, pareceu pior. Nem ele sabia o que fazer da própria vida.

– Não posso ser sua bengala, Aoi. Eu não mereço que sequer considere isso. – com dificuldade, me aproximei e me abaixei para recolher os cacos. Ele tentou me impedir, mas recusei o toque – Eu já enfrentei os meus demônios e está mais do que na hora de você enfrentar os seus.

Continuei recolhendo os cacos, sem olhar para ele. Percebi quando foi para o quarto e juntei os restos da refeição com papel absorvente, lamentando a bagunça do chão. Eu não era muito bom em ficar de joelhos e depois, meu tornozelo reclamava. Ignorei o desconforto e me levantei apoiando na bancada. Com um suspiro exausto, peguei a bengala e joguei o lixo no cesto.


Aoi apareceu de novo, com a roupa trocada e a mochila na mão. Eu não disse nada.

– Espero que me desculpe por tudo, Uruha. Você tem razão... – ele disse, colocando a alça no ombro e me encarando. Acho que ele chorou no quarto – Eu não tenho o direito de trazer a bagunça da minha vida para a sua. Você conseguiu, apesar do que passou e tem razão, nunca me esforcei por nada nem por ninguém. Nunca precisei... – ele encolheu os ombros e colocou uma mão no bolso, sem jeito – Eu achei que não precisava. Não lutei por você nem pelo meu casamento, não lutei para ter sucesso na profissão nem construir nada sólido para deixar... Sempre fui pelo caminho mais fácil e agora, eu não sei... Estou tão envergonhado pelo que fiz com você... pelo que deixei que acontecesse com a gente... Para ser sincero, eu já tinha pensado que era culpa minha, porque se eu tivesse reagido no seu aniversário, você não teria tido que pagar pelas contas... não teria perdido o apartamento nem seu emprego. Se eu tivesse coragem de ter feito alguma coisa, tudo seria diferente hoje. – ele olhou para mim e vi dor nos olhos dele – É horrível pensar nisso. – vi os nós dos dedos dele ficarem brancos com a força que fez ao apertar a alça da mochila – Desculpe por pensar que sexo podia resolver tudo... desculpe por te desrespeitar.

Me encostei à bancada, ainda apoiado na bengala. Ele olhou dela para mim e sorriu, triste. Eu também estava triste, mas nada a ver pular de cabeça no penhasco.

– Já é um bom começo, Aoi. – respondi, com um suspiro - Espero que encontre o que está buscando.

Ele sorriu e desceu o degrau. Quando se aproximou de mim, parou e eu me encolhi por dentro.

– Posso te dar um beijo?

Não havia mais malícia no olhar dele, só uma sombra. Eu sou expert em sombras e concordei. Ele segurou meu rosto e me beijou de leve na boca. Meu coração veio parar na cabeça, batendo como louco. Quando ele se afastou, agradeci estar apoiado tanto na bancada quanto na bengala ou teria caído. Minhas pernas viraram gelatina.

– Quando eu for um homem melhor, posso voltar?

Eu o encarei e sorri. – Não somos mais tão jovens a ponto de poder reescrever tudo, Aoi.

– Você me espera? Por favor... não fecha a porta...

O olhar dele me revirou por dentro. Ele me olhava assim, no início do nosso relacionamento e agora, eu temi por minha própria decisão. Eu queria, queria muito mesmo e queria também me chutar por ser tão vulnerável a ele, mas não podia. Eu nunca entraria lá de novo, por ninguém.

– Não vou fechar. – respondi, ignorando o aviso racional gritando na minha cabeça.

Quando ele sorriu, me senti aquele Uruha de antes, cheio de sonhos e desejos loucos de ser feliz com o homem que amo. Eu sorri de volta e o observei sair do apartamento, depois de me lançar um longo olhar.


Dei por mim no chão, com a cabeça estourando de dor por ter chorado um longo tempo. O chão ainda estava sujo da refeição e eu, gelado. Quebrado.

Tachibana estava me sacudindo, me encarando com os olhos negros arregalados e eu tentei dizer que tudo estava bem, mas era mentira. Não estava.

Estou cansado. Triste e pesado. Quero ficar quieto e dormir.


***


Eu não expliquei nada e na primeira oportunidade, viajei. Austrália, Tailândia e Coréia do Sul... é, eu precisava daquela paisagem toda. Jong e Tachibana queriam vir comigo, mas bati o pé e ameacei greve. Eu quero ficar sozinho.

Quando voltei, juntei todas as fotos dos lugares onde já tinha ido e fiz uma montagem com meus desenhos em painéis. Ficou incrível. Melhor ainda quando a amiga de Kim, Mieko, ficou louca e quando vi, quase não deu para fugir da exposição que ela montou. O livro foi um sucesso e eu me pergunto como pode ser. São só fotos e desenhos, sem nenhuma palavra.

– Você demonstra seus sentimentos em seus desenhos e suas fotos mostram como você vê o mundo. É diferente.

Encarei Rindaman com descrença.

Eu não sou especial. Nunca pude despertar sentimentos nobres nos meus pais e irmãs. Nunca tive muitos amigos fiéis, mas devo admitir que não posso mais dizer que estou sozinho. Os quatro em Tókio se tornaram mais presentes do que nunca e o grupo daqui, em Fukuoka, se tornou mais que um círculo de amigos. Apesar da mágoa do início, souberam me compensar e agora eu digo que são meus amigos. Mais do que amigos.


Minha festa de quarenta anos começou animada. Ganhei um monte de presentes e todos eles vieram me ver. Não era surpresa e foi montada no café mesmo, mas eu gostei. Reita e Ruki finalmente conheceram o lado de cá da minha vida e o baixinho quase infartou quando Kyoko deu em cima de Reita.

– Não esquece o pedido! – Nao orientou quando o bolo chegou, cheio de glacê rosa.

– Rosa?!?! – eu protestei na hora e a maioria riu.

– Esquece isso e faz logo o pedido! – Ruki ordenou, impaciente pelo doce.

Eu encarei o fogo das velinhas e pensei no que pedir. Eu já tinha tudo o que queria e na verdade, não faltava nada. Quer dizer, faltava, mas isso eu não podia simplesmente ir comprar. Fingi que fiz um pedido e apaguei as velas, fazendo todos aplaudirem. Kai se ocupou em distribuir o doce e quase foi atropelado por Ruki, ávido pelo chocolate das florzinhas.


Eu me afastei e me sentei no canto, observando o movimento.

– Vi o que fez.

– Nunca consigo te enganar, Rindaman. – eu respondi, sem olhar para trás.

Ele se sentou e eu o olhei. Encarei a máscara e o chapéu de sempre com olhar crítico.

– Tanta grana e nem um chapéu novo? – perguntei, divertido.

Ganhamos bolo e refrigerante e sorri para Nao, que estava um pouco vermelho.

– Desculpe ser quase o último, mas é que... – olhou para trás e tentou parecer zangado – Esse bando de crianças...

Ouvi os protestos e ri, de bom humor.

– Pelo menos sobrou para mim. – eu comentei, experimentando um pedaço. – Está uma delícia! Obrigado, Kai! – gritei, fazendo-o olhar para mim e sorrir de trás da mesa de doces.

Não se afastou e Rindaman me olhou. Ele nunca comia na presença de ninguém além de mim e eu olhei do pratinho para ele.

– Vai levar? – perguntei, curioso – Se quiser, posso...

Ele abaixou a cabeça e a máscara, e começou a comer. Eu olhei em volta e percebi que ninguém estava olhando para nós, entretidos nas conversas. Sorri e o acompanhei.


Quando Aoi entrou, eu gelei. Ele me procurou com o olhar e atraiu a atenção dos outros, que foram parando de conversar. Eu vi quando cumprimentou todo mundo e então me viu, abrindo um sorriso e eu fiquei sentado, sem forças para levantar.

Ele se aproximou e puxou uma cadeira.

– Posso?

– Claro. – respondi e olhei para Rindaman. Ele recolocou a máscara e encarava Aoi com olhos tão frios que temi um confronto.

– Desculpe por chegar assim. – ele pediu e então, tirou uma caixinha do bolso – Feliz aniversário!

Eu peguei a caixinha meio sem jeito e a abri. Não estava embrulhada. Demorou um tempo para eu saber o que estava vendo e então, peguei com cuidado um tsuru dobrado num papel estranho.

– Eu dobrei esse quando saí do seu apartamento e desejei ser um homem digno de você. Cada dia que passei longe, fiz um para lembrar que eu podia ser melhor, se tentasse. Estão guardados na mala perto da porta. São dois anos, sete meses e quatro dias.

Sem esperar, ele pegou um guardanapo da mesa e dobrou um tsuru. Eu senti um bolo na garganta e olhei para o lado, tentando segurar as lágrimas. Péssima hora para ser gay.

Quando terminou, me entregou com um sorriso tímido.

– Este é o último. Mil tsurus para dizer que eu não tenho muito dinheiro e larguei a profissão. Estou vivendo de poesias e letras de músicas que faço e vendo, além de tocar guitarra em alguns bares. Eu não tenho nada para te oferecer de material e não posso dizer que sou um sucesso. – ele hesitou e eu vi um brilho diferente no olhar dele. – Pedi a eles que contassem a você que abandonei todas as coisas que estavam me deixando conformado, me forcei a reconhecer cada um dos meus erros e admitir que fui a causa da nossa infelicidade. Eu admito que fui fraco e covarde, e deixei que outras pessoas escrevessem nossa história, e me arrependo disso. – ele mordeu o lábio e encolheu os ombros – Mil tsurus, Uruha, para contarem a você que ainda te amo... que bastou te rever duas vezes para saber que eu nunca deixei de te amar e que fui um idiota por te perder por tão pouco... – a voz dele baixou tanto que eu mal pude ouvi-lo – Eu aceito qualquer coisa... ainda posso entrar?

Eu olhei os tsurus. O primeiro estava mal feito e estranho, mas o último estava perfeito. Como os meus. A cada dia as dobras antes complicadas ficavam mais fáceis de serem feitas e logo, dava para se dobrar um sem recorrer aos vídeos e depois, ficavam perfeitos. Sabia o quanto aquilo significava. Aoi nunca se prestou a fazer nada grande ou que desse trabalho, e fez mil tsurus para me contarem que não se esqueceu da promessa de crescer e se responsabilizar pelos próprios atos.

E a coisa mais importante. Ele nunca disse que me amava antes.


Olhando para ele, notei as rugas mais acentuadas, os cabelos mais brancos que antes nas têmporas e um cansaço mais velho que ele. Pelo jeito, as coisas não tinham sido fáceis para ele e isso explicava o silêncio dos quatro. Encarei Reita e ele sorriu de leve, o mesmo fazendo Ruki e Kai.

Eles sabiam, o tempo todo.

Jong estava sério, parado perto de mim e Rindaman, com os olhos fixos em Aoi. De repente ele se levantou e olhou para mim. Eu o encarei, perdido.

– Eu me lembro quando fez o último. – disse, antes de se afastar.

Como se fosse combinado, eles voltaram a conversar e Jong se afastou, juntando-se aos outros. Eu olhei para Aoi e ele estava limpando uma lágrima.

– Demorei demais, não é? – me perguntou, com a voz baixa.

Kai trouxe bolo e refrigerante para ele, com um sorriso tímido e ambos comemos em silêncio. Eu não sabia o que sentir e estava com medo. Muito medo.

Eu não era mais o mesmo homem e não podia mais enfrentar as mesmas coisas. Mexi no tsuru com o dedo e encarei o homem do outro lado da mesa.

– Pode fazer algumas poesias e letras para combinar com as minhas fotos? - perguntei, soando miseravelmente apaixonado.

E rendido. E patético.

Droga!


Ele sorriu e eu também. Com cuidado, ele pegou minha mão e entrelaçou os dedos. Senti o medo se embrenhar no meu coração e resolvi ser sincero.

– Não posso sei se posso... – parei, confuso e envergonhado, me sentindo nu e vulnerável de novo.

– Entendi muitas coisas, Uruha. Eu lamento ter baseado nosso relacionamento em sexo e lamento não ter te valorizado o suficiente para te proteger. Vou entender se precisar de tempo e se isso não bastar, posso ficar do seu lado e velar seu sono.

Eu ri, sem chão.

– Aoi? Em abstinência? – perguntei, rindo.

Ele fingiu indignação, mas acabou rindo comigo.

– Não digo que vai ser fácil, porque você acende todos os meus sentidos, mas vou tentar respeitar seu tempo e seus limites. Se eu vacilar, é só me dar outro golpe. – ele explicou, tomando o refrigerante.

Não fiquei sequer corado, tive meus motivos.

– Não sei se consigo, Aoi. E falo de tudo. – eu disse, finalmente parando de resistir.

Estava doendo resistir e não adiantava fingir. Eu ainda o amava muito e agora, podia dizer que ele também, mas ainda assim, eu estava com medo.

– Estou com medo também, Uruha, mas te encontrei e não quero te perder por um motivo bobo de novo...

Olhei para ele, surpreso. Falei em voz alta ou pela primeira vez pensamos igual? Eu não sabia a resposta e li nos olhos dele o mesmo medo que estava no meu coração. Eu não sou mais um jovenzinho que tem tempo para recomeçar tudo, se algo der errado, mas eu podia ouvir meu coração batendo forte no peito, como sempre quando estava perto dele.

Aoi errou comigo, assim como muita gente ali naquela sala. Eu perdoei todo mundo e estava pronto para fazer isso com ele também. Eu queria fazer.


Queria sentir de novo aquele calor ao ser abraçado e queria ouvi-lo repetir que me amava. Eu não sabia se seria capaz de fazer sexo de novo, mas senti que não importava muito, desde que ficássemos juntos. Me peguei pensando se era forte o suficiente para isso.

Ele me encarou e eu sorri, fazendo-o sorrir também. Estávamos mais velhos, mais sofridos e muito mais experientes, e por mais louco que fosse, eu confiei no que vi no olhar dele.

Olhando para a mesa, os dois tsurus me deram a esperança que eu precisava. Eram só papel dobrado, mas eu sabia o que significavam.

Para nós dois.






Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

¹Kobachi tigelas para alimentos cozidos.
Oi, sou o Lucas. Algumas de vocês já me conhecem de antes... Bem, estou de volta ao meu posto.
Quando li esta história, peguei no pé do Seto até ele terminar. Esta história, principalmente o fim, mexeu muito comigo. Talvez porque eu tenha inspirado a parte dos tsurus.
Fui eu que dobrei mil, esperando ser perdoado...
Espero que vocês se sintam tão tocados quanto eu me senti.