Sombras escrita por Yukitsuki Shion


Capítulo 6
Capítulo VI - Surpresas


Notas iniciais do capítulo

Até que ponto as coisas realmente são o que parecem ser? Da mesma forma, quando podemos dizer que as coisas parecem ser exatamente o que são? Talvez haja mais entre duas palavras ou gestos do que possamos imaginar... Em breve entenderão o que isso significa.



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Talvez não tenha demorado tanto quanto eu esperava entre duas fases tão simples. Na primeira delas, tudo que eu precisava era pensar; na segunda, tudo que eu precisaria era agir. Entre as duas, porém, uma pergunta insistente e imbecil, que só fazia com que eu me odiasse cada vez mais enquanto tentava defender qualquer proposição. Afinal, por que amamos? Alguns dizem que fazemos isso na tentativa de nos manter completos. A essas pessoas eu responderia que não passam de fracas, tão patéticas e desprezíveis que não deveriam encontrar nada além da danação eterna. É tolice entregar seu destino na mão de qualquer outra pessoa, buscar a felicidade pelos olhos de alguém enquanto sacrifica-se por uma chance tão simplória em um mundo de erros. Basicamente, é isso que define o quanto você tem sucesso em prosseguir sozinho e decidir-se com a razão ou entregar-se de maneira indefesa e sucumbir quando o chão de vidro se partir abaixo dos seus pés.

Por outro lado, algumas pessoas dizem que amam para se tornar melhores. Essas agem como tolas a partir do momento que abrem a boca. Considerando-se alguém que nunca amou, como poderia se dizer melhor diante de um sentimento completamente novo?  Por fim, existem aquelas que dizem que amam porque amam, e amam apenas para amar. A essas eu destino algo pior que minha piedade ou o meu desprezo, mas apenas a indiferença. Partindo-se desse princípio, por que não morrer e morrer centenas de vezes apenas porque tudo morre ou porque apenas se morre no fim das contas? Não faz sentido, é algo completamente idiota. Talvez a inteligência seja algo que assuste cada ser humano desde os primeiros tempos, que então buscam maneiras de se sentirem mais protegidos diante dela através de sentimentos e laços, coisas tão imperfeitas e mal acabadas.

- Você não deveria se aproveitar da filosofia para fugir de suas decisões. Sempre foi bom em fazer isso com a maioria das pessoas, mas não comigo, Jean Pierre. – Gäelle não parecia irritado comigo; pelo contrário, parecia se divertir cada vez que eu tentava me esquivar de qualquer memória ou pensamento que me remetessem ao amor, como se isso me fizesse chegar cada vez mais perto do mesmo. Aceitei minha derrota no momento que levantei do chão de madeira do cais e limpei as mãos na calça, voltando pela rua que levava ao ancoradouro. Durante o caminho, eu não queria pensar em nada, e não posso dizer que meu desejo não fora atendido. A cada passo dado, eu me distanciava mais da realidade, voltando a uma época tão antiga que eu podia ver o mundo através de olhos gentis e inocentes. Durou pouco tempo, antes que eu pudesse assassinar aquele antigo eu e dar lugar para a nova criatura que surgiria dentro de mim, um ser humano tão frio e desprezível que talvez não merecesse o nome de humano.

[...] Minha mãe costumava dizer que a dor era a única prova de que estávamos vivos, mas nunca havia me explicado a necessidade que algumas pessoas tinham de infligir este sentimento nas outras. Talvez não houvesse resposta para isso e fosse egoísmo meu desejar algo que estivesse além da minha compreensão. O torpor ainda tomava conta do meu corpo enquanto meus olhos se forçam a fugir da escuridão. À medida que meus sentidos despertam, toda a minha pele é tomada por sensações novas, coisas que eu nunca havia experimentado antes, fosse em termos de intensidade ou de originalidade. Eu sabia que aquele tecido que neste momento cobria meu corpo era algo completamente diferente das peles e da lã de costume, bem como o ardor leve do álcool que havia limpado meus ferimentos ou das penas macias que formavam o travesseiro no qual eu estava recolhido. O perfume de romãs que a todo o momento invadia meu nariz era diferente também das rosas silvestres que inundavam nossa pequena casa na floresta, e a urgência que aquele corpo sentia de se aproximar era totalmente estranha quando comparada ao carinho e ternura com que minha mãe me abraçava nas noites frias. Eu queria saber até onde poderia ir com aquelas deduções, então mantenho meus olhos fechados e continuo sendo dominado pela letargia que até agora me manteve assim. - ... Preciso disso. – Eu ainda me lembrava daquela voz, e sabia que era o dono dela quem evitou que eu apanhasse até a morte nas mãos de alguns pajens.Por algum motivo, aquilo me fazia sentir bem, e tive que apertar os olhos com força para que não se abrissem. Nesse momento, perco completamente a noção de tempo, exatamente quando o que se torna mais importante para mim é apenas saber mais sobre aquela pessoa que eu me recusava a enxergar, pelo menos por enquanto. Quando a pele macia de sua boca encosta no meu pescoço, sou obrigado a engolir uma sensação estranha que varre todo o meu corpo, mas não consigo fazer o mesmo quando sua língua para exatamente sobre minha veia. No exato instante em que ele se afasta do meu pescoço, meus olhos estão abertos, em um azul tão profundo e silencioso que poderia calar qualquer coisa que ousasse desafiá-lo. [...]

Nesse momento me obrigo a parar e cobrir meu rosto com as mãos, tentando entender o motivo de retornar em uma lembrança que não podia me acrescentar mais nada de útil. Passei tanto tempo odiando Marc por suas atitudes e escolhas que talvez tenha me esquecido de como me odiar pelo que eu me tornei, e por tê-lo feito na maioria das vezes não escolher, mas seguir o único caminho que não lhe oferecia pedaços quebrados de sonhos e esperanças. Por mais que eu me recusasse a aceitar isso, era a pura verdade e esteve estampada diante dos meus olhos o tempo inteiro. Eu não havia sido feito de tolo, mas me permitido ser enganado. Grande parte da culpa em tudo que havia acontecido era minha, e não fazia sentido me colocar como a vítima nessa história. – Gäelle, eu... Acha mesmo que eu estou tão errado assim em odiar? – A pergunta saiu tão superficial e estúpida que o ódio nutrido em mim por mim mesmo aumentou consideravelmente. Eu havia saído da condição de predador perfeito e me consumido em fraquezas como a mais fraca das vítimas. Algumas vezes essas mudanças aconteciam tão rápido que eu não conseguia nem mesmo discernir um estado do outro, surpreendendo-me cada vez que o mundo ao redor virava de cabeça para baixo. – Está errado em omitir sua história. Se você começou a ler este momento, permita-se terminar o mesmo. – As palavras vieram como um sussurro, uma voz dentro da minha consciência, que me induzia a voltar e enfrentar talvez o que fosse a causa de toda a minha amargura: a primeira vez em que eu havia confiado em alguém.

[...] Meu rosto estava completamente sem expressão enquanto toda a sua atenção se fixava naquelas duas esferas que competiam com o céu em termos de cor e brilho. Por outro lado, eu não conseguia saber onde focar minha atenção, mas talvez os olhos verdes e vibrantes como a copa das árvores mais altas fosse o ponto ideal. Eu não saberia dizer quanto tempo se passou desde que aquele contato visual foi estabelecido entre nós dois, mas aquela conversa em silêncio foi algo realmente importante para mim. As diferenças entre nós dois eram nítidas: ele podia representar com perfeição a noite iluminada por uma lua, enquanto eu sempre seria um campo de trigo em um dia de sol; ele era um nobre e o próximo a suceder o pai nas funções do castelo, enquanto eu seria apenas mais um servo entre tantos outros no feudo. Mesmo assim, nesse momento não éramos tão diferentes assim. Estávamos completamente desarmados um diante do outro, algo tão assustador quanto excitante. Eu podia sentir minhas bochechas ruborizando-se enquanto as dele faziam o mesmo, dando à pele pálida um tom rosado e delicado, quase feminino.

Enquanto eu começava a me livrar do lençol branco, ele continuou ali, ajoelhado ao lado da cama, apenas me observando. Quando por fim eu me levantei, ele ainda estava parado, agora seguindo meus passos com os olhos, enquanto eu sentia a frieza do chão de pedra sensibilizar todo o meu corpo. Tão rápido quanto imperceptível, ele parou diante de mim e apoiou as duas mãos sobre meus ombros, sem me dizer nada. Meus lábios se abriram em busca das palavras certas, mas ele apenas negou como se não precisasse ouvir nada de mim. – Não pode ir embora, não agora. ­– Ele falou tão convicto de suas certezas que eu podia sentir uma dor permear suas palavras, como se custasse me deixar sair. – Não pertenço a este lugar, mas você é dono da vida que salvou embora não precise de mim para nada. – Rebati, com tanta certeza quanto poderia sem deixar que algum sentimento aparecesse em meu rosto, ainda inexpressivo. – Eu apenas... eu não queria que... – Esperei pelos argumentos que não vieram, quando ele simplesmente me abraçou. Mais uma vez, não precisei de palavras para entender o que estava acontecendo, mas sabia exatamente o que fazer. Algo que não dependia apenas de mim, mas necessitaria da aceitação mútua de nós dois. Saí do seu abraço e me afastei alguns passos, enquanto levantava a túnica de dormir e deixava os raios de sol iluminarem meu corpo, deixando bem visíveis as curvas e sinais de uma vida dedicada ao preparo da terra. [...]


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