Os Jogos De Annie Cresta escrita por Annie Azeite


Capítulo 4
III — Digna do Quatro


Notas iniciais do capítulo

“— Finnick! — Soa algo entre um grito e um berro de alegria. Uma jovem linda, mas um pouquinho desgrenhada (cabelos pretos despenteados, olhos verdes da cor do mar) corre em sua direção.” Katniss sobre Annie Cresta em A esperança, página 192.



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Eu fito a criatura perfeita diante do espelho. Há uma cauda feita de convincentes escamas verde-esmeralda que encontram a pele antes de chegar ao abdome. A junção parece tão natural quanto a das dobras dos dedos. Os seios estão erguidos — mesmo não usando um sutiã — e uma espécie de alga dourada cobre a área ao redor das aréolas, deixando o restante exposto. Os cabelos castanhos — embebidos em um óleo que os fazem parecer sempre molhados — caem em ondas sobre os ombros e os olhos verdes são ressaltados por uma comedida sombra cor de ouro.

Esta definitivamente não sou eu, é a sereia de que minha mãe tanto falava.

— Fiz um ótimo trabalho aqui! — Ocella aplaude a si mesma com entusiasmo.

Nunca imaginei que fosse pensar isto, mas estou digna do quatro neste momento. Depois de Finnick, as expectativas para nosso distrito subiram consideravelmente. As pessoas esperam encontrar beldades maravilhosas em nossa carruagem e isso tampouco acontece. Jamais existiu outro como ele.

— Uau. Você está linda! — Não é a voz de minha estilista desta vez.

— Obrigada, mas você teve alguma coisa a ver com isso, não foi? — pergunto intrigada. Das pessoas aqui presentes, apenas Finnick conhecia minha mãe o suficiente para ouvi-la me chamar de sereia.

— Ah! Apenas um dedinho! — Ele movimenta os olhos pela extensão do meu corpo e me sinto vulnerável com o tanto dele exposto sob seu olhar. Tento não corar, ainda assim, percebo a queimação em minhas bochechas.

— Bem, você terá que fazer um belo trabalho na avaliação para estragar a nossa busca por patrocinadores. E eu estou falando de um quatro para baixo!

— Posso me esforçar bastante, quem sabe um três? — eu brinco, enquanto me locomovo desajeitada para fora do elevador, com os movimentos restritos devido à cauda apertada.

Finnick dá uma risada sem interesse e desvia o nosso caminho para direção oposto da nossa carruagem, onde se encontra uma mulher de pele pálida e profundas olheiras escuras. Ela afasta o cabelo desgrenhado do rosto enquanto vomita próximo aos pés. Pela quantidade de restos de alimento na poça à sua volta, acredito que essa não tenha sido a primeira vez do dia.

— Karen, você está bem? — pergunta Finnick preocupado.

A mulher limpa o canto da boca com o dorso da mão e exibe o sorriso repulsivo de dentes amarelos com ranhuras castanhas.

— Finnick, querido! — cumprimenta, deslizando os dedos encardidos sobre a bochecha de meu mentor. Em seguida, se vira para mim — Olá, garota! É um prazer!

— Esta é a mentora do distrito Seis, Annie — explica Finn de forma sucinta antes de retomar a postura séria — Agora me diga, Karen. Quanto você usou hoje?

A mentora gargalha de forma histérica, embora não pareça se divertir. Ela se debruça em nossa direção e Finnick precisa segurá-la pelo tronco para não cair. Suavemente, ele descansa a mulher desacordada sobre o assoalho.

— O que houve com ela? — pergunto assustada.

Finnick checa a pulsação em seu pescoço e, em seguida, levanta uma das pálpebras com os dedos.

— Morfina — responde sem desviar o foco. — Está vendo os olhos?

Reparo mais atentamente em sua pupila, tão miúda que se resume a um pontinho negro no centro da íris esverdeada. Nunca havia visto olhos assim antes. Um liquido viscoso que acredito ser mais vômito começa a escorrer por sua boca e Finnick a vira de lado para não engasgar.

— Vou procurar alguém para levá-la! Já você, Annie, precisa ir logo para a carruagem. O desfile vai começar agora.

Concordo com a cabeça e caminho o mais rápido que consigo até a concentração no meio do pátio, ainda consternada pela cena que acabei de presenciar. Subo os degraus da plataforma com a ajuda de meu companheiro de distrito que estende o braço ao perceber minha dificuldade. Posiciono-me ao lado de Noah e dou uma olhada em sua típica roupa de pescador do distrito quatro. Certo. Talvez não típica... As vestes são tão pomposas que apenas compreendo sua fantasia pela vara e rede nas mãos, o restante se resume basicamente a brilho, cetim e lantejoulas.

— Que roupa é essa? — Ele me fita confuso. — Só tinham material para metade? Onde está a parte de cima?

— Hm... Eu sou um tipo de criatura mítica ou algo assim... Metade peixe, metade humana.

Não tenho a mesma paciência de minha mãe para contar histórias, portanto, finjo não conhecê-las.

Ele solta uma bufada descrente.

— Para mim, isso é só uma desculpa para um pouco de nudez. Você vai ter mais sorte do que eu nisso. — Aponta para os enchimentos das mangas com paetês. — Uma vez uma garota desfilou completamente nua e recebeu presentes caríssimos na arena! Patrocinadores gostam mesmo de uma exibição corporal.

Dou de ombros

— Sim, eu me recordo. Distrito um. E havia umas pinturas pelo corpo, ela não estava totalmente nua — eu o corrijo.

— Tanto faz. Quem se importa?

Ninguém, ela está morta agora. Porém, não respondo.

Enquanto a carruagem cruza a avenida com as outras, nós dois acenamos e sorrimos para a excêntrica população que nos assiste. Observo nossos rostos ocuparem as telas substituindo os dos tributos inteiramente prateados — simbolizando a tecnologia — da carruagem anterior. Noah estampa um sorriso perceptivelmente forçado e eu, sem querer, desfaço o meu ao observar o grande televisor. As pedras preciosas, formando uma meia lua ao redor dos meus olhos, refletem a luz dos holofotes em vários feixes coloridos. Meus lábios — por demais vermelhos de batom — fazem minha pele parecer mais alva. Aquela sou eu mesmo? Esforço-me para me enxergar por trás da bela criatura reluzente.

O percurso chega ao fim, as carruagens estacionam no centro da Cidade Circular e desço os degraus com a mesma dificuldade que tive para subir. Minhas pernas se encontram tão unidas que perco a paciência e abro uma larga fissura no tecido de minha cauda. Isso permite um mínimo vão entre meus joelhos, me possibilitando andar novamente como uma pessoa normal.

Posiciono-me na fileira horizontal dos tributos para aguardar as palavras de incentivo do nosso presidente. Ele se debruça sobre a sacada e pigarreia antes de começar. Dejà vú? Seu discurso não é nenhuma novidade para mim. As mesmas palavras pronunciadas por Éolo Babbity e os mestres de cerimônia dos demais distritos. As mesmas de sempre, repetidas durante todas as edições dos jogos de que eu posso me recordar.

— Feliz Jogos Vorazes! — ele termina a oratória e faz sinal para que o hino comece. — Que a sorte esteja sempre ao seu favor!

A câmera alterna entre os nossos rostos ao mesmo tempo que a melodia toca. Reparo em cada um deles aparecendo no enorme televisor, me perguntando quantos deles reconhecerei amanhã. Certamente, não reconheceria o meu.

Assim que acaba o hino, nos retiramos da formação. Mags acena para que eu e Noah nos unamos a ela e caminhemos juntos para o Centro de treinamento, onde será a nossa casa até que os jogos comecem. Finnick me avista de longe e se desvencilha de uma mulher de vestido azul e cabelo lilás — com quem antes conversava — para vir até mim. Faço sinal a Mags e Noah para prosseguirem enquanto aguardo o meu mentor.

— Bem melhor assim! — Ele aponta para o rasgo em meu traje enquanto se aproxima. — Mas Ocella vai assassiná-la! Já a vi surtar por bem menos...

Eu solto uma gargalhada.

— Droga. Havia me esquecido desse contratempo... E como está Karen?

— Melhor, eu acho. Está na enfermaria.

A dama deixada de lado ainda aguarda inquieta, com os braços cruzados sobre o peito e a sola do sapato fino encontrando ritmicamente o assoalho. Pergunto-me por que ela não desiste de assistir e nos deixa conversar em paz, mas Finnick, de vez em quando, lhe devolve umas olhadelas apreensivo.

— Bem... Como premeditei, você atraiu muitos olhares hoje — ele constata, coçando o próprio queixo.

— Sério? O engraçado é que não é algo tão inusitado. Quer dizer.. Já apareceram outros peixes por aqui e hoje é apenas a metade de um! — eu brinco — Meio peixe, meio humana, certo?

— É, mas nunca apareceu uma Annie Cresta.

Eu o fito confusa.

— Não é a roupa, Annie. É você. Será que nunca vai perceber o quanto é bonita?

— E-eu... — gaguejo sem saber o que responder. — Obrigada.

Meu mentor olha mais uma vez para a mulher impaciente e eu tento atrair sua atenção.

— Vamos subir, então? — Aponto para o prédio marfim por cima do ombro. — Estou curiosa para conhecer o meu quarto desnecessariamente extravagante. As pessoas dormem em camas normais aqui ou apenas flutuam?

— Hm... — ele hesita, abaixando o olhar. — Desculpe, Annie. Infelizmente, não posso ir agora.

— Como?

— Eu realmente sinto muito. — Dá alguns passos para trás, como se planejasse me deixar discretamente. — Volto antes do jantar para elaborar as nossas estratégias, está bem?

Ele não aguarda resposta, me beija na testa e retorna para a mulher da Capital. Meus lábios se franzem em uma carranca, ainda que meu mentor esteja longe demais para me ver. Minha vida está em jogo e ainda há tempo para seus caprichos! O cúmulo da arrogância. Como ele pode me tratar assim? Será que os demais tributos orientados por ele sofreram do mesmo desleixo? Apenas espero que, na arena, não deixe de me mandar suprimentos para encontrar outras mulheres.

Outras mulheres... O pensamento me machuca, então, o afasto.

Ao longe, Finnick envolve a dama com um dos braços enquanto caminha ao seu lado e me fita por cima dos ombros. Franze as sobrancelhas em desgosto e, finalmente, tem a decência de virar o rosto. Eu o ignoro e subo sozinha no elevador de cristal, apertando intuitivamente o quarto andar. Meu único desejo agora é sair daqui.

No corredor, encontro Éolo Babity, o meu acompanhante na Capital, e penso em perguntá-lo sobre meus aposentos, afinal, a sua função é me auxiliar. O homenzinho excêntrico, no entanto, acelera a caminhada como se preferisse me evitar.

— Ei! Espera!

Ele interrompe o percurso contrariado.

— Srta. Cresta — cumprimenta hesitante, esticando o pescoço para olhar atrás de mim. — A senhorita está sozinha?

— Sozinha e perdida... — Mantenho o tom cordial. — Seria muito gentil da sua parte me ajudar a encontrar meu quarto.

— Oh! Desculpe, eu estou... atrasado no momento. Peça a um dos empregados no hall comum.

Ele balança a cabeça, chacoalhando as penas do chapéu laranja na despedida mais esquisita que já vi e retoma seu compromisso aparentemente urgente. Será que ninguém pode me ajudar neste lugar? Continuo seguindo pelo corredor em que entrei e me deparo com um homem jovem e imóvel usando uma túnica branca. Parece ser um funcionário, eu penso comigo. Arrisco-me a perguntar novamente sobre os aposentos do meu distrito e, em resposta, ele aponta para o chão.

— No andar de baixo? — tento decifrar seu gesto, um pouco impaciente devido ao incidente com meu mentor e descaso de minha escolta.

Ele balança a cabeça em negação e eu percebo se tratar de um Avox. Jamais tinha visto um de verdade e, estranhamente, este parece alguém comum. O rapaz faz sinal para que o siga e me leva até um pequeno hall circular com algumas portas. No centro, há uma insígnia da Capital com o desenho de um anzol, dois peixes e um número quatro.

— Ah! Você queria dizer neste andar! — Sinto-me estúpida por não ter entendido. — Obrigada!

Ele desvia os olhos para o chão e nega novamente com a cabeça. Provavelmente, não está acostumado com esse tipo de tratamento. Avoxes são criminosos da Capital que têm as línguas mutiladas e trabalham como escravos, educação não é algo comum em seu cotidiano.

— Sinto muito — me desculpo, dando mais uma olhada nele. Tem o rosto inocente, as feições delicadas e submissão nos olhos... Não faço ideia de que crime ele possa ter cometido.

— Não se deve falar com um Avox a não ser que seja uma ordem — Mags me orienta calmamente e toca o ombro do rapaz para que se retire.

— Ah. Eu não...

— Não se preocupe com isso, querida, só não faça de novo.

Eu concordo com um aceno.

— Vejo que encontrou o seu quarto sozinha.

Ela destranca a fechadura e empurra a porta de metal. Entro logo depois de Mags, observando meu aposento que faz o elegante Edifício da Justiça parecer um banheiro sujo. Cada parede revestida de vermelho e emoldurada por cortinas de cetim, o piso coberto por carpete de pele de carneiro ou algum outro animal. Há candelabros de luzes artificiais esculpidos em bronze e uma cama de casal apenas para mim ao lado do painel de botões luminosos com inimagináveis funções.

— Você deve estar cansada — Mags reconhece e exibe as gengivas desdentadas, não precisando de dentes para um sorriso autêntico. — Pode descansar um pouco, minha querida. Você vai precisar...

Descansar? É um pedido muito pretensioso, quase utópico, dada a minha situação atual. Porém, não vejo por que argumentar com minha mentora e apenas retribuo o sorriso.

— Apareça depois para o jantar, está bem?

Mags sai pela porta vultuosa e, após a batida da maçaneta, fica tudo silencioso. Estranhamente silencioso... Não existe chiado do mar, ronco do motor de embarcações ou o som das ondas se chocando contras as rochas. Há somente o sibilo do ar aquecido contra as grades da ventilação e o tic-tac do relógio antigo de mogno.

Não estou em casa... e é difícil me acostumar com isso. Não sei se é a solidão ou a saudade o que mais me incomoda. A sensação de estranheza não vai embora e as coisas nunca parecem seguir um rumo sensato... É claro, eu tenho mais do que motivos o suficiente para pensar assim. Matar é errado, morrer aos dezessete anos também. Porém, uma parte de mim acredita que o motivo de minha inquietação seja apenas Finnick:

Em outro lugar... Com outra pessoa...

Não comigo.


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Notas finais do capítulo

" Por causa de sua juventude, não puderam de fato tocar nele pelos dois primeiros anos. Mas, logo depois que completou dezesseis, passava o seu tempo nos Jogos perseguido por pessoas que estavam desesperadamente apaixonadas" Katniss sobre Finnick Odair, em "Em chamas". Página 223.

Vocês sabiam que avox vem da palavra "vox" em latim ? Significa " voz" e acrescida do prefixo de negação "a" significa " sem voz". Irado ne? Suzanne muito diva.
— Azeite.



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