Os Jogos De Annie Cresta escrita por Annie Azeite


Capítulo 12
XI — Carreiristas


Notas iniciais do capítulo

Não se esqueçam de ler as notas finais! Acho que a descrição da arena ficou parecendo um livro de geografia, mas eu gostava de botânica na escola, não me julguem HAHAH
xilema, esclerenquima, parenquima amilífero, um beijo.



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Os tiros de canhão anunciam o fim das lutas na Cornucópia — são dez deles no total — e não há mais movimento na arena. Estou sentada ao lado do garoto que, sem muito orgulho, abati. Parece sereno, tranquilo, como se apenas dormisse. O medo não o incomoda mais. Acaricio seus cachos dourados, poluindo-os de vermelho ao meu toque, e tento guardar seu rosto em minha memória. Minha primeira vítima, eu penso, e espero que a última. Afasto uma lágrima com a mão suja de sangue e o cheiro de ferrugem adentra minhas narinas.

— Ainda vai usá-la? — Sou surpreendida pelo tributo do um cujo nome me escapa da memória. Ele aponta para a espada fincada no solo junto a meu tornozelo. — Posso dar outra arma no lugar.

— Pode pegar. — Dou de ombros. — Não precisa dar nada em troca.

Não deixo de observar que ele já possui uma espada em suas mãos. É curta, de dois gumes e com empunhadura dourada igual à minha. Percebo se tratar de um gládio, gêmeo do que eu tinha em posse.

— Eu uso duas — explica ao ver minha confusão.

Ele aguarda alguma reação da minha parte — uma pergunta talvez —, porém continuo quieta. Realmente, não me importa a forma com que ele mata as pessoas, mas minha indiferença não o constrange.

— Levei essa facada aqui — aponta para a mancha vermelha da camisa —, porque não estou acostumado a uma espada só. O estilo é diferente, sabe? A guarda mais aberta...

Acredito que ele se justifique mais à audiência do que propriamente a mim. Ainda assim, aceno a cabeça em afirmação.

Nós dois nos distanciamos da pilha de corpos para que sejam recolhidos e nos reunimos aos outros da aliança. Todos aglomeram os suprimentos em silêncio, numa enorme pilha ao lado da Cornucópia. Poderíamos sobreviver meses na arena com toda a comida. Obviamente, torço para que os jogos não durem tanto tempo assim e, de qualquer forma, os idealizadores sempre dão um jeito de adiantar o final.

Acabado o serviço, impeço o fluxo de sangue do machucado em meu ombro com algumas bandagens. Ninguém mais se encontra ferido — desconsiderando hematomas e arranhões superficiais — e somente eu e o garoto do um temos feridas significantes. Ainda não houve baixas no bando dos Carreiristas, logo, estamos em seis: todos do um, dois e quatro. Não faço ideia de quem sobreviveu no resto da arena — a maioria dos mortos no chão é irreconhecível —, no entanto, saberei quando seus rostos aparecerem no céu.

O sol começa a afundar no horizonte laranja e o frio chega com o crepúsculo. O dia passou bem rápido e foi menos produtivo do que costuma ser para o cotidiano carreirista, já que todos necessitavam descansar depois da abertura sangrenta dos jogos. Como não precisamos no esconder do resto dos tributos, acendemos uma fogueira com troncos ressecados e montamos o acampamento próximo à Cornucópia.

— Distrito quatro, venha aqui — Bagiot chama. Sei que fala comigo, pois seus olhos pousam em mim. Mais cedo, ela orientou que não a chamássemos pelo nome para evitar o envolvimento emocional. Não vejo como um nome pode trazer afeição, principalmente a alguém como ela, mas obviamente não contrariei.

— Nós temos de buscar água lá em cima. — Aponta para a barragem elevada. — Não tem outra fonte por perto.

Ela me entrega uma mochila com alguns cantis e eu apoio uma das alças em meu ombro bom. Tento escalar a superfície ingrime, agarrando as pedras com dificuldade, mas minha ferida lateja a cada movimento. A luva acolchoada facilitaria o processo se minhas palmas não estivessem cortadas.

— Acho que não vou conseguir — admito. — Melhor chamar outra pessoa para acompanhá-la.

Bagiot somente franze os lábios, joga o rabo-de-cavalo loiro para o lado e continua a subir. Sendo orgulhosa demais para desistir, eu a sigo. Solto alguns grunhidos toda vez que elevo o braço acima da cabeça, mas logo alcanço o topo e me empoleiro na margem rochosa. Daqui, tenho uma visão mais ampla da arena: é vasta e plana. As árvores são baixas, tortuosas, com ramificações irregulares e retorcidas. Os arbustos estão espalhados por todo o terreno e, ainda assim, as opções de abrigo são escassas. Os Jogos não devem ser demorados este ano.

Enchemos os cantis e içamos as mochilas com a corda. Aproveito a água para lavar as mãos, esfregando o sangue coagulado entre os nós dos dedos. Bagiot e eu tracionamos lentamente as mochilas para baixo e, em seguida, descemos para nos unir aos outros.

— Vamos sair para caçar quando estiver completamente escuro — Taurus anuncia quando retornamos.

Caçar pessoas, eu penso. Encolho os ombros com a ideia.

— Ótimo — concorda Gretel ansiosa —, mas quem vai ficar de guarda?

Temos somente cinco óculos de visão noturna e alguém precisa vigiar os suprimentos, logo, eu me ofereço para ficar no acampamento. Desejo me dar uma folga de mortes, uma vez que já vi o suficiente por hoje. Todos concordam e seguem sua missão.

Durante minha vigia, organizo os instrumentos de batalha deixados de lado. Resumem-se a algumas facas, lanças, uma clava e... algo que me chama atenção: dois machados pequenos. Deslizo a mão sobre o metal delgado de um deles. É leve e fácil de manusear, um terço do machado duplo de Gretel e com apenas uma lâmina curva. Fico tentada a apanhá-lo, porém a ideia de atravessar carne humana com ele me abomina. Deposito-o novamente sobre a pilha.

Aconchego-me ao saco de dormir e apago o fogo. O aerodeslizador surge no céu, dando início ao hino de Panem. Observo as baixas do dia aparecerem em sequência e aguardo pelo rosto do menino loiro que matei. Distrito nove, constato por fim, sem ainda saber o seu nome. Desejo poder me desculpar com a família de alguma forma, mas não imagino como.

O hino termina e o céu fica escuro novamente, exceto pela lua que se mantém brilhante e imponente. Permaneço atenta a qualquer sinal de inimigos, ainda que esteja totalmente vulnerável no saco de dormir. Mantenho uma faca ao alcance, pressionando o cabo de borracha contra o meu peito como se isso pudesse me ajudar. Ouço o estrondo do canhão e, posteriormente, o silêncio: o pior dos meus problemas. A mente tenta preencher o vazio e os pensamentos me perturbam. Mortes alheias, todas as formas de meus possíveis fins, a decepção de quem me espera lá fora...

Por um longo tempo, tudo o que faço é tomar pequenos goles do meu odre e observar um lagarto rastejar pelas folhas coriáceas de um arbusto, quando, de repente, um vulto brilhante desperta a minha atenção. O paraquedas prateado cai devagar do céu, pousando perto de onde estou deitada. Deslizo para fora do saco e me aproximo da dádiva. Não há mais ninguém presente, logo, presumo que seja para mim. Abro o cilindro metálico e os três cubos de açúcar que encontro confirmam minha suspeita. Finnick, penso imediatamente. Esta é a sua forma de mostrar que está ajudando e me lembrar de que não estou sozinha. Aperto o meu totem contra o peito e sussurro um “Obrigada” quase inaudível. Não avisto nenhuma câmera, mas sei que, de algum lugar, ele pode me ver.

Dentro do compartimento, há também um tubo do que parece ser pomada. Comprimo a embalagem e espalho o conteúdo sobre minha clavícula e ombro. O efeito é instantâneo, anestesiando a ferida e deixando uma agradável sensação de formigamento onde antes havia a dor. Isso deve ter custado bem caro, Finnick não estava blefando quanto aos meus patrocinadores. Guardo o restante da pomada e os torrões em meu bolso, dando uma última conferida ao redor antes de retornar. Esgueiro-me novamente para o saco de dormir e quase cochilo algumas vezes. Como posso tentar dormir aqui? Sobressalto-me com o farfalhar de uns arbustos e aponto minha faca para a ameaça.

Uma silhueta — que depois identifico como Bagiot — é iluminada pela penumbra. Os outros surgem a seguir, a exaustão visível em seus semblantes cansados e andares arrastados. O garoto do um manca e comprime a ferida do abdome com uma das mãos. Ainda não cicatrizou e a mancha de sangue da camisa parece maior. Ele não estava curado para sair por ai caçando tributos e a correria, provavelmente, piorou o quadro. Cogito a possibilidade de dividir meu remédio, mesmo que pareça estúpido. Novamente, me deparo com o dilema de que todas essas pessoas terão de morrer para que eu sobreviva... Por que eu não consigo simplesmente aceitar? Ele é só mais um carreirista que treinou a vida inteira para fazer parte disto: matar pessoas em troca de fama e dinheiro.

O garoto se senta com dificuldade e estica as mãos para a fogueira reacendida. A gravidade de seu ferimento é evidente tanto no rosto retorcido como no sangue escuro da camisa. Imagino quantos poucos dias ele terá até sucumbir à infecção... Tudo que eu posso sentir se resume a pena. Droga. Eu sou mole como pudim.

— Passe isso aqui. — Entrego o tubo para o garoto. — Alivia bastante.

Ele franze o cenho, movendo os olhos de mim para a embalagem em suas mãos.

— É para a ferida — explico —, foi uma dádiva.

— Ah! — Ele massageia o machucado com o bálsamo. — Obrigado, Quatro.

— Seus patrocinadores não perdem tempo, não é? Queria ser tão popular quanto você, garota. — Gretel se aproxima, me dando um tapinha no ombro. — Até pensei em namorar meu mentor também, sabe? Mas ela não pareceu se interessar pelo meu tipo.

Eu percebo a inveja em seu tom de voz. Pela primeira vez, me sinto melhor do que os outros em alguma coisa. Melhor do que Gretel. É surpreendentemente boa a sensação de ser invejada. Exibir minha dádiva foi a melhor decisão que eu poderia tomar.

— Que pena! — lamento sarcasticamente. — Talvez eu lhe ensine alguns truques depois.

Trocamos sorrisos forçados e não nos falamos depois disso. Pelo resto do dia, o bando apenas queima alguns galhos secos e assa espigas de milho. Espio a imagem de Gretel e Taurus por trás das chamas trepidantes e, aparentemente, os dois riem de algo engraçado que ela disse anteriormente. Posso jurar que, pela forma como ele a observa, está fisicamente atraído, o que não seria muito difícil devido à beleza da garota. Os cabelos escuros bem curtos formam um "V" de trás pra frente e a franja lateral recobre parcialmente seus olhos cor de âmbar.

Ela chacoalha, entusiasmada, um saco de confeitos de gelatina que encontrou na pilha de suprimentos e os oferece para o resto de nós. Eu me arrisco a provar alguns: são macios e desmancham na boca, muito mais gostosos do que as balas de alga do distrito quatro. Mais gostosos do que tudo que eu já comi. Neste exato momento, em alguma parte da arena, os nossos competidores provavelmente comem qualquer coisa que não os mate do chão — como a carne crua de algum animal morto — enquanto fazemos um círculo ao redor do fogo e nos entupimos de doces. É contraditório, chega a ser injusto, mas não há nada que eu possa fazer para ajudá-los. Os jogos da fome não são para todos e quanto mais tributos morrerem de fome, menos teremos que matar.

Consternada, tento desviar o pensamento sórdido que acabo de ter. Retiro um dos torrões de açúcar do meu bolso e o deslizo entre meus dedos. Não quero mais pensar na arena. Estou absorta de tudo, concentrada exclusivamente no confeito cúbico em minhas mãos. Desejo que esse pesadelo termine para que eu retome minha vida e finja que nada disso aconteceu.

— Sinto sua falta, Finn — murmuro para o nada, tão baixo que nenhum dos meus aliados pode ouvir.

Seria tão mais fácil se Finnick estivesse ao meu lado. Se ele pudesse me proteger. Almejo agora, mais do que nunca, sua companhia confortadora, a segurança de seus braços... O medo é um sentimento necessário, essencial para a sobrevivência, entretanto, incômodo de se conviver.


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Notas finais do capítulo

HAHAHHAA O link nos confeitos de gelatina é zoeira. Eles não estão comendo balas FINI na arena. ahha

"Jogos vorazes" sofreu muita influência romana e do coliseu. Alguns estilos de luta são baseados em gladiadores, como é o caso do Finnick que utiliza rede e tridente como os reciários.
O garoto do distrito 1 usa dois gladios ( espadas romanas ) como os dimaqueros.
E ai, carreiristas? O que acharam do capitulo?
— Azeite.



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