Remexeu-se mais uma vez na cama, enterrando o rosto no travesseiro e levantando-o novamente frustada quando notou que estava começando a se sufocar. Voltou a fitar o teto enquanto as lembranças atacavam-a.

(Flashback on)

Agora tinha doze anos. Seus cabelos negros cortados acima dos ombros, olhos prateados abatidos, mas sem derramar uma lagrima, pele ainda mais pálida. Estava sentada na cadeira em frente à diretora do orfanato, de cabeça baixa e tamborilando na própria perna, impaciente.

 Então finalmente a diretora entrou na sala e sentou-se na cadeira do outro lado da mesa repleta de papeis espalhados. A diretora era uma mulher idosa, enrugada, cabelos dourados envelhecidos e pequenos olhos castanhos. Era uma boa pessoa quando queria, mas também podia ser seu pior pesadelo. 

 -Sabe por que está aqui, não é? - Perguntou a mulher.

 -Não senhora. - Tentou de todas as formas evitar que isto saísse num sussuro.

 A mulher suspirou, impaciente.

 -Olha... Eu sei que não quer entregar seu irmão... - A garota levantou o olhar.

 -Perdão? - A mulher a olhou. - O que meu irmão fez?

 -Por favor, não minta. Sei que você sabe o que ele fez.

 -Eu não sei, senhora. Juro. - Sua voz saiu sincera, a mulher apiedou-se.

 -Ele fugiu.

 A garota arregalou os olhos. Ele fugiu sem ela? As promessas de que ficariam juntos para sempre, que ele não deixaria nada machuca-la, eram falsas? Não, não. Ele não a abandonaria naquele lugar! Ele não a abandonaria em lugar nenhum! Iria voltar para busca-la, claro que ia!

  Mas... Se a tivesse abandonado, o que ela iria fazer? Não poderia ficar ali. Não queria ficar ali, naquele lugar onde era alvo de pena, onde era desprezada por todos e por tudo. Todos, é claro, exceto por duas pessoas: Sofia, sua melhor e unica amiga, e Lucien, seu namorado.

  Sofia era dois anos mais velha que Annie e gostava de assustar as pessoas e pregar peças, tinha cabelos castanho-claros e olhos verdes. Ela e Annie dividiam o quarto junto com mais duas garotas e se conheceram assim que Annie chegou. Já Lucien era três anos mais velho e era um dos garotos mais bonitos do orfanato. Cabelos dourados, olhos azuis, pele levemente bronzeada, o sonho de consumo de todas as garotas dali. Annie não sabia por que ele foi se interessar logo por ela, uma menina sem-graça e estranha, mas sempre recebia a mesma resposta: "Por que eu me apaixonei por você".

  -Sharon? - Chamou a mulher, interrompendo seus pensamentos.

  -Ah... Sim? - Tentava não chorar.

  -Eu perguntei se você sabe de algo a respeito dessa fuga.

  -Não senhora.

  -Certo, certo. - Suspirou. - Pode ir.

  Annie saiu da sala e foi a procura de Lucien, precisava da opinião dele sobre o que fazer. Não o encontrou em lugar algum. Por fim, decidiu procurar Sofia. Nada. Frustada, decidiu aprofundar sua procura. Não estavam no refeitório, nem no jardim da frente, nem na cozinha. Decidiu olhar nos fundos do orfanato, mesmo sabendo que aquele seria o último lugar que alguém iria. Pensamento errado.

  No meio da folhagem viu os cabelos dourados de Lucien. Decidida a dar-lhe um susto, cuidadosamente aproximou-se. Abafou um grito colocando a mão na boca. Lucien estava com a camisa desabotoada, sentado no chão com as pernas cruzadas, o cabelo dourado sendo agarrado por delicadas mãos com unhas pintadas de preto. Sentada no seu colo, ofegando e esfregando-se nele, apenas com a roupa intima superior e uma saia negra que ia até metade da coxa, estava Sofia. Os olhos de ambos estavam fechados, eles se beijavam com ardor como se dependessem daquilo.

 Annie não entendia. Ele nunca a beijara assim antes, nunca tocara-a daquela forma antes. Por que ela estava praticamente nua? Por que ele estava beijando outra garota? Por que todos a haviam traído?

 As lágrimas já haviam caído fazia tempo. Com a voz rouca, mostrou sua presença ali.

 -Lucien?

 Eles a olharam.

 -Por que...? - Ela olhava fixamente para ele. Ele não respondeu.

 -Tá brincando, né? - Riu a garota. - Se enxerga, pirralha, você ainda não entendeu? Você era apenas um brinquedo para ele. Nós riamos muito da sua cara de boba apaixonada!

 Não ficou para ouvir mais. Saiu correndo, deixando os dois sozinhos.

 -Não precisava pegar tão pesado com ela. - Ouviu ele dizer.

 -Ela precisava enxergar o lugar dela nessa droga.

 Trancou-se no quarto e abriu sua mochila de urso de pelucia. Tirou de lá a capa negra de Alice, que havia pego como lembrança, e vestiu-a, em seguida colocando a mochila nas costas e saindo. Ficou escondida até o anoitecer e, quando todos foram dormir, pulou o muro e fugiu"

  (Flashback Off)

 Markus... Onde estava ele?

 Será que estava bem? Não, provavelmente havia sido morto. Um semideus dificilmente sobreviveria fora do acampamento, ainda mais um filho dos três grandes.

 Mas e se estivesse vivo, onde estaria? Será que ele havia ido busca-la no orfanato?

 Dificilmente teria ido busca-la. Mas eles prometeram, não é? E se dependesse dela, ao menos um cumpriria esta promessa. Se ele estiver vivo, irá protege-lo indo nesta missão e completando-a. Se ele estiver morto... Bem, aí não poderá fazer nada. Mas de uma forma ou de outra, dedicaria seu sucesso à ele.

 Levantou-se da cama, indo até o banheiro e jogando água no rosto. Seria forte por ele.