Nameless escrita por Guardian


Capítulo 18
Confiar


Notas iniciais do capítulo

Antes do capítulo só queria agradecer a quem ainda continua aqui comigo, com o Mello e o Matt ♥



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 Estava se sentindo nervoso.

 ...

 Nervoso? Estava?

 Não... Talvez o mais correto fosse dizer que estava levemente ansioso. Isso, ansioso era melhor.

 Afinal, em dois meses, este era o primeiro serviço que fazia, o primeiro desde aquele maldito baile de máscaras, desde a mulher que ainda não sabia quem era. Procurou por ela – como procurou! – e nada. Era como se antes de, por sabe-se lá que motivo, ter ido parar na preciosa lista de Klaus, ela simplesmente não existisse. 

 E por falar em Klaus, grande parte da culpa de ter ficado todo esse tempo fora de ação era dele. Não sabia se o mais velho estava tentando dar-lhe algum tempo, como se isso de alguma forma pudesse compensar pela droga do seu silêncio, ou se realmente não havia ninguém importante na “lista de espera”, mas o homem havia praticamente sumido nas últimas semanas. A única vez que Mello tentou entrar em contato com ele, e nem por vontade própria, não foi atendido.

 De qualquer forma, era hora de voltar à ativa.

 O loiro estava displicentemente encostado em um banco do parque, para todos os efeitos apenas observando a crescente diminuição de movimento; com as crianças sendo persuadidas a voltar para casa, trabalhadores de todo tipo cortando caminho na esperança de fugir da confusão do horário de rush, e casais preparando-se para continuar seus encontros em algum lugar mais privado. Mello, obviamente, não enxergava nada disso.

 No lugar das crianças, enxergava um problema a menos para ficar em seu caminho quando precisasse agir. Ao invés dos trabalhadores, tudo o que via era pessoas estúpidas que eram ignorantes do mundo real ao seu redor, de suas sombras e monstros. E onde estavam os casais... Bem, procurava controlar bem seus pensamentos quanto a eles, manter a distração longe.

 Sua figura, também, era curiosamente pouco notada. Em meio ao mar de verde e marrom, das gramíneas e folhas secas tão típicas do outono, deveria ser impossível não prestar atenção no homem de sobretudo preto em contraste com os cabelos compridos e claros parado em meio às cores “secas”. E o que ele estava fazendo naquele lugar, para início de conversa? Ótima pergunta. Uma pergunta tão boa, que nem ele mesmo sabia com certeza a resposta.

 O alvo iria passar por ali? O local mais apropriado para executar o serviço seria aquele?  Não sabia. E ainda assim ali estava ele. Merda, por que tinha resolvido ouvir Klaus mesmo?! “Aguarde perto do lago. Na hora você entenderá”. Estava se sentindo imensamente estúpido agora, simplesmente ótimo.

 Passos esmagando e estalando as folhas mortas fizeram-no retesar automaticamente o corpo e aguçar todos os seus sentidos, à espera. Seria o alvo? Daniel Louit estaria vindo em sua direção adiantando seu futuro certo?

 Mudou a posição do corpo, de modo que para qualquer um que olhasse parecesse apenas mudar o peso de perna, e discretamente, oculto pelas lentes escuras de seus óculos, olhou na direção do som. Teve que controlar cada músculo de seu braço para impedi-lo de alcançar a arma escondida pelo sobretudo, quando viu a pessoa que se aproximava.

 - Mas que porra... – começou, mas sua garganta fechou com a fúria súbita. Observou dividido entre o desejo assassino e a confusão, os cabelos escuros balançando ao ritmo do vento conforme o homem andava em sua direção, e focou bem fundo nos acinzentados olhos de Klaus. Se ficou incomodado, ou mesmo temeroso, com a intensidade com que era encarado, o mais velho não demonstrou.

 Se não tivesse ainda algumas pessoas transitando por ali – testemunhas – sem dúvida Mello não teria se resignado a ficar imóvel como ficou. Sua cintura parecia coçar para se ver livre do revólver e suas mãos pediam para apertar o gatilho. Não mataria, obviamente; o homem o havia criado, afinal de contas. Acertaria apenas um braço... Talvez uma perna... Nada do que ele fosse precisar no futuro.

 - Não precisa me olhar desse jeito – o sorriso mínimo do moreno não tinha a intenção de provocar o loiro, mas foi exatamente esse o efeito que teve.  Tanto que Mello sequer reparou que havia algo de diferente naquele sorriso que era praticamente uma marca do homem, sempre ali, sempre natural em seu rosto. E agora, estranhamente deslocado.

 - Olhar não é exatamente o que quero – Mello respondeu perigosamente baixo, denso. E agora com um mínimo de controle sobre si, mínimo mesmo, repetiu – Que porra é essa?

 - Como assim?

 “Como...”

 Mello respirou fundo, buscando por qualquer fonte de controle desconhecida dentro de si, e inacreditavelmente, encontrou. Seus olhos focalizaram a árvore mais próxima de onde estava e aquela cor viva ainda predominante, contrariando a estação, o manteve no lugar.

 ...

 A impressão que tinha era a de que aquela cor iria persegui-lo até o fim de seus dias...

 - Eu queria confirmar algo – Klaus disse sem nenhum traço de graça, e pela primeira vez Mello notou algo nele que não soube identificar o que era – E fico feliz por estar certo. Aliviado, mesmo.

 - E o que seria esse “algo”?

 - Você ainda confia em mim.

 Aquelas palavras pegaram Mello de guarda baixa, e ele não conseguiu pensar de imediato em uma resposta ácida para dar. Quando conseguiu, não saiu nem com metade do efeito que pretendia inicialmente.

 - Enlouqueceu?

 Mas Klaus sorriu novamente, e novamente qualquer estranheza naquele simples gesto passou despercebida – Você está aqui.

 E quanto a isso não havia rebate. Estava mesmo ali, não estava? Mesmo sem noção do que deveria fazer, do motivo daquela instrução tão estranha, tinha ido até o lugar estipulado e esperado. Tinha confiado nas palavras de Klaus. Por quê?

 E com essas duas curtas palavras ecoando em sua mente, ele desencostou finalmente do banco e já se preparava para sair andando sem encontrar a resposta, mas foi impedido pelo outro.

 - O que está fazendo?

 - Já fez sua brincadeira. Estou indo embora.

 - E o trabalho? – Klaus ergueu uma sobrancelha, satisfeito por fazer o loiro voltar a olhar para ele, mesmo que o fizesse com uma de suas mais irônicas expressões.

 - Agora vai dizer que realmente tem um trabalho?

 - É lógico que tem um trabalho.

~*~

 A fachada da casa era nova, impecável demais para qualquer um na primeira olhada poder dizer que a onda de reformas havia passado recentemente por ali. A contragosto, Mello fez o que lhe foi pedido e ficou apenas observando enquanto o mais velho tomava a dianteira, indo despreocupadamente com ares de familiaridade à soleira bem cuidada e tocando a campainha. Não demorou muito para ser atendido.

 Mello reconheceu de imediato o homem das fichas de arquivo: Daniel Louit. Sua aparência não era o que as pessoas poderiam chamar de “notável”, na verdade, o único aspecto que chamava a atenção em seu rosto era uma comprida mancha negra atravessando sua bochecha direita, como uma pinta que ao crescer demais acabou perdendo sua forma original. Mesmo os olhos, de tom castanho semelhante aos seus cabelos, lhe davam um ar de distância e vagueza. Mas Mello não se deixava levar por esse tipo de aparência, então tratou de prestar muita atenção no homem; era um erro de amador confiar cegamente no que os olhos mostram superficialmente.

 O homem cumprimentou Klaus com grande animação e surpresa ainda maior, o que causou estranheza ao loiro. Como assim, Klaus conhecia pessoalmente o alvo? Seria a primeira vez que isso acontecia? Que espécie de relação eles teriam? Nenhum dos dois agia como se fossem antigos colegas de escola ou como ocasionais parceiros de pôquer, parecia mais como se...

 Mello aproveitou o momento de distração do dono da casa para se aproximar devagar do contorno do imóvel, procurando por uma chance de entrar. Qualquer pequeno barulho que provocasse seria encoberto por Klaus, então arriscou uma das janelas sem se preocupar muito. Não estava travada. Abriu-a e saltou para dentro com todo o cuidado, e por sorte o grosso tapete abafou o indesejável som que suas botas certamente fariam em contato direto com a madeira do chão.

 Viu-se no interior de um cômodo relativamente espaçoso e estranhamente vazio. Tudo o que havia ali era uma lareira apagada e um sofá de dois lugares, e toda a área que sobrava desocupada provocava uma impressão de isolamento, e talvez fosse essa mesma a sua intenção. Uma espécie de refúgio.

 E... Ele estava confuso.

 De onde estava o loiro podia ouvir perfeitamente as vozes desde a porta, deslocando-se juntas, e tudo o que podia concluir era que não fazia nenhuma merda de ideia do que passava na cabeça de Klaus. A forma como trocavam provocações e a atmosfera de proximidade entre eles passava a clara mensagem de que, não, eles não eram apenas conhecidos.

 Quando o som das vozes começou a se distanciar de onde estava, Mello verificou se era seguro sair daquele cômodo e seguiu-os. O corredor era extenso, e quase no final havia uma entrada sem porta, que ao invés de levar a outro corredor como o loiro imaginou, dava direto em um estúdio de leitura, com meia dúzia de estantes repletas de livros impressos e com três grandes e convidativas poltronas formando um semicírculo em cima de um tapete idêntico ao da sala da lareira.

 Escondido pela própria geometria da casa, Mello chegou em tempo de ouvir as palavras de Daniel Louit. E a partir daí, ouvir era tudo o que podia fazer sem arriscar ser descoberto.

 - Então, meu amigo, o que provocou essa visita repentina? – perguntou com um sorriso que só poderia ser classificado como de puro divertimento com a própria surpresa.

 - Não vai nem me oferecer uma bebida antes? – Klaus devolveu divertido, dirigindo-se sem cerimônia até uma das grandes poltronas xadrez e deixando-se cair confortavelmente nela – Estava esperando provar daquele seu uísque de novo.

 Daniel riu, e de um carrinho de dois andares totalmente abastecidos trouxe as bebidas para o centro da sala, escolhendo para si a poltrona mais próxima do moreno.

 Conversaram durante algum tempo, a maioria sobre trivialidades, como se ambos quisessem adiar o quanto desse qualquer assunto mais sério. E por mais incrível que soasse, Mello não se incomodou com aquilo. E não tinha a ver apenas com a mudança que ocorria quando estava envolvido em um serviço, únicos momentos onde conseguia controlar o temperamento de todos os dias; poderia ficar horas em silêncio, apenas aguardando uma boa oportunidade. Mas mais do que isso, ele esperou pelo mesmo motivo que ficou parado no frio do parque até Klaus aparecer. Não que ele fosse admitir isso, mas enfim.

 Finalmente, o tempo de adiar teve fim, e sem nenhuma outra escolha Daniel Louit resolveu iniciar de uma vez o que quer que tivesse trazido Klaus até ali.

 - Negócios? – uma palavra era o suficiente.

 - Sim.

 - Algum problema? – perguntou incerto, observando com atenção a expressão de Klaus. Uma mudança absoluta havia ocorrido, onde não apenas o sorriso leve do moreno foi substituído por uma expressão séria e pensativa, como também a própria atmosfera da sala tornou-se nitidamente mais densa.

 Ao invés de responder, Klaus rodou a cabeça como se analisasse com atenção pela primeira vez o que havia ao seu redor, e comentou em tom levemente nostálgico:

 - Você ainda não desistiu dessa sua luta contra as máquinas? Até o meu computador você rejeitou.

 E Mello poderia não saber disso – e assim achar aquele comentário estranho e deslocado –, mas em parte alguma da casa podia-se encontrar qualquer tipo de aparelho eletrônico; o máximo que Daniel mantinha era um telefone fixo na parede da cozinha. Nem aparelho celular ele aceitou usar.

 - Sou um deslocado no tempo e não acho que isso vá mudar assim fácil. Mas não desvie o assunto. O que aconteceu?

 Klaus suspirou, e foi um suspiro realmente pesado. Difícil.

 - Eu estou cansado, Daniel.

 - Cansado? – repetiu em tom de dúvida, procurando o olhar do amigo – Tudo já chegou tão longe, Klaus, não pode estar pensando em se deixar abater agora.

 - Eu me pergunto – Klaus começou, e com um olhar imperceptível ao lado onde sabia Mello estar escondido, concluiu mais para si mesmo do que para qualquer outro – Quando o sentido inicial disso tudo começou a se perder.

 - Você não acredita mais? – Daniel indagou surpreso.

 - Você acredita? – devolveu, e enfim deixou seu olhar encontrar os castanhos do outro, prendendo-os e observando-os à espera de qualquer sinal de hesitação. Os olhos fugiram dele.

 - Claro! Em nenhum momento deixei de acreditar – ainda não voltava a encarar o moreno, concentrado em suas mãos repousadas no colo, cena típica de quem busca encontrar as palavras certas. Ou de quem esconde algo – Quero dizer, nenhum ideal sozinho teria nos mantido até hoje, mas sem ele nunca teríamos começado também.

 - Então eu acho... Que desde o começo acreditamos em coisas diferentes.

Isso atraiu os olhos castanhos de volta para ele, e naquele tom acinzentado havia algo... Pesado. Era difícil especificar, mas dois blocos sólidos haviam sido depositados ali, mas blocos tão duros quanto quebradiços, como se uma única palavra pudesse transformá-los em pedaços disformes e irreconhecíveis. Daniel não compreendeu. Ou não quis, o que era mais provável. Tudo o que conseguiu formular foi:

 - Como? Klaus, como pode dizer algo assim?

 O silêncio. Tão denso quanto o olhar do moreno. Palpável.

 O que Klaus disse a seguir Mello não compreendeu de imediato, já que não tinha qualquer chance visual de observar o que ocorria naquele cômodo, mas sua imaginação cuidou do trabalho. Parecia que o moreno mostrava algo ao outro, pelo modo como este ofegou em pura estupefação.

 - Daniel, você deveria saber que não seria o bastante para me matar.

 Mais silêncio.

 E foi o suficiente para Mello compreender muitas coisas. Klaus não sumira durante esses dois meses por capricho ou preocupação com o loiro; ele tinha algo diferente nos sorrisos que deu desde o parque, sendo esse fato pensado apenas agora pelo mais novo; e mais do que tudo, pela primeira vez em sua “carreira” descobria o motivo que levara alguém a encontrar sua arma. E esse saber em particular lhe causou uma satisfação curiosa.

 - Klaus... – o tom ali era sofrido, e podia ser falso tanto quanto podia não ser. As outras duas pessoas da casa concluíram que era – Entenda...

 - Não há o que entender – Klaus o cortou. Não havia frieza, rancor ou dor. Apenas uma tristeza tão perceptível que calou de imediato Daniel e causou um nó estranho no peito de Mello – É simples, não é verdade? Mas você deveria ter mandado fazer o serviço direito. Ou achou realmente que se eu escapasse, não descobriria o responsável?

 - Klaus...

 - Pode vir aqui agora – disse alto de repente, ignorando qualquer tentativa do outro voltar a falar assim como o olhar confuso que o mesmo lhe lançou. Apoiou um dos cotovelos na perna e esperou.

 Daniel o encarou completamente sem entender, mas não tão confuso quanto ficou ao ver um homem surgir no estúdio pelo corredor que nunca considerou encontrar alguém.

 Perigo.

 Um alerta interno soou, o fazendo encarar aquela figura desconhecida com um temor que nem sequer entendia. Não, entendia sim; a culpa era daqueles olhos, sabia. Aqueles dois brilhantes pontos azuis recheados do mais puro e frio ódio.

 - O que isso quer dizer, Klaus? – foi tudo o que conseguiu balbuciar, erguendo-se devagar e cautelosamente da poltrona sem conseguir desviar daquela face alva e terrível.

 - Isso quer dizer... Que fiz a escolha certa em mantê-lo em segredo.

 - Quem...

 Mas o moreno voltou-se para o loiro que pela primeira vez se resignava em ficar quieto esperando por instruções. E desta vez ele aguardava, não pensando no que ele gostaria de fazer com aquele homem ou no que Klaus poderia estar escondendo de si, mas por uma força invisível que o fazia sentir um ódio tamanho ao perceber, não os olhos, mas o que a voz de seu “tutor” deixava transparecer.

 - Meu protegido – o indicou com um gesto sem dirigir mais nenhuma atenção direta ao outro homem ainda paralisado no lugar – Você conheceu a família dele.

 - O quê? – quem falou desta vez foi o próprio Mello, quebrando por um único instante sua postura impenetrável – Esse homem...

 - Não foi ele – Klaus já adiantou a resposta, adivinhando de imediato qual seria o desfecho da pergunta. Acabou repetindo, mas se para ter certeza se havia sido ouvido ou se para lembrar a si mesmo que era verdade, não sabia – Não foi ele.

 - Não fui eu... O quê? – um passo incerto para o lado.

 Klaus olhou ao redor mais uma vez, exatamente como havia feito no início de toda aquela conversa – Sua luta contra as máquinas... Uma das únicas coisas que ainda posso ter certeza quanto a você – suspirou, erguendo-se também – Obrigado, elimina a preocupação de câmeras e escutas.

 O significado daquelas palavras foi compreendido por Daniel Louit. Plenamente compreendido.

 Os olhos do homem correram por todo o cômodo de forma quase frenética, buscando uma rota de fuga, uma esperança qualquer de escapar, sua mente trabalhando a mil em cada possibilidade. Conseguiria vencer no dois contra um? Não, mesmo com Klaus ferido não era uma opção. E a partir daí o frio do outono não o atingia mais, pelo contrário, parecia sufoca-lo juntamente ao suor frio do medo que o acometia.

 - Antes eu quero ver – ouviu o rapaz loiro dizer – aquele que com certeza faria o papel de seu ceifeiro em sua própria casa – desviando minimamente o olhar de sua presa para dirigi-lo a Klaus – Mostre-me.

 A princípio o moreno não entendeu, mas foi curto o tempo para conseguir interpretar o que os olhos azuis escondiam. De certa forma, algo dentro de si quis sorrir com aquilo que tão raramente o loiro já dirigira a ele desde que se conheciam. Preocupação.

 Com movimentos pausados, Klaus abriu o único botão que mantinha seu escuro e pesado casaco fechado e ergueu quase até metade do abdômen a barra do suéter que usava por baixo. Sua pele se arrepiou com o contato direto com o ar gélido. E Louit não pôde fazer nada mais a não ser encarar com culpa e algo muito próximo ao horror a ferida que ali havia. Culpa por ter sido burro e fraco ao aceitar trair aquele que durante muito tempo chamou de amigo; e horror, porque seu destino era óbvio demais a seus olhos ao ver a transformação no semblante daquele que desconhecia ao também enquadrar aquela região.

 Mello encarou a bandagem branca com uma intensidade que poucos conseguiriam suportar. Viu e reviu a mancha de um vermelho levemente desbotado que parecia impregnada ali. Reconheceu de imediato o formato da mancha núcleo, e uma mistura de sensações começou a fervilhar dentro de si, todas elas levando à mesma direção. Claro que reconheceria aquele tipo de ferimento. Tiro.

 Agora ele entendia o sentido de Klaus testar sua “confiança”, mesmo com algo tão estúpido quanto esperar no parque. Se tivesse ido embora, ou sequer aparecido, não teria o direito de ouvir nem de ver nada, não teria o direito de sentir aquele ódio. Não teria o direito de desejar senti-lo.

 Um passo.

 Fazia o serviço sujo há anos, matava quem era dito que deveria morrer, e arrependimento nunca foi um visitante regular seu, assim como a satisfação. Desta vez seria diferente, sentia isso. De uma forma ou de outra sabia que matar esse homem seria diferente de matar qualquer outro, que lhe traria algo que até o momento desejou, mas nunca chegou a realizar. Vingança. Não por quem sempre esperou que fosse, mas por um dos poucos que seria capaz de buscar.

 Outro passo.

 O homem perguntara qual era o problema. Ele tentou se explicar. Ostentou uma expressão de culpa ao encarar o ferimento pelo qual ele mesmo havia sido responsável. Daniel Louit era um hipócrita, e iria morrer com essa hipocrisia estampada no rosto amedrontado.

 Mais um.

 Uma bala não seria o bastante, não desta vez.

 Último.

 O homem permanecia imóvel encostado na parede com tanta força que era como se achasse que tivesse a habilidade de atravessá-la, seus músculos parecendo já terem aceitado o fato de que não havia o que pudesse ser feito para fugir, e portanto, recusando-se a trabalhar. As pernas tremiam.

 Mello parou bem na frente dele, destinando-lhe um olhar inédito em seu trabalho. Nunca havia olhado daquela forma para nenhuma vítima antes. Sua face era uma máscara de gelo, afiada e de certa forma com a curiosa cicatriz destacada no rosto alvo, hipnótica. Daniel Louit não conseguia desviar o olhar.

 Até que Mello ergueu à altura suficiente a arma, o que teve o imediato efeito de desparalisar o homem, que recuperou ao menos o movimento das mãos, torcendo-as nervosamente, e o controle sobre os olhos, fechando-os apertados a ponto das poucas rugas ao redor se destacarem em fundas linhas. O loiro teve a impressão de detectar algo saindo dos lábios meio-abertos dele. Uma prece.

 Se ainda havia algum resquício de controle longe das correntes de sentimentos e vontades dentro de si, acabava de sumir com o som que lhe chegava aos ouvidos.

 Abaixou poucos centímetros o revólver e o homem caiu de joelhos e gritou ao sentir o projétil quente penetrar seu abdômen, rasgando a carne e fazendo o sangue escorrer abundantemente na onda lacerante de dor. O exato local onde estava a mancha de Klaus.

 O loiro abaixou-se até ficar na altura do rosto contorcido em agonia de Daniel, chegando próximo ao seu ouvido e dizendo baixo demais para mesmo alguém que estivesse imediatamente ao lado não poder ouvir com clareza: “Ninguém ataca o Klaus. Ninguém. Só eu tenho esse direito”.

 E com um segundo tiro, estava acabado.

 Mello largou o corpo mole e ensanguentado no lugar como havia caído, deslizando em uma posição antinatural até o tapete, e ao se afastar o suficiente para o líquido crescente não tingir suas botas, conferiu rapidamente seu próprio estado. O sobretudo estava intacto, mas havia um considerável conjunto de respingos carmesim em sua camisa e tinha certeza que tinha respingado um pouco no pescoço. Maravilha.

 Entretanto, apesar da sujeira que não costumava fazer, ele sentiu: a satisfação. Parecia um bolo em seu peito, dando-lhe uma respiração ligeiramente alterada, mas estava ali; ácida e doce, leve e pesada. Contraditória. Mas não exatamente desagradável.

 Teve, porém, que deixar essa pequena descoberta de lado quando voltou a encarar o restante do cômodo, mais especificamente, Klaus. Durante toda sua infância, apesar das tentativas de refrear a si mesmo quanto ao desenvolvimento de qualquer sentimento de apego, Klaus se transformara em sua única família, a única pessoa que, não importava o que Mello fizesse ou no que se tornasse, parte de si sabia que poderia sempre recorrer. Frases verbalizadas e aceitação própria consciente não eram necessárias; Mello não precisava dizer nem Klaus necessitava ouvir, para ser a mais pura verdade.

 Por isso, a visão daquele mesmo homem como se encontrava agora, o perturbou muito mais do que achou que poderia.

 Klaus estava pálido, branco demais, como se ameaçasse desfalecer ali mesmo na poltrona do “amigo”. Seus olhos brilhavam, mas nenhuma lágrima foi derramada; e novamente, tudo o que havia nos orbes cinzentos era um pesar grande e pesado, do tipo que nenhuma pessoa gosta de mostrar à outra.

 Mello não fazia ideia do que dizer ou o que fazer a seguir. Agora que seu trabalho estava terminado, não conseguia pensar em nenhuma palavra ou ação que pudesse tirar o mais velho daquele estado, e odiou isso. Tudo o que pôde fazer nos minutos seguintes então foi observar em silêncio Klaus crispar a boca em uma fina linha de tensão e levar uma das mãos aos olhos, cobrindo-os, o peito subindo e descendo com visível dificuldade. Ainda não havia lágrimas, mas isso não importava. Parecia chorar mesmo assim.


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Notas finais do capítulo

Eu, particularmente, gostei desse capítulo (adoro o Klaus, que fazer).
E vocês?



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