Beastman escrita por Cicero Amaral


Capítulo 22
Capítulo 22




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Teen Titans não me pertence. Sabe, já estou começando a ficar cansado de repetir isto...

Ravena abriu os olhos devagar, sonolenta. Tinha uma sensação estranha, diferente daquela que seu colchão e cobertores normalmente proporcionavam. O que era aquilo sobre o que estava deitada? Grama?

De fato, era grama. Uma grama de um amarelo vivo, quase dourado. Levantando-se aos poucos, a empata percebeu que não estava mais em seu quarto, e sim num campo, com a grama amarela se estendendo até onde a vista alcança. Um sol rosa iluminava a paisagem, e ela se encontrava sob a sombra de uma árvore, cujas folhas também tinham uma cor rosa, tão berrante quanto tudo o mais que podia ser ver por aqui.

Nevermore. Mas como, afinal, ela poderia estar aqui? O que poderia ter acontecido? Intrigada, em busca de uma resposta para esse enigma, Ravena mal era capaz de perceber o ambiente à sua volta, e provavelmente permaneceria assim por muito mais tempo, se um som inesperado não a forçasse a ficar alerta novamente.

– IUPIIIII!!!!

Sim, ela sabia que a lógica do mundo real (assim como as leis da física, química, etc.) tinham pouca ou nenhuma influência sobre este lugar, mas, mesmo assim, este era um som que ela jamais ouvira antes. Nem no mundo real, nem aqui.

E foi por essa razão que a empata decidiu procurar a fonte de tudo. Esta era a sua mente, afinal de contas, e ela não tinha a menor intenção de sair, não sem antes saber o que estava acontecendo.

Após alguns momentos de caminhada, pôde ver a primeira coisa que não combinava com a paisagem. Algumas centenas de metros de distância, Ravena via o que parecia ser um morro pequeno, destoando da paisagem basicamente plana à sua volta.

Aproximando-se mais ainda, pôde perceber mais coisas que não combinavam com o ambiente, A música. O som de conversa. Risadas. E isso, naquele lugar, era algo tão normal quanto Ciborgue comendo tofu, Robin relaxando numa praia, ou Silkie fazendo dieta. Mas, antes que pudesse se perguntar sobre o que estava acontecendo, ela viu. Viu e se surpreendeu.

Suas oito emoções estavam reunidas à volta do que parecia ser uma cesta de piquenique. E que cesta! Era bem maior do que o sofá da Torre Titã, e estava praticamente transbordando com doces, salgadinhos, frutas, bebidas e muito mais. Não era possível identificar a fonte da música que dava ritmo à festa, mas a empata suspeitava que estivesse em algum lugar dentro do morro que tinha visto antes, que, na verdade, era uma pilha gigantesca de brinquedos, fantasias e pijamas, com um malão aberto no topo.

Ravena gastou alguns instantes olhando para a mala, perguntando-se como era possível guardar ali aquela montanha de tralha que tinha diante de si. E então se lembrou de onde estava, e removeu essa pergunta da mente, ao mesmo tempo em que voltava seus olhos para as oito emoções que festejavam.

Conhecimento e Sabedoria estavam sentadas uma ao lado da outra, conversando com uma animação nunca vista antes. Rude estava mergulhada até a cintura dentro da cesta, comendo com uma voracidade que justificava seu nome. Raiva, surpreendentemente, estava livre, e segurava uma tigela de biscoitos moldados em forma de gente, dos quais devorava apenas a cabeça. Timidez estava um pouco afastada das demais, e olhava para a comida hesitante, como se precisasse de permissão para tocar nela. Coragem e Afeição estavam juntas, felizes, jogando Felicidade para o alto, que, por sua vez, não parecia ser capaz de parar de rir.

A empata apreciou o estranho espetáculo por algum tempo, e especialmente a presença de sua emoção cor-de-rosa, cujo retorno parecia ser o motivo desta comemoração. As oito personificações de sua mente, por outro lado, pareciam não perceber que ela estava ali, ou talvez estivessem prestando atenção demais uma na outra.

De qualquer forma, a presença de Ravena foi rapidamente descoberta. E quando isso aconteceu...

– Rae-Rae!!! – a emoção de capa rosa gritou ao se chocar com a verdadeira empata, quase levando ambas ao chão. – Olha pra mim! Eu voltei, voltei!!

– Estou vendo, Felicidade. – respondeu a jovem com um suspiro, ao mesmo tempo em que tentava se soltar. – E meu nome é Ravena, caso tenha se esquecido.

– Rae! Rae-Rae! Rae, Rae-Rae! – a emoção rosa parecia incapaz de soltar a vítima de seu abraço, e pulava como se fosse uma bola de basquete. – Você TEM que trazer o carinha verde aqui de novo! Ouviu? Quando é que você vai trazer ele para visitar a gente? Hein? Hein?

– O... o quê?? – a empata mal podia acreditar em seus ouvidos. Felicidade queria que Mutano fosse trazido até aqui? Para o interior de sua mente?

Ravena sempre soubera que seu lado cor-de-rosa era meio maluco, e esse pedido confirmava isso. Ela ficou quieta, enquanto um balão de pensamento se formava acima de sua cabeça. E dentro dele, podia ver a si mesma, lendo tranqüilamente no sofá da sala comum, enquanto Robin, Ciborgue e Estelar cuidavam de seus respectivos afazeres. Então, sem aviso... BUM! A empata viu a própria cabeça explodir que nem traque, deixando apenas uma ponta de fósforo queimado em seu lugar.

– De jeito nenhum! – gritou Ravena, subitamente alarmada. – De onde você tirou essa idéia?

– Ora – uma voz soou, próxima a ambas. – Eu diria que essa responsabilidade é minha.

A empata e sua emoção de capa rosa olharam para o lado. Viram Sabedoria se aproximando, e, logo atrás dela, estavam as demais emoções, uma miríade de capas coloridas, contrastando com a grama amarela. Ravena apenas levantou a sobrancelha questionadora, enquanto decidia se acreditava ou não no que tinha acabado de ouvir: Teria a sua contraparte marrom realmente proposto um disparate desses?

– Seu... “amigo”... fez uma sugestão muito interessante hoje de tarde. – explicou Sabedoria. – E confesso que não entendi completamente o que ele quis dizer, por isso...

– Por isso você quer fazer suas perguntas diretamente a ele. – completou Ravena. – E quer trazê-lo para dentro da minha cabeça?!?

– Exato.

– E o quê, me diga. – a adolescente estava fazendo força para manter a cortesia. – Faz você pensar que eu vou concordar com isso?

– Sabe... quando fiz essa proposta às outras, estava esperando uma reação similar à sua. – a emoção marrom estava deliberadamente evitando a pergunta. – Imagine a minha surpresa ao ver minha idéia receber aprovação... praticamente unânime.

– Praticamente?

– Timidez teme que Mutano não goste de alguma coisa que possa ver por aqui. Teme que ele se assuste, corra para longe, e nunca mais volte.

Essa não era a resposta que a empata estava esperando. Quer dizer, então, que Conhecimento aprovava essa idéia maluca?

– A vinda dele irá, com toda a certeza, levantar muitos tópicos interessantes. Tópicos que pretendo registrar e catalogar da maneira devida. – explicou-se a emoção de capa amarela, ao sentir o olhar de Ravena sobre si. – E, a bem da verdade, não sou a única curiosa para vê-lo.

– Não é a única curiosa para vê-lo. – Repetiu a empata, num tom chapado. Por alguma razão, esse interesse repentino pelo metamorfo estava incomodando-a.

– Talvez seja mais correto dizer que todas nós temos algum tipo de curiosidade... estou certa de que você pode deduzir a natureza de alguns deles.

Isso certamente era possível. Sabedoria e Conhecimento tinham declarado o que pretendiam fazer com o metamorfo, e Ravena tinha uma boa idéia do que Afeição e Felicidade iriam aprontar. Não tinha idéia das intenções de Coragem e Rude, mas suspeitava que elas não fariam nada perigoso. Timidez provavelmente ficaria olhando de longe, escondida, sem jeito de dizer o que quer que esteja em sua mente. E Raiva...

Ela gastou alguns momentos observando sua emoção de capa vermelha, que estava sentada ali perto, roendo um grande osso de... alguma criatura (De onde é que saiu aquilo?). Tinha qualquer coisa de estranho nisso, mas o que poderia ser? Não parecia haver nada de diferente em seu comportamento. Seria possível que...?

– O que isso significa? - A empata perguntou indignada, ao perceber que Raiva estava livre. – Por que ela está solta? Quem é a responsável por isso?

– Você, duuuuh! – Rude provocou, esmagando um sorvete contra a própria testa. – Quem mais?

– O quê?!? – Ravena estava chocada. – Eu nunca...

A emoção de capa laranja, no entanto, não estava disposta a ouvir.

– Ai, Mutano, eu prometo que vou tentar me soltar. – cantou Rude em voz de falsete. E então, continuou em sua voz normal. – Cê não se esqueceu disso ainda, né?

Foi então que a adolescente lembrou da promessa que tinha feito ao Titã verde, algumas horas antes: não mais se esforçar para suprimir o que estava sentindo. Não sabia como e nem SE isso era possível, mas sua determinação não tinha mudado; iria fazer todo o possível para conseguir.

– Mas isso não significa que você vá ter passe-livre ou coisa parecida. – declarou Ravena, olhando diretamente para sua emoção de capa vermelha. – E menos ainda que você vá algum dia chegar perto de qualquer um de meus amigos!

– Amigos, hein? – Raiva parecia estar se divertindo com essa palavra. – Isso que dizer que do seu namoradinho eu posso?

O olhar da empata se tornou tão gélido, que teria sido capaz de reduzir muitos vilões a uma ruína balbuciante.

– Eu posso ter prometido a ele que iria tentar parar de suprimir vocês. – ela falou, e havia um mundo de ameaça em sua voz. – Mas EU é quem estou no controle. E, se para isso eu precisar amarrar pesos em suas pernas e depois te jogar num lago, eu o FAREI. Entendeu?

– Não precisa ter medo, Ravena. – havia desdém na voz de Raiva, mas isso provavelmente era o mais próximo que ela poderia chegar de uma retratação. – Tem algo que eu quero e, para isso, preciso do pirralho verde vivo e intacto. Pelo menos por enquanto...

Então a emoção vermelha se afastou. Ravena a vigiou enquanto isso, meio convencida de que devia esperar por algum tipo de encrenca. Mesmo sem a influência de Trigon para fortalecê-la, Raiva ainda permanecia rebelde e perigosa. Uma lembrança constante daquilo que ela poderia vir a se tornar

– Ouvi o que vocês conversaram. – uma voz soou atrás da empata. – Obrigada.

– Pelo quê?

– Você não negou quando Raiva disse que Garfield é nosso... seu... namorado. – Respondeu Afeição, contente.

Ravena se virou, para poder observar seu alter-ego púrpura. Afeição... o completo oposto de raiva, mas, não obstante, uma emoção que, durante anos, ela tinha se esforçado ao máximo para suprimir. Ela sempre receara as possíveis conseqüências, caso se permitisse expressa-la. Hoje, no entanto...

– Você pode ser frustrante de vez em quando, Afeição. – confessou a empata. – Não sei o que faço para lidar com você.

– É por isso que precisamos do Garfield, bobinha. – declarou a emoção púrpura. – E então, você... vai trazer ele aqui?

O quarto de Ravena sempre fora um lugar escuro, mesmo durante o dia, com a janela aberta e luzes acesas. Agora, porém, no meio da noite, era praticamente impossível ver alguma coisa. Mas, se alguém estivesse ali agora, ouviria um som vindo da cama aonde ela se encontrava, adormecida.

– Está bem.

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– Yeouch!! – Mutano gemeu de dor, ao cair de cara em uma das muitas rochas flutuantes de Nevermore. – Não dava pra ter me segurado, não?

– Foi você quem soltou a minha mão. – respondeu Ravena, aterrissando ao lado dele. – E eu digo bem feito. Quem mandou tentar se exibir?

– Eu não estava me exibindo! – Protestou o metamorfo.

– Ah, não? Então por que você se soltou? – Questionou a empata.

– Ora, porque... – e então ele se calou, indeciso. Deveria dizer que tinha se assustado com a paisagem espectral à sua volta? Tinha a forte impressão de que isso poderia ofender a garota à sua frente, e esse era um erro que ele NÃO queria cometer. – Ah... uh... porque eu... você sabe... achei que conseguiria abrir as asas a tempo...

– Então você ESTAVA se exibindo. – concluiu Ravena. – Bem-feito.

– Humf. – Mutano grunhiu, emburrado. – O que foi que a gente veio fazer aqui, mesmo?

– Eu não te traria aqui se não fosse importante, então se acalme. – a empata estava sendo propositalmente vaga. Ela própria não tinha muita certeza do que esperar. – Eu e você precisamos conversar com alguém.

– Alguém? Tem alguém aqui além da gente? – o garoto verde se surpreendeu por um instante. – Ah, já sei! Você tá falando das outras Ravenas que vivem aqui, né? Aquelas que representam suas emoções ou coisa parecida?

– Exatamente. – Respondeu ela, enquanto unia várias das rochas que flutuavam ao acaso, de modo a formar um caminho de pedra.

– Já conheci três delas. A Ravena felizinha, a Ravena medrosa, e a corajosa. – recordou Mutano, enquanto seguia a empata através da paisagem. – Foi naquele dia que eu descobri que você me achava engraçado. – Completou ele, sorrindo.

– Não acho não. – Declarou a empata.

– Acha sim. – Insistiu o metamorfo.

– Não acho não.

– Acha sim.

– Não acho não.

– Acha sim.

O jovem casal continuou repetindo isso, enquanto avançava pela paisagem. Não demorou para que alcançassem um grande arco de pedra, à frente do qual Ravena se imobilizou.

– Tô te dizendo, Rae, eu SEI que você me acha... ei, por que paramos?

A empata não respondeu de imediato: acabara de se lembrar que, de acordo com o sonho que tivera na noite anterior, as oito personificações de suas emoções já deveriam estar aqui, aguardando por eles. Será que acontecera algo de errado? Seria possível que...?

Eu sabia! Sabia que não devia ter permitido que Raiva permanecesse solta!

– Rae? Tá tudo bem com você? – Perguntou Mutano, preocupado com a agitação súbita dela.

– Me espere aqui. - Disse a empata, desaparecendo através de um portal surgido no chão.

– Ei, ei. EI! Não me deixa sozinho aqui! Ravena! – gritou o Titã verde, mas já era tarde. Estava sozinho agora. – Ah, cara...

– Oi, Mutano. – Uma voz soou bem atrás dele.

– AAAAHHHH! – O metamorfo, assustado, caiu de bunda no chão. E após alguns segundos, o tempo que precisou para sua cadência cardíaca voltar ao normal. - Quem... quem é você

– Sou Ravena, tolinho. – respondeu a figura que se dirigia a ele. – Esqueceu?

O Titã verde observou-a com atenção. De fato, era idêntica a Ravena em quase todos os aspectos: a aparência, o cheiro, tudo igual. Havia apenas duas diferenças dignas de nota, que eram a postura mais relaxada, típica de uma pessoa despreocupada, e o olhar, que mal podia esconder alegria e curiosidade quase ilimitadas. Ah, sim, tinha a capa rosa também, mas isso não conta.

– Não, claro que não. Na verdade, a gente tava justamente falando de você...

– É mesmo? – A garota de capa rosa riu ao perguntar isso.

– É, ué. Eu disse para a Ravena que ela me achava engraçado, mas ela ficou teimando que não, e eu tava prestes a dizer que você me disse isso naquela última vez em que vim aqui, quando ela SUMIU e me largou aqui S-O-Z-I-N-H-O. NÃO É, DONA RAVENA? – Mutano gritou essa última parte, para ninguém em particular.

– Você não está sozinho, seu bobo! – a Ravena de capa rosa riu mais uma vez. – Não tá me vendo?

– Huh? Ah... ah, é, hahaha... – Sem jeito, o metamorfo coçou a nuca do mesmo jeito que sempre fazia, quando se sentia encabulado.

– Estou feliz por você ter vindo me visitar, sabia? Aqui pode ser bem chato às vezes, sem ninguém... quer brincar?

Essa pergunta deixou Mutano sem fala por um minuto quase inteiro. Parecia-lhe totalmente impossível, que uma pergunta como essa tivesse saído da boca de Ravena. Apenas depois, quando se lembrou que esta NÃO era a verdadeira empata, e sim um aspecto da mente dela, é que conseguiu recuperar a fala.

– Claro... – havia alguma hesitação na voz do garoto verde. Esta cena ainda parecia-lhe irreal. – O quê você quer fazer?

A menina de capuz rosa aproximou-se, para poder dizer alguma coisa ao ouvido do metamorfo. Ele arregalou os olhos, incrédulo, mas assentiu. E, um instante depois, um gatinho verde estava se esfregando nas pernas dela, ronronando contente.

Com um gritinho de alegria, Felicidade pegou o felino verde no colo, e carregou-o através do arco de pedra que estava mais perto.

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Fogo.

Fogo, ruínas e cinzas.

Esta era a paisagem em que Ravena se encontrava agora. Esta era a região que compunha o domínio de Raiva em Nevermore. Muito adequado, pensou ela ao olhar para o céu vermelho. Tudo aquilo, toda aquela região, era perturbadoramente parecida com aquilo em que Trigon transformara a Terra, durante sua curta estadia neste planeta. Uma lembrança pungente daquilo que ela, um dia, fora destinada a fazer. Uma lembrança de algo que ela jamais permitiria que viesse a acontecer.

– Não imaginava que encontraria você por aqui. – Raiva materializou-se em frente à empata. – Apreciando a paisagem? Espero que não. Eu a fiz especialmente para você, afinal de contas.

Ravena encarou sua contraparte vermelha por um instante, sem esconder seu desprezo por ela, ou qualquer outra coisa que lembrasse seu amaldiçoado progenitor. Relutantemente, a empata decidiu questionar Raiva, antes de acorrentá-la mais uma vez.

– Onde estão as outras? O que você pensa que está fazendo? Se você está planejando ameaçar Mutano... – As perguntas foram formuladas dura e pausadamente. Não era apenas uma ameaça; era uma promessa.

– Não faço idéia, nada, e já disse que preciso de seu namorado inteiro. – Havia uma estranha mistura de ultraje e diversão na resposta.

– Se você não fez nada, então por que elas não foram ao meu encontro, conforme o combinado? – A adolescente não tinha razão para acreditar no que estava ouvindo.

– Acaso sou guardiã de minhas irmãs? – respondeu a emoção de capa vermelha. – Aqui é que elas não estão, o que é uma pena. Eu me diverti bastante com Overload 2.0 dias atrás, e não me importaria de repetir a dose.

Ravena não respondeu. Estava levitando a alguns metros do solo, olhando a paisagem distante, em busca de um sinal, um indício que indicasse algum acontecimento anormal, tal como alguma de suas emoções aprisionada ou em perigo. Não encontrou nada.

– Detesto quando você me ignora. – Reclamou Raiva, de braços cruzados.

– Também detesta quando eu falo com você. – Respondeu a empata, sem se virar.

– Verdade. Por mais quanto tempo você pretende macular meus domínios com a sua presença?

Mas o insulto foi desperdiçado. Agora que tinha confirmado que (por incrível que pareça) Raiva estava inocente, Ravena estava tentando decidir seu próximo passo. Por um tempo, considerou a possibilidade de se deslocar até outras regiões de Nevermore, para descobrir pessoalmente o porquê de ninguém ter vindo ao seu encontro e de Mutano. Mas acabou mudando de idéia: lembrara-se que o metamorfo estava sozinho nas regiões externas de sua mente; melhor encontrá-lo agora mesmo, antes que ele acabe fazendo alguma coisa que não deve.

Porém, ao se teleportar de volta para o lugar aonde o deixara, a empata encontrou apenas a imensidão vazia. Apenas o silencio ajudava a compor a paisagem.

– Santa Azar... – Suspirou a empata. Por que é que não estou surpresa?

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– Caaara... minhas costas estão me matando. – Queixou-se Mutano, com uma mão nas costas, enquanto cambaleava por algum canto perdido de Nevermore. – Aquelas duas quase acabaram comigo.

Mutano estava se lembrando daquilo que acontecera com ele, pouquíssimo tempo antes. Tinha sido carregado até uma região diferente, uma com grama amarela, árvores de folhas rosa, e grandes frutas flutuantes no ar. E lá, depois de ser embalado, acariciado, penteado, jogado para o alto, lavado e forçado a colocar uma roupinha de marinheiro RIDÍCULA (cara, onde é que já seu viu dar banho em gato?!? E por que eu não conseguia mudar de forma?) a Ravena de capa rosa ainda fez um pedido; algo que ela sempre quisera fazer, desde criancinha.

Ele bem que sentiu vontade de dizer não. Mas do que adiantava resistir? Aquela carinha de criança, prestes a ganhar brinquedo novo... era pior que controla de mente! Acabou que ela nem precisou insistir muito, para ganhar o passeio de pônei que desejava. E não fora um simples passeio; ele acabara forçado a trotar pelo que pareceu ser uma extensão maior que Jump City.

Foi mais ou menos nesse momento, recordou ele, que a maluca apareceu. A Ravena de capa laranja. Subitamente, ele se viu com duas passageiras no lombo, e a recém-chegada queria correr.

– Ainda não acredito que ela fez aquilo. – o metamorfo tirou a camisa do uniforme, para melhor examinar uma miríade de arranhões, presentes nas laterais de seu corpo. – Esporas? Aquela cretina teve a cara-de-pau de usar esporas em mim?!?

E isso não foi tudo; mesmo depois de ser forçado a correr até praticamente desabar, as duas Ravenas ainda quiseram mais: uma competição, elas disseram. Um teste, elas disseram. Que ele não precisava fazer, se fosse um coelhinho assustado. E coelhinho assustado é a vovozinha, foi a resposta que as duas receberam.

Mutano ainda não conseguia acreditar em como tinha se deixado manipular tão facilmente. Não apenas tinha tomado uma jarra daquela (o que quer que fosse aquilo) gosma azul que elas prepararam, como, para mostrar que era macho, dera um jeito de engolir uma SEGUNDA jarra. E aquilo, conforme o metamorfo reclamaria alguns dias mais tarde, tinha gosto de lixo tóxico. E que seriam necessárias umas oito latas de guaraná Gezzus, para tirar aquele gosto pestilento da boca. E isso nem foi o pior:

– Superem essa. – Dissera ele com uma careta, ao terminar de engolir a segunda jarra.

– Ah, não precisa. - foi a resposta da Ravena de capa rosa, que tapava a boca para não cair na risada. – Você ganhou.

– Dez... nove... oito... sete... – Contou a Ravena com capuz laranja.

Mutano, que não tinha entendido a razão para essa contagem regressiva, simplesmente ficara olhando para as duas, perguntando-se por que elas o deixariam vencer assim, sem mais nem menos.

Foi então que as dores de barriga vieram.

– Gah. Ainda não acredito que aquelas duas me tapearam. – Resmungou o metamorfo, enquanto caminhava.

– Você me ouviu chegando, ou tá falando sozinho mesmo?

O garoto verde estava num estado lastimável demais para ainda poder se assustar. Virando-se para a direita, ele viu, é claro, outra Ravena... que, assim como as que já tinha encontrado, era idêntica à original, salvo por alguns detalhes essenciais. Esta não escondia o rosto sob o capuz da capa verde, e seu jeito, bem, o Titã mais novo não sabia ao certo como definir. As passadas um pouco largas demais, o olhar um pouco desafiador demais, o peito um pouco estufado demais (Hm, e não é que essa é uma visão interessante e...).

– Meu rosto fica aqui em cima. – Disse ela, empurrando o queixo dele um pouco mais para o alto.

– Irgh!!! – Mutano, que nem tinha se dado conta da indiscrição que estava cometendo, estava surpreso demais para conseguir falar. Apenas ficou imóvel, rígido e de olhos fechados, à espera da punição que certamente lhe seria aplicada.

Qual não foi a sua surpresa quando, ao invés de levar um tapão de fazer queimar as bochechas, ele sentiu seu braço direito sendo apalpado.

– Você está maior agora. – Havia algo de fundamentalmente diferente na voz dessa Ravena. Algo que fazia o metamorfo ficar... agitado. – Andou malhando, não foi?

Agora só havia um curso de ação possível. Depois dessa, Mutano simplesmente TINHA que se exibir um pouco.

– Ah, não foi nada demais. – inventou ele, flexionando os braços. – Sabe como é, o treino básico de todo dia tava muito fraquinho, então eu decidi fazer um extra, por conta própria.

– Isso é bom... – Agora ela estava passando ambas as mãos pelo peito do metamorfo. Aparentemente, não percebia que estava enchendo a cabeça dele com idéias... idéias perigosas.

A esta altura, Mutano estava de olhos fechados novamente, saboreando o momento, crente que estava sonhando. Meio que temia acordar, e então descobrir que tudo não passava de um devaneio. Mas a sensação que teve a seguir, do braço desta Ravena envolvendo seu pescoço... do corpo dela pressionando levemente o seu... era real. Real... até demais.

– E então. - sussurrou ela, a milímetros da orelha dele. - Que tal você me mostrar o que esses músculos novos podem fazer?

Palavras têm poder. Essas, por exemplo, fizeram com que Mutano se esquecesse completamente do cansaço, da dor nas costas, e da gosma azul que ainda estava em sua barriga. De fato, ele agora estava se sentindo muito, mas MUITO bem-disposto.

– Gata. - disse ele, fazendo menção de abraçar a garota à sua frente. - Só se for agora...

Dito e feito. Mal ele acabara de falar, e algo pareceu saltar em seus braços. O impacto, aliado ao peso inesperado, acabou por levar o metamorfo a cair de costas no chão. Surpreso com a pressão em seu peito, que dificultava a respiração, Mutano abriu os olhos. Apenas para, no mesmo instante, se arrepender de ter feito isso.

Porque, em cima dele, estava um peso olímpico, com 40 quilos em cada ponta. E a seu lado, acocorada, estava a Ravena de capa verde, com um cronômetro na mão.

– Hora de trabalhar. - disse ela, falando alto. Pode começar com uma série de trinta. Vai, vai, vai!

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– Preciso falar com você. - Ravena estava dentro do que parecia ser uma gigantesca biblioteca. As paredes consistiam de prateleiras que se estendiam até o teto, e estavam positivamente transbordando, cheias de livros de todos os tamanhos e cores. Alguns eram pequenos, outros grandes; alguns pareciam novos em folha, ao passo que outros se assemelhavam a tomos medievais, cobertos por uma grossa camada de poeira.

Sentada em uma das muitas mesas presentes naquele local, estava a pessoa a quem a empata se dirigia. Usava um par de óculos enormes, que ocultavam boa parte de seu rosto. Isto é, a parte que não estava coberta por uma capa e capuz amarelos. Em suas mãos, estava um livro aberto, que ela lia atentamente.

– Sobre...? - Conhecimento respondeu sem tirar os olhos do livro.

– Várias coisas, mas a maioria pode esperar. - declarou Ravena. - Em primeiro lugar, me diga: Por que você e as outras não vieram ao meu encontro, assim que cheguei?

– Provavelmente, porque você não chamou. - A emoção amarela virou uma página do volume que segurava.

– Talvez eu esteja enganada... - a voz da empata estava cheia de seu costumeiro sarcasmo. - Mas o combinado foi que, quando eu voltasse com o Mutano, vocês oito viriam até nós.

– Então, você realmente o trouxe até Nevermore? - perguntou Conhecimento, finalmente levantando seu rosto acima do livro. - Onde ele está?

Ravena hesitou. Deveria confessar que tinha se perdido dele, uns poucos minutos após sua chegada? Ela remoeu essa questão por alguns instantes, receosa do que poderia ser a resposta da pessoa à sua frente, até que, finalmente, lembrou-se que seu alter-ego amarelo era exatamente isso: uma parte de si mesma e, como tal, não havia razão para temer a opinião dela.

– Acabamos nos perdendo um do outro. - confessou a empata. - Na verdade, está é a segunda pergunta que eu pretendia fazer. Você sabe onde ele está?

– Infelizmente não. Eu saberia, se ele estivesse por aqui.

– Então preciso que me ajude a encontrá-lo. Precisamos chegar até ele antes que outra coisa o faça.

– Não precisa temer pela segurança dele, Ravena. - explicou a emoção de capa amarela, calmamente. - Nenhum dos perigos de nevermore deverá incomodá-lo, uma vez que você aceitou sua presença aqui. De fato, se até mesmo Raiva deixou de demonstrar hostilidade, o que há para se temer?

Ravena, no entanto, deu de ombros. Se ELA tivesse sido esquecida em um lugar desconhecido e hostil, iria querer ser encontrada o mais rapidamente possível.

– Mesmo assim, prefiro não deixar ele vagando sem rumo por aí. - Declarou a empata.

– Como quiser. - concordou Conhecimento. - Presumo que queira que eu avise as outras?

– Sim, por favor.

– Pode ir na frente, se desejar. Eu enviarei sua mensagem, farei uma última anotação nos registros, e então alcançarei você.

Então, enquanto Ravena deixava seu reino, Conhecimento dirigiu-se para um cristal, guardado em uma prateleira específica. Ao tocá-la, enviava um sinal para suas sete irmãs... informando-as do que acabara de acontecer. E, após alguns momentos ouvindo as respostas, fez a seguinte anotação, antes de ela própria sair, em busca do metamorfo:

Fase um concluída. Fase dois progride em ritmo mais acelerado do que o previsto. Fase três pendente.

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– Rapaz, e eu que pensava que o Robin pegava pesado nos treinos... - Mutano estava falando consigo mesmo, deitado no chão, exausto demais até para se sentar. Tinha conseguido, ainda que aos trancos e barrancos, superar os desafios que a Ravena de capa verde tinha lhe proposto. Agora, no entanto, estava sozinho novamente; sua anfitriã (carrasca, isso sim) tinha saído para fazer alguma coisa... mas ele não se lembrava ao certo do quê.

Não que fizesse diferença, pois o garoto verde precisava de descanso, e, no estado em que se encontrava, cada segundo era precioso... talvez, quem sabe, fosse possível tirar uma soneca rápida, enquanto ela não voltava...

Creck.

A forma inerte do adolescente não se moveu, à exceção de uma orelha, que se levantou na direção do som.

Knock, tec tec.

Um olho se abriu lentamente, à medida que o rapaz localizava a fonte do barulho.

Scrish.

Finalmente acordado, Mutano assumiu a forma de um camundongo, e cuidadosamente, saiu do lugar onde estava. O que quer que o estivesse vigiando, não estava fazendo um bom trabalho: não seria nem um pouco trabalhoso para ele, dar uma volta ou duas e então transformar caçador em caça.

O roedor verde circundou o local onde seu misterioso perseguidor estava, e, ao assumir uma posição vantajosa, de onde poderia atacar sem ser visto, conseguiu ver quem ele era.

Outra Ravena... esta usava um manto cinzento, e estava escondida por trás de uma rocha, de onde levantava só a cabeça, para poder vigiar o local onde, até dois minutos atrás, o metamorfo estivera dormindo. Parecia desesperada para não ser vista: de fato, mal reunia a coragem para olhar por cima da rocha, e se escondia de novo. Nem percebia o barulho que estava fazendo, com todo esse movimento, pisando e remexendo as pedrinhas soltas no chão.

Aliviado, Mutano começou a descer de seu posto, para poder cumprimentar a recém-chegada (ou talvez não... há quanto tempo ela estava ali?), mas, assim que notou que ela ainda não tinha se dado conta de sua presença, sentiu uma idéia diabólica crescendo em sua mente. Seus bigodes de rato se remexeram três vezes, o equivalente a uma risada.

Lentamente, calmamente, o camundongo se colocou atrás da Ravena com a capa cinza, e, sem fazer um ruído. voltou à sua forma original, mordendo os lábios para não rir.

E, no instante em que ela reuniu a coragem para olhar de novo por sobre a pedra:

– BUUUUUUU!!!!!

– AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!

Naquele mesmo instante, em um local mais distante em Nevermore...

Rude e Coragem estavam sentadas à beira de um precipício, local de onde observavam um fenômeno... peculiar. À distância, era possível ver algo que, salvo por duas diferenças, se assemelhava a uma explosão atômica: só que esta, ao invés de um laranja brilhante, tinha uma cor negra como o ébano, e, ao invés de seu topo se expandir e se difundir (assumindo a aparência clássica de cogumelo), tinha se moldado na forma de um grande pássaro de asas abertas.

– Schlluuuuuuuuurrrrrp. - Foi o som que Rude fez, ao usar um canudo para esvaziar um copão (que mais parecia um balde). Sua mão esquerda estava aberta, apontada na direção de Coragem.

– Essa não conta. - protestou a emoção de capa verde, colocando no colo o binóculo que usava. - Ela não se assustou sozinha.

– Num quero nem saber. Pode passar pra cá. Vintão.

Contrariada, Coragem colocou duas notas na mão da emoção laranja.

– Hunf. E agora?

– Agora a gente aproveita o show, ora bolas! - disse Rude. - Aí, aposto mais vinte que Raiva não vai deixar sobrar nada para as outras. Topa?

– Tô dentro.

De volta para a cratera...

– Aaaai... - Mutano estava capotado num canto, de cabeça para baixo, e havia duas espirais rodopiantes ocupando o lugar de seus olhos. Em sua boca, havia um sorriso demente, típico de pessoas que estão vendo coisas que não estão realmente ali.

– Oiiii. As três gatinhas costumam passear por aqui todos os dias? - Perguntou ele, sua voz mais parecendo a de um bêbado.

– Essa não, eu quebrei ele. - Constatou Timidez, que estava sozinha ali.

A emoção cinzenta não conseguia parar de se remexer, sem saber se fugia dali, ou se pedia desculpas. No final das contas, foi uma séria de frases incoerentes, ditas pelo metamorfo (das quais apenas "eu sou cabra omiii" podia ser entendida), que a convencera a ficar e dar um jeito de curá-lo.

– Huh... ai, minha cabeça... nngh... Rae? - Perguntou Mutano, assim que a luz curativa terminou de ser administrada.

Ele viu a Ravena de capa cinza virar-se e se afastar depressa, quase correndo. Será que estava zangada? Ainda não conseguia se lembrar que esta Ravena era a medrosa, que ficava se desculpando o tempo todo sem parar. Não que isso importasse, pois a atitude que i metamorfo tomou, a seguir, nada tinha a ver com sua última visita a este lugar, anos atrás.

– Peraí. - disse ele, segurando a mão da emoção que fugia. - Não vai embora.

Mutano podia sentir o quanto ela estava desconfortável; a esta altura, já estava arrependido de ter lhe dado um susto.

– Olha, me desculpa... eu não devia ter te assustado... era só uma brincadeira, mas... - E então o Titã verde calou-se, sem saber como continuar.

Timidez, por outro lado, estava encarando o metamorfo, surpresa. Então, alguém estava pedindo desculpas a ELA??? Deveria ser justamente o contrário...

– Por que você ainda fala comigo? O olhar dela estava fixo no chão mais uma vez. Eu... eu te machuquei... de novo.

Mutano poderia ter falado. Poderia ter argumentado. Poderia ter passado horas e horas, discursando sobre como não estava chateado e, de fato já tinha esquecido daquilo. Mas não. Em vez disso, escolheu dar à Ravena cinza algo que ela estava precisando: um abraço.. Bem apertado.

Ela se assustou por um instante, mas não tentou se soltar.

– Você não deveria estar aqui. – disse a emoção cinzenta, após alguns instantes. – Este lugar tem coisas... coisas que você não deveria ver.

– Não estou com medo. – O metamorfo não tinha entendido a mensagem.

– Não é isso. São... são as outras. – gaguejou ela. – Se elas te encontrarem, elas... elas vão... e então você... você... – Ela então continuou a falar, numa voz estrangulada, entremeada de soluços, tão baixo que nem mesmo podia ouvir a si mesma.

Por sorte, as orelhas de Mutano eram mais do que simplesmente enfeite. Ele levantou o rosto da Ravena de capa cinza, olhando fundo em seus olhos, que estavam brilhantes de lágrimas.

– Você não precisa mais ter medo. – e pela firmeza da voz não podia haver dúvida sobre se falava a verdade. – Eu nunca, NUNCA vou te deixar... a menos que, um dia, você decida me mandar embora.

Foi então que, finalmente, Timidez o abraçou de volta.

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Ravena estava no reino de Sabedoria, percorrendo os tortuosos caminhos necessários para se alcançar sua emoção marrom.

Esta região estava muito diferente do que ela se lembrava: ao invés de um campo com uma árvore, agora este reino era uma gigantesca montanha, tão alta que não era possível se ver o fim. E, para piorar, alguma coisa impedia a empata de simplesmente voar ou se teleportar direto para o topo. Ainda podia levitar, mas era forçado a fazê-lo seguindo a escadaria.

Ela estava bem próxima do alto, quando, de repente, viu-se sobrepujada por uma... sensação.

Não teve escolha a não ser pousar e se apoiar em uma rocha, para não cair. Estava zonza. Estava confusa. Estava sem fôlego. Não sabia o que aquilo poderia significar.

Naquele momento, a sensação experimentada por Ravena era o mais puro e completo... alívio.

Isso mesmo. Alívio. Alívio destruidor de dúvidas e aquietador de corações. Alívio que a empata só se lembrava de ter sentido quase um ano antes, após banir Trigon deste plano de existência.

– Mutano... – Ela ouviu a si mesma falando, ainda sem entender o que estava acontecendo.

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– Preciso ir. – Disse a Ravena de capa cinza, soltando-se do metamorfo.

– Por quê? – Ele estava um pouco surpreso com essa mudança súbita de comportamento. Teria cometido alguma gafe, sem perceber?

– Meu tempo acabou. – disse ela. – Preciso ir.

– Tempo? Como assim, tempo? – Mutano não estava entendendo patavina.

– Eu preciso ir. Realmente preciso. – e, um instante antes de se teleportar para longe. – Muito obrigada. Por tudo.

E então o rapaz verde se viu sozinho de novo, coçando a cabeça no meio da vastidão. No entanto, antes que pudesse entender o quê, afinal de contas, a Ravena cinza tinha lhe dito...

– Enfim sós... – Uma voz ameaçadora se fez ouvir. Estava (para variar, pensou o metamorfo) atrás dele, a uma pequena distância.

Mutano então se virou, e precisou recorrer a uma boa dose de força de vontade, para não saltar com o susto. Podia ver uma paisagem apocalíptica diante de si: prédios em ruínas, fogo nos céus, e multidões de pessoas petrificadas, com o terror ainda visível em seus rostos frios.

E, no meio de tudo isso, estava uma garota. A capa e o capuz de um vermelho vivo, e, brilhando de dentro da sombra que escondia seu rosto, haviam olhos. Olhos vermelhos como rubis.

O metamorfo se lembrava muito bem desta Ravena. E, sinceramente, preferia não lembrar.

– Eu estava esperando por este dia. – A Ravena de vermelho disse isso devagar, com um sorriso distorcido no rosto, que fazia Mutano se sentir como um rato entre as patas de um gato. E talvez ela tenha adivinhado o que ele estava pensando, pois falou:

– Eu vou contar até dez. E, quando acabar a contagem, irei em seu encalço. – disse a emoção vermelha ao se aproximar do Titã verde. Seus olhos estavam fixos no coração dele. – E, quando eu te pegar... você sabe o que vai acontecer, não sabe?

Mutano não sabia, e preferia não descobrir. Já estava se virando, pestes a se transformar em alguma coisa veloz e disparar para longe, quando um pensamento lhe ocorreu. Na verdade, era mais uma sensação do que um pensamento, algo que tinha saído do fundo de peito, sem que o metamorfo pudesse realmente entender como ou porquê.

Ou talvez, lá no fundo, ele soubesse, porque se virou novamente, tenso, encarando diretamente a emoção que o observava:

– Faça o pior que puder. – a voz dele estava assustadoramente similar a um rosnado. – Eu é que não vou me virar e correr de um lacaio de Trigon!

A Ravena de capa vermelha tinha escutado a tudo com o mesmo sorriso de antes. Mas só até a última palavra: naquele momento, o metamorfo descobriu o que era um rosto verdadeiramente transfigurado de ódio.

– Trigon?? – o próprio chão parecia tremer com o grito dela. – TRIGON???

– Trigon não passa de um verme! Um verme imundo que foi derrotado por crianças! E ele agora nada pode fazer, exceto sonhar com uma vingança que jamais, JAMAIS terá! – o cuspe voava enquanto a Ravena vermelha vociferava, e uma gota fez um chiado, ao cair em uma poça de lava ali perto. – Quando chegar a hora, eu estarei lá para desmembrá-lo, e ele, enfim, terá um túmulo!

– E desde quando Trigon sequer merece um túmulo? – Mutano não sabia ao certo de onde é que essa pergunta tinha saído. Se bem que, lá no fundo, (verdade seja dita!) ele a achasse bastante pertinente.

– Heh. Gosto da maneira como você pensa. – aquele sorriso sádico estava de volta ao rosto dela. – Sabe por que você ainda está respirando?

– Porque ainda não nasceu alguém bom o bastante para mudar isso. – A resposta do metamorfo não levou nem um segundo para ser dada. Mas, como ele viria a reconhecer horas depois, NÃO era uma resposta que ele normalmente daria. Isso porque, a verdade (e o Titã mais novo concordava com plenamente com isso) é que ele tinha bons amigos (mais que amigos: família) para dar-lhe apoio. Por que então ele tinha respondido dessa forma? Difícil dizer. Fora um impulso. Não podia dizer muito mais do que isso.

– Uma resposta interessante, mas errada. Você ainda está respirando, - contestou a Ravena de capa vermelha, aproximando-se cada vez mais – porque nós somos iguais.

– Não.

– Ah, siimm... – a voz dela estava completamente diferente agora: estava quase igual àquela que a Ravena de capa verde usara antes, e Mutano não conseguia contar o número de maneiras que isso parecia... errado.

– Não.

– Está aqui dentro, eu sei. Posso sentir. – Raiva estava apertando o coração do rapaz verde, que estava fazendo o possível para ignorar as unhas que arranhavam sua carne. – Um ser cuja fúria rivaliza até mesmo com a minha... esperando uma oportunidade para sair novamente... e, quando isso acontecer...

– Esqueça. Não vai rolar. Não enquanto eu puder evitar. – O metamorfo estava começando a se sentir desconfortável com essas insinuações.

– Você não vai ter escolha. Eu SEI o que é que a desperta. E sei que, quando chegar a hora, VOCÊ MESMO vai decidir usar aquela força magnífica. – ela então levantou o olhar, e seu rosto trazia uma expressão de prazer maligno. – Não vai conseguir “evitar”. Por causa daquilo que você é.

Mutano não respondeu de imediato. Ele não sabia ao certo, mas tinha uma idéia... sobre o que é que fazia a Fera despertar de seu sono. E agora, estava quase desejando estar errado... porque, se seu palpite estivesse correto... isso significaria que esta... parte da verdadeira Ravena.... estava certa.

– Acho melhor você ir embora agora. – Disse ele, completamente desconfortável com a conclusão a que tinha chegado.

Ao ouvir essas palavras, a face da emoção vermelha assumiu, finalmente, uma expressão de alguém que estivesse com raiva de alguma coisa. Ou que estivesse se sentindo insultada

– Ok, eu já disse o que queria, mesmo. – a voz dela era novamente aquela que se dirigira a ele pela primeira vez, ou seja, um semi-rosnado, que carregava em si uma violência quase incontida. – Mas antes...

– AI!!! – gritou o metamorfo, de olho nos quatro sulcos sangrentos (e dolorosos) que agora marcavam o lado esquerdo de seu peito. – Mas o que é isso?

– Uma marca de propriedade. Para a próxima vez que você decidir ir ao cinema. – e então a Ravena de capa vermelha mostrou a tira roxa e preta (manchada de vermelho) que tinha arrancado do uniforme dele. – E uma lembrancinha para mim.

Mutano ficou literalmente de boca aberta, surpreso demais para reagir. Marca de propriedade? Por acaso ele era gado agora, para ser marcado desse jeito? Precisou de um minuto inteiro, para conseguir se recompor o bastante para protestar. Mas não chegou a fazê-lo, pois, no momento em que estava começando a soltar a voz, foi interrompido:

– Seu tempo acabou. Fora!

E então uma explosão negra fez o Titã verde sair voando para longe.

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De volta à beirada do precipício distante...

– Passa pra cá. – Disse Coragem, assim que viu o pontinho distante aterrisar.

– Peraí. – Rude estava tentando desconversar. – Precisamos saber se ele vai conseguir levantar.

– Sem desculpas. A aposta era sobre se ia sobrar alguma coisa para as próximas. – explicou a emoção verde. – Não sobre o quanto ia sobrar.

– É, mas se o Mutano não levantar, as retardatárias ficam sem nada. E aí eu ganho.

– Por acaso duvida que Afeição seja capaz de colocar ele em pé novamente?

– Com ou sem trocadilho?

– RUDE!!!

– Tá bom, tá bom, toma. – cedeu a emoção de capa laranja, entregando à outra as duas notas sobre as quais estava sentada. – Aí, por falar em trocadilho...

– O que é? - Disse uma Coragem meio enojada, que estava segurando um par de notas engorduradas com a ponta dos dedos.

– Que parada foi aquela na sua vez? Eu cheguei a pensar que Afeição tinha roubado uma de suas capas...

– Algo que eu estava querendo fazer já tem algum tempo... mas e você? Nunca imaginei que você seria capaz de fazer uma coisa daquelas...

– Minha resposta é a mesma que a sua. – a voz de Rude tinha um tom estranhamente defensivo. – Fiz aquilo que me deu na telha.

– Mas passeio de pônei?

– ... Cala a boca.

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– Urgh. – gemeu Mutano ao se levantar. Tinha se transformado em um pardal, na tentativa de evitar sua queda, mas descobrira que não conseguia bater a asa esquerda corretamente, devido ao ferimento pulsante em seu peito. Mas pelo menos conseguira amortecer o tombo, que não o tinha machucado... muito.

Uma vez de pé, o metamorfo examinou o local onde se encontrava. Diferente do que esperava, esta região não era um deserto rochoso ou uma paisagem de dar nó na mente. Muito pelo contrário.

Na verdade, “muito pelo contrário” não fazia jus à impressão que o Titã mais novo estava tendo deste lugar. Parecia um lugar... perfeito. Compunha-se de colinas gentis, cobertas de grama verde, e havia uma quantidade de árvores e arbustos, a maioria com flores púrpura em seus ramos. Era possível ouvir o canto de pássaros a uma pequena distância, e um córrego de águas cristalinas fluía a poucos passos dali. Tão absorto ele estava, que até as fisgadas no lado esquerdo do peito ficaram esquecidas... temporariamente.

– Ih, cara... – uma pontada particularmente ardida forçou-o a voltar sua atenção para seu ferimento, que estava imundo, coberto de terra e grama esmagada. – Melhor eu limpar isso antes que infeccione... aquela psicopata deve ter até arrancado carne de mim.

Ok, “arrancado” era certamente um exagero, mas, mesmo assim, os arranhões eram bem fundos, doloridos e provavelmente iriam resultar numa cicatriz bem feia. Mas agora, após uma passada rápida pelo córrego, pelo menos estavam limpos. Restava ao metamorfo decidir qual seria seu próximo passo.

– Garfield...

Mutano não gostava muito do próprio nome. Em grande parte, devido ao gato gordo e laranja, devorador de lasanha, dos quadrinhos. Mas agora... ao ouvir seu nome ser pronunciado com tanto sentimento... com tanto carinho... ele poderia passar o resto da vida ouvindo-o. De verdade.

Seu corpo se virou praticamente sozinho para a direção do som, e ele podia ver:

Duas mechas de cabelo púrpura sendo ajeitadas atrás da orelha direita. O sorriso, suave como o perfume das flores que adornavam este lugar. E o olhar... o olhar mais cheio de ternura que tinha visto em toda a sua vida... o Titã verde podia sentir o próprio coração martelando o peito por dentro; queria falar alguma coisa, mas sua voz simplesmente não vinha.

– Finalmente encontrei você...

Mutano não conseguia tirar os olhos dela. Mal podia acreditar que fosse possível, mas esta Ravena estava. Ainda. Mais. Linda. Que. O. Normal.

E não, não era por causa da capa lilás que estava usando, e sim algo... mais. Alguma diferença na postura, na expressão facial, nos gestos... algo... que irradiava. Não dava para definir. Apenas... sentir? Não, essa palavra também não servia. Era algo... que o tocava. Era uma sensação... quase física.

– Ra... Rae...? – Foi a única palavra que conseguiu dizer, ao sentir as mãos dela acariciando seu rosto. Pois exatamente um segundo depois, ele estava ronronando. Literalmente.

O som que o metamorfo estava fazendo deve ter agradado, pois o sorriso da moça se acentuou, enquanto suas mãos dirigiam-se para abaixo da linha do pescoço.

– Você está machucado, Garfield. – disse a Ravena de capa lilás, ao sentir a pele rasgada no peito do rapaz verde, enfim separando o seu olhar do dele. – Isso por acaso é aquilo que eu penso?

Ele não chegou a responder. Na verdade, tinha esquecido de sua ferida, desde o exato instante em que ouvira seu nome ser chamado. Mas pôde sentir uma sensação de anestesia se espalhando, à medida que duas mãos massageavam levemente o lado esquerdo de seu peito, inundando-o com luz azul curativa.

– Pronto. – disse ela. Mutano pôde então ver que estava curado, apesar de ainda lhe restar um cicatriz que, embora bastante leve, era facilmente perceptível.

– Sabe, eu nunca imaginei que um dia diria isso... – a Ravena lilás falou novamente, e havia um toque de malícia em sua voz. - ... mas desta vez minha irmã teve uma ótima idéia.

– Ah, é, é? – Respondeu o metamorfo, que agora estava achando sua marca uma fofura. Realmente, é impressionante o quão rápido algumas pessoas conseguem mudar de idéia.

– Claro. Eu nem sempre vou estar por perto para te proteger, não é mesmo?

Diante dessa atitude, Mutano só podia seguir um, e apenas UM curso de ação. Sorriso de fazer os dentes refletir a luz que nem holofote.

– Garfield. – chamou a menina de capa púrpura, após alguns instantes. – O que você acha deste lugar?

Ele olhou mais uma vez ao redor, observando a paisagem. E, mais uma vez, se impressionou com a beleza do local onde estava. E era também uma beleza que podia ser realmente compreendida, pois este lugar, diferente do restante de Nevermore, parecia-se bastante com o mundo real. Se não fosse pelo sol verde, a superabundância de flores lilás, e uma estranha ausência de imperfeições, o Titã verde acreditaria estar na Terra.

– É lindo. – disse o metamorfo, pasmo. – Eu... eu poderia criar uma família aqui.

– Obrigada. – respondeu ela, abraçando-o. Eu nunca teria conseguido terminar, sem a sua ajuda.

– Ajuda? – Mutano não estava compreendendo. – Mas... eu não fiz nada....

– Ah, você fez, acredite. Mais do que possa imaginar...

–----------------------------------------------------------------------------------------------------------

Ravena já estava começando a achar que não devia ter vindo.

Se não tivesse a certeza de que sua contraparte marrom era da mais absoluta confiança, seria capaz de jurar que estava sendo enrolada. Desde o momento em que alcançara o topo da montanha, a empata fora forçada a esperar sabedoria terminar uma LONGA sessão de meditação, e depois disso, a conversa simplesmente parecia não sair do lugar. Evasivas, charadas, respostas com múltiplas interpretações possíveis... era apenas isto o que ela estava recebendo, hoje.

Só que, no momento em que Ravena se levantou, decidida a exigir que sua emoção marrom fornecesse respostas diretas... foi novamente assaltada por uma sensação. Era tão intensa quanto a anterior, mas diferente. Era... caloroso. Reconfortante. Prazeroso. Como se, de repente, todo o resto do mundo deixasse de existir, exceto ela. Ela... e uma outra pessoa.

– Isso é interessante. – comentou sabedoria, ao ver Ravena cambalear como se estivesse tonta. – Então, Mutano deve ter se encontrado com Afeição... não imaginava que isso pudesse afetar você diretamente.

– O... o quê? – Perguntou a empata, enquanto a compreensão lentamente assumia um lugar em sua mente. Então, ESSA era a razão para esse... fenômeno estranho? Afeição tinha encontrado Mutano e não o trouxera de volta?

– Espere aí. – a compreensão fizera uma dúvida germinar na cabeça da adolescente. – Afeição está junto com o Mutano? Há quanto tempo? E fazendo o quê?

A face de Sabedoria assumiu uma expressão de leve divertimento ao ouvir isso:

– Ora, Ravena. Será possível que você esteja com ciúmes de VOCÊ MESMA?

– Não. – respondeu ela, rangendo os dentes, enquanto andava de um lado para o outro, tão duro que mais parecia estar martelando o chão. – CLARO que não estou.

– Então podemos retornar ao nosso assunto, não podemos? - O rosto da emoção marrom ainda tinha aquele sorriso de quem sabe das coisas.

– Como quiser.

– Muito bem. – Sabedoria fechou os olhos por um instante, enquanto enchia os pulmões de ar. Mas um gotão de suor surgiu em sua cabeça, quando os abriu novamente: não havia qualquer traço de Ravena por ali. – É, foi mais rápido do que eu esperava...

Finalmente sozinha, a emoção de capa marrom saiu da posição de lótus que já vinha mantendo há horas, e tirou um cristal de dentro da capa. Dentro dele estava uma imagem que poderia passar por seu reflexo, se não fossem pelos óculos e o capuz amarelo:

– Fase um e dois concluídas. Reúna as outras e daremos início à fase três.

E então se sentou novamente, guardando o cristal. Bem a tempo de ver Ravena ressurgir à sua frente, largando no chão um Mutano amarrado e amordaçado.

Diante dessa cena, Sabedoria só pôde levantar a sobrancelha esquerda, em um gesto que servia para indicar sua curiosidade.

– Não é ciúme. – declarou a empata. – Mas acontece que não me sinto muito inclinada a dividir, hoje.


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