Beastman escrita por Cicero Amaral


Capítulo 2
Capítulo 2




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Eu não sou dono de Teen Titans, infelizmente. Se eu fosse, o show nunca iria sair do ar.

  

 

            O quarto de Mutano poderia passar por uma zona de guerra. Roupa suja, brinquedos velhos, papéis, caixas de pizza vazias e vários tipos diferentes de lixo se acumulavam em pilhas aleatórias jogadas no chão. Um beliche, um armário, e um espelho de corpo inteiro eram os únicos itens que pareciam ter utilidade. Ele entrou e, chutando algumas pilhas de roupa suja para um canto, abriu caminho até o espelho. E olhou diretamente para sua forma refletida:

- Amanhã temos algo a fazer. Vai ser moleza. – disse para a imagem no espelho, flexionando os bíceps. – Com todo este charme natural, minha boa aparência, que garota poderia resistir a... – Ele interrompeu a fala quando realmente VIU o que estava no espelho.

-... mim...? – Murmurou hesitante, chocado. Assim como muitas coisas que fazia, o titã verde não prestava atenção no espelho. Pelo menos, não mais que o necessário para trocar de roupa e muitas vezes nem isso. Desta vez, porém, ele olhava sua imagem atentamente, sem perder nenhum detalhe sequer.

            E não gostou do que viu. O espelho estava lhe dando uma dura mensagem. Viu que era magrelo, com pouca ou nenhuma musculatura perceptível por baixo do uniforme. As mãos e os pés pareciam desproporcionais em relação aos braços e às pernas. Não conseguia ver em sua figura nada que irradiasse autoconfiança, ou proteção. E ao ver tudo isso, deixou as orelhas caírem, notando que isso não ajudava em nada a imagem do conjunto.

- Cara! Não é justo! Eu posso ser qualquer animal que quiser, mas não posso melhorar o original em nada! – Ele gritou frustrado, sem se preocupar que alguém pudesse ter escutado, desabando na cama em seguida.

            Não que estivesse tentando dormir. Ao invés disso, sua mente não parava de orbitar em torno dessa questão. Ele podia ser qualquer animal que quisesse, e, mesmo mantendo a mesma cor verde-grama em todas as suas formas, elas costumavam ser tão ou até mais bonitas que o animal verdadeiro. Ele já havia se transformado em um cachorrinho para entreter algumas crianças em um parque, e em outra ocasião se transformara num gatinho, o que fez Estelar carregá-lo no colo pela Torre por horas, para extremo ciúme de Robin. Desde então ele só se transformava em gatos adultos, pelo menos na frente da princesa alienígena. Foi então que uma percepção o atingiu como um murro:

- Espera aí! Será que...? – Ele pensou em voz alta, sem se mexer. Um número imenso de possibilidades percorria sua mente, algumas razoáveis, mas a maioria beirando a insanidade. Ele lembrou que podia virar um cachorrinho, mas quando as missões exigiam, ele sempre se transformava em um animal adulto. Isso significava que ele não estava restrito a um indivíduo específico de cada espécie. E ele sabia também que seres humanos SÃO animais, afinal de contas. A combinação desses fatos fez um largo sorriso aparecer em seu rosto verde.

- Vale a pena tentar. O que tenho a perder, afinal de contas? – Ele pensou, levantando-se. Mutano tirou a roupa e começou a se concentrar, tentando mudar sua forma, mas nada aconteceu. Ele começou a morfar em animais aleatórios, então passar para uma forma humanóide diferente da sua, mas sem sucesso. Ele continuou a tentar durante horas, e já estava tão cansado que começara a cometer erros. Por duas vezes, quase destruiu o próprio quarto, ao se transformar em animais grandes demais por engano. Exausto, caiu sentado no chão imundo, olhando para o próprio rosto refletido no espelho, imaginando o que poderia ter dado errado. Ele deixou sua mente voltar para vários anos antes, quando ainda era uma criança sem compreensão a respeito de seus poderes. E, relembrando esses dias, ele encontrou a resposta.

            Para se transformar, Mutano precisava se concentrar no animal que desejava ser. Precisava formar uma imagem mental da criatura, e quanto mais nítida a imagem, mais rápida a transformação. E uma vez transformado, era preciso ainda concentrar-se para manter a forma escolhida, bem como não deixar os instintos naturais do animal assumirem o comando. Após uma década de prática, controlar seus poderes tinha se tornado sua segunda natureza, não mais requerendo esforço consciente para tal. Se ele quisesse mudar sua forma humana, precisaria começar pelos níveis mais básicos de controle.

            E foi o que ele fez. O metamorfo cobriu o espelho com algumas roupas velhas, e, de olhos fechados, começou a re-imaginar seu próprio corpo. Durante muitos minutos tensos, ele dedicou toda a sua concentração para forçar seu organismo a mudar. Sem olhar para a sua imagem no espelho, ele pôde imaginar a si mesmo de forma diferente. Em sua mente, via a si próprio muito alto, com ombros largos, e músculos salientes e poderosos como rocha. Seu “retrato mental” mantinha a cabeça intocada, exceto pelo cabelo: ele os visualizou longos e espessos, caindo em seus ombros como uma cascata esmeralda. Mas mesmo quando ele tinha visualizado firmemente o que estava prestes a se tornar, a mudança não vinha. O suor começou a cobrir todo o seu corpo, e nada. O cansaço estava se insinuando em seus músculos rígidos, e nada parecia entravar-lhe a conquista. E, quando Mutano estava quase convencido de que tomar outra forma humana era impossível, algo aconteceu. Ele sentiu a perna esquerda perder subitamente o contato com o chão. O peso do seu corpo imediatamente pendeu para esse lado, fazendo-o cair ruidosamente no chão:

- Ai! Mas o que que houve? Eu não mexi as pernas! – Ele disse ainda deitado, massageando a perna direita, que estava pulsando de forma estranha.

            Ele continuou assim por alguns minutos, rememorando os últimos minutos. Ele estava se concentrando, e de repente, sem que ele se mexesse, a perna esquerda se soltou do chão, ainda que a direita permanecesse onde estava. Ele sentiu o corpo mais pesado do lado esquerdo, e então caiu. O que poderia ter acontecido? Será possível que...?

- Isso! Eu consegui! Eu posso mudar até minha forma humana! – Gritou, mais uma vez sem se importar que os demais Titãs estivessem ou não escutando, ao mesmo tempo em que dançava sua dança da vitória, normalmente reservada para as raras vezes em que conseguia derrotar Ciborgue nos videogames. O fato de não ter uma “vitória”, ou pelo menos alguém para ver, não pareceu incomodá-lo. De fato, ele terminou o último movimento e se posicionou para morfar de novo, desta vez com os olhos abertos. Ele queria ver a recompensa pelo seu esforço.

            Concentrando-se ao máximo, ele se esforçou para mudar o corpo. Desta vez, no entanto, as mudanças vieram mais rápido, mas não da maneira como ele esperava. Viu suas mãos crescerem, e ficarem maiores do que sua própria cabeça. Pesadas, elas o forçaram a se curvar até encostar nos pés. Novo esforço, e as mãos voltaram ao normal, mas sua barriga inchou como um balão, fazendo-o parecer grávido. Esforçando-se ainda mais do que antes, ele sentiu o ventre assumir sua forma original. Mas tão logo isso aconteceu, sua perna direita cresceu, deixando a esquerda suspensa no ar por alguns segundos, antes de cair no chão novamente.

- É. – Mutano suspirou, resignado. – Isso vai levar algum tempo.

            E prosseguiu com as tentativas. Qualquer que fosse a razão, ele não conseguia terminar a mudança. A cada tentativa, o resultado era uma ou duas partes aleatórias de seu corpo que inchava e crescia de formas bizarras, sem que tais mudanças fossem acompanhadas pelas outras. Não era apenas isso. Freqüentemente, um braço ou perna modificada apresentava feições estranhas, como uma junta ou músculo extra. E mudar o próprio organismo dessa forma era cansativo e doloroso. (os outros Titãs acrescentariam as palavras “estúpido” e “perigoso”). Apesar disso, seja por força de vontade superior ou pura temeridade, Mutano não interrompeu seus esforços. Somente após o que pareceram horas, ele conseguiu estabilizar uma forma nova. Exausto, sentindo dor dos pés à cabeça, olhou na direção do espelho. Nele, viu o que desejava ver: a si mesmo, só que muito mais alto e musculoso, com uma vasta cabeleira verde sobre a cabeça e os ombros. Satisfeito, voltou à forma original e caiu na cama, adormecendo imediatamente.

 

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            O café-da-manhã na estava tão animado como de costume, Robin lia o jornal, procurando notícias a respeito de crimes que pudessem exigir a atenção da equipe. Estelar, feliz como sempre, devorava uma pilha de panquecas coberta em mostarda. Ciborgue operava a cozinha, preparando as refeições de todos. Ravena e Mutano não estavam presentes, mas isso não era de se estranhar. Ravena provavelmente devia estar no telhado, meditando, quanto a Mutano, este freqüentemente dormia até tarde. Mas um café-da-manhã sem ele e Ciborgue travando o tradicional debate carne vs. tofu não era a mesma coisa.

            Logo os três ouviram passos se aproximando pelo corredor. Robin estranhou isso, pois os seus 2 amigos ausentes se moviam silenciosamente. Ravena porque preferia levitar ao invés de caminhar, e Mutano porque era pequeno e leve. Mas se lembrou dos inúmeros sistemas de segurança instalados na Torre, alguns por Ciborgue em pessoa. Sabendo que nada poderia invadi-la sem ser detectado, o menino-prodígio relaxou.

            Pelos próximos trinta segundos.

            E então os três Titãs viram algo para o qual não estavam preparados. Uma imensa criatura humanóide estava tentando entrar na sala, mas parecia entalada na porta. O que quer que fosse, tinha uns 2 metros de altura, andava curvada sobre si mesma, com braços anormalmente longos, que mais pareciam troncos de árvore. A maior parte da cabeça e dos ombros estava coberta por uma juba de pêlos verdes, e seu corpo maciço tinha uma aura intimidante.

            Após o choque inicial, os três Titãs se prepararam para lutar. Robin já tinha preparado seus discos congelantes, Estelar tinha nas mãos esferas de energia esverdeada, e Ciborgue estava com seu canhão sônico apontado para a cabeça da criatura.

            Percebendo que o inimigo recém-chegado ainda não fazia menção de agredi-los, o líder dos Titãs não deu a ordem para atacar, ao invés disso estudando o adversário. Sem dúvida, algum mutante ou experimento fracassado...pelo menos foi o que pensou, até ver os olhos do estranho ser.

- Mutano?!? É você?? – ele percebeu, mal acreditando nos próprios olhos.

- Oi gente! Tudo bem? – disse o metamorfo, com um sorriso bobo em seu rosto. – E aí, o que acharam do meu novo visual?

 

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            Mutano achava que tudo deveria ter sido mais fácil. Ele acordara cedo, o que era uma raridade, e imediatamente começou a mudar de forma. Gastou quase uma hora para isso, e imediatamente dirigiu-se para a sala comum, sentindo que seu corpo modificado, rígido e dolorido, não se movia como deveria. Era preciso colocar um pé adiante do outro lentamente, tomando todo o cuidado para não cair.

            Ele precisara de cinco minutos inteiros para vencer a distância entre seu quarto e a sala onde seus companheiros tomavam o café-da-manhã. E, naquele instante, vendo os três olhando para ele, com os olhos arregalados como pratos e com os queixos praticamente tocando o chão, sentiu orgulho de si mesmo.

- É, eu sei, podem falar. Quem é O CARA? Hein? Hein? – Ele não iria perder a oportunidade de se vangloriar.

- Mutano, o que aconteceu? – Robin perguntou, com preocupação óbvia, mesmo através da máscara.

- Cara, quem foi que fez isso com você? – O adolescente metálico parecia furioso.

- Amigo Mutano, você está passando por uma fase de crisálida como a que eu passei anos atrás? – Estelar perguntou, inocente. – É por isso que você está com uma aparência tão hedionda?

            Mutano baixou as orelhas, decepcionado. Não era essa reação que esperava. Sentiu-se tentado a acusar seus amigos de inveja, mas a expressão preocupada no rosto deles o convenceu do contrário. Então ele contou aos três o que estivera fazendo no dia anterior.

- Mas, amigo Mutano, eu não entendo. Por que você precisaria de mais massa muscular se a qualquer momento você pode se transformar em feras mais fortes do que uma dúzia de terráqueos? – Estelar podia ser inocente, mas não era burra. Sua lógica simples fez com que lâmpadas acesas surgissem sobre as cabeças dos dois jovens sentados à mesa, que trocaram um olhar cúmplice e, um instante depois, caíram no chão, rindo completamente descontrolados.

            Ele queria responder algo. À sua frente estavam Ciborgue e Robin, rolando no chão e chorando de tanto rir, e, à sua esquerda, uma Estelar ainda sem entender o que poderia ser assim tão hilariante. Controlando o impulso de simplesmente pisotear as cabeças de seus colegas indefesos, esticou lentamente o braço na direção de uma jarra de suco de laranja, mas não conseguiu agarrá-la. Seu braço gigantesco era grande e desajeitado demais, e, além disso, para se manter na forma atual era necessário tamanho esforço de concentração que mal era possível se mover. Após quase dois minutos de esforço doloroso, a jarra foi finalmente pega e ele estava prestes a beber, quando...

- E então, garanhão? Quem é a bela dama? Quando é que você vai nos apresentar ao Monstro do Pântano? – Provocou um Ciborgue parcialmente recuperado.

- Ou então talvez seja alguém conhecido? Ouvi dizer que Pantha tem a maior queda por caras grandes e peludos... – Robin disse entre uma risada e outra, sem se incomodar em sair do chão.

            Era suficiente humilhação para o pobre metamorfo. Ele estava prestes a saltar sobre os ofensores quando uma voz familiar o fez mudar de idéia:

- Qual a razão de todo esse barulho? – Ravena entrou na sala, dirigindo-se para o fogão, onde começou a preparar uma chá de ervas. E, sem sequer olhar para os lados, perguntou – Mutano, o que aconteceu com você?

            Ele se empertigou antes de responder, ficando ainda mais esquisito do que antes.

- Idéia minha, Rae, Gostou?

- Não. Você está horrível – Ela respondeu, sem tirar os olhos do bule de chá.

- Amiga Ravena, os amigos Robin e Ciborgue acreditam que tudo isso é para que o amigo Mutano possa fazer uma “impressão” em outras garotas. – Disse Estelar sem saber realmente do que estava falando. Mas sua intuição feminina estava certa, e a empata percebeu isso:

- Bem, Mutano, você acaba de trazer sua estupidez a um novo nível. – Ravena estava agora encarando-o. – Por acaso você já se olhou no espelho?

            A primeira reação do garoto verde teria sido dizer “sim”, e seria verdade. Mas ele também lembrou que (como sempre), não tinha realmente prestado atenção na sua forma refletida:

- Hum, acho que não? – Foi tudo o que foi capaz de dizer.

- Como sempre. – Ravena retrucou sarcasticamente, voltando-se para o chá, que já estava fervendo.

- Ah, qual é o seu problema desta vez, Ravena? Eu queria músculos maiores, sim. Precisa me insultar por causa disso? – Mutano estava frustrado.

- Falar a verdade é insultar? – ela sibilou, encarando-o novamente. – Você nunca pára para pensar e faz uma idiotice atrás da outra. Quer correr atrás de alguma fã acerebrada e não tem nada para mostrar. Decide parecer um desses fisiculturistas vazios, mas está com preguiça demais para malhar. E qual é o resultado? O exterior é horrível, o interior, falso, e a cabeça, vazia! Não me diga que você realmente estava esperando que alguém fosse saltar nos seus braços?

            A sala estava mortalmente silenciosa agora. Durante alguns momentos tensos ninguém sequer respirou. Mutano abriu a boca para falar, mas estava nervoso demais e acabou perdendo a concentração, o que fez com que retomasse a forma origina de modo quase instantâneo. Na verdade, pareceu um balão de ar se esvaziando. A cena foi tão bizarra que desta vez, não apenas Robin e Ciborgue começaram a rir, mas Estelar também.

            Cansado de ser humilhado, Mutano saiu da sala comum.

 

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- Droga! Droga, droga, droga, droga! – O mais jovem Titã andava de um lado para o outro, na pedra em que costumava sentar para pensar.

            Ele estava magoado, deprimido, e com raiva. Magoado com seus companheiros Titãs, pela forma que o trataram antes. Deprimido, porque seu plano falhara miseravelmente e agora não tinha certeza do que fazer. E estava com raiva de si mesmo, por não ter prestado mais atenção no que estava fazendo antes de mostrar aos demais.

            Mutano sabia, no entanto, que devia ter esperado a reação de Robin, Ciborgue, e Estelar. Do ponto de vista deles, devia ter sido realmente engraçado. Não que isso o fizesse se sentir melhor, claro. Ele sentia que também tinha perdido respeito por parte de seus colegas. Muitas vezes, o metamorfo sentira que fazia parte da equipe apenas para servir como alívio cômico e mais nada. É verdade que adorava contar piadas e pregar peças nos amigos (especialmente seu melhor amigo Ciborgue), e que alguém tinha que melhorar o humor do grupo de vez em quando. Mas ele também se orgulhava de ser um herói, e nesse momento, não se sentia assim. Quanto a Ravena, ela tinha sido especialmente cruel. Este era o segundo dia em que ela o castigava com muito pouco motivo, e com intensidade maior do que de costume. Bem maior.

            Mas o que o incomodava DE VERDADE era que ele já tinha ouvido coisas assim antes. A primeira voz que deixou os recessos escuros de sua memória para assombrá-lo foi a do Cérebro, o líder a irmandade Negra, que os Titãs haviam derrotado poucos meses antes:

            ... você sempre se esforça tanto, e sempre falha tão completamente.”

            A segunda lembrança foi de palavras ditas por Ravena, apenas algumas horas atrás:

            “Você nunca pára para pensar.”

            “Você não tem nada para mostrar.”

            “...está com preguiça demais.”

            Ele se lembrou do “fim do mundo”, um evento ocorrido antes do confronto com a Irmandade Negra. No décimo sexto aniversário de Ravena, ela, de acordo com uma antiga profecia, se tornaria o portal que permitiria a Trigon, um poderosíssimo demônio, adentrar este mundo e dominá-lo. Apesar de todo o esforço dos jovens Titãs, a profecia se realizara, e o demônio realmente conquistara o planeta, reduzindo-o a uma vastidão infernal.

            Fora Ravena que, antes de se transformar no portal, que os protegera contra a magia de Trigon. E, graças a nada menos do que um milagre, ela não tinha sido destruída, mas ficando presa na forma de uma garotinha de 6 ou 7 anos, sem quaisquer poderes. Coube a Ciborgue, Estelar e Mutano distrair o invasor, enquanto Robin literalmente desafiou o próprio inferno para resgatar a empata. E, algumas horas depois, quando todos os Titãs estavam no chão, derrotados pelo incomensurável poder de Trigon o Terrível, foi na direção do menino-prodígio que ela correu, praticamente pulando por cima do metamorfo. Por um milagre, Ravena ainda possuía poder, e com ajuda das almas de Azarath, pôde voltar à sua forma verdadeira e banir Trigon de uma vez por todas. Após esse feito inacreditável, ela, purificada, em um uniforme branco, ao descer dos céus como um anjo, correu e abraçou o líder dos Titãs de uma forma que, por um instante, pareceu até... romântica. “Alguém acreditou”, ela disse, com a cabeça apoiada no ombro dele. Mutano, surpreso com o comportamento dela, precisou ser convencido que a figura de branco diante dele era mesmo a verdadeira Ravena. Mas quando foi a vez dele de abraçá-la, o que ela disse?

            “Pare.” Sem demonstrar emoção na voz.

            Mutano estava completamente absorto em suas memórias agora, que vinham sozinhas, sem qualquer ordem definida.

            Desta vez foi Terra quem surgiu em sua mente. Esta menina tinha sido parte dos Titãs por um tempo, e havia sido uma das poucas pessoas que parecia tê-lo aceitado pelo que ele era. Era alegre, bonita, com olhos azuis e cabelo loiro que descia até a linha da cintura, e talvez a única pessoa no mundo que realmente o achava engraçado. Ou assim ele tinha pensado. A geomante, em troca de controle sobre seus poderes, havia se vendido a Slade, um terrorista psicótico que havia enfrentado os Titãs várias vezes. Ela quase havia assassinado seus amigos e destruído a cidade. No fim, ela se sacrificou para deter um vulcão criado por seus próprios poderes, transformando-se em uma estátua no processo. Mutano, apesar de opiniões em contrário, acreditava que tinha falhado para com ela, não uma, mas duas vezes. Primeiro, ao não ser bom o bastante para que Terra não tivesse escolhido Slade ao invés dos Titãs, e segundo, por não ter sido capaz de salvá-la no fim.

            Recentemente, ele havia descoberto que Terra havia, de alguma forma, escapado de sua prisão de pedra, e estava vivendo como uma colegial comum na cidade. No entanto, ela negava ter quaisquer lembranças ou desejo de ser uma Titã novamente. Isso era algo que o metamorfo não entendia. De fato, o que de mais próximo havia para uma explicação veio de um robô-Slade, que ele tinha destruído semanas antes: “Ela não quer se lembrar de você”.

            A esta altura, quaisquer linhas de pensamento consciente tinham abandonado a mente do Titã mais jovem. Ele não estava mais conseguindo se concentrar, estando em meio a um turbilhão de emoções e lembranças, todas desagradáveis.

            “Irritante”.

            “...nada para mostrar”.

            “...sempre falha tão completamente”.

            “esse seu amigo Mutano parece ser um gênio...”

            “Ela não quer lembrar de você”.

            “Imaturo”.

            “As coisas mudam”.

- CHEGA!!! – Ele gritou para o vazio da noite, recusando-se a se deixar dominar pelo desespero. E então mergulhou na água gelada da baía, esperando que o choque gelado esvaziasse sua mente.

            Assumindo a forma de um golfinho, nadou em volta da baía três vezes. Ao terminar, cansado, com frio e faminto, estava se sentindo bem melhor. Não havia mais confusão em sua mente. E, resoluto, falou para si mesmo, sozinho sob a luz da lua e das estrelas. Naquele momento, ele estava com um olhar de pura determinação e uma postura tensa, sem parecer em nada com o piadista despreocupado de sempre:

- Eu sou um herói. Sei que sou. Mas está na hora de mostrar isso para o resto do mundo. – E então, mais calmo, sorriu como de costume. – E, nas horas vagas, fazer os outros rirem comigo, e não de mim.

            Ele ainda não sabia como iria fazer, mas uma coisa era clara: nada de mudar sua própria forma humana. Se queria um corpo mais bonito, iria obtê-lo da maneira antiga. Sonhador, tentou pensar em si mesmo em uma academia cercado por gatas, mas em vez disso, só conseguiu ver o rosto de uma garota: Ravena.

            O Titã suspirou. Por que ele tinha que gostar dela? A empata certamente não gostava dele. Quase sempre que tentava interagir com ela, sempre tentando entrosá-la com o grupo, sempre tentando fazê-la rir, o resultado era um Mutano correndo pela sua vida (bem, quase). E, desde a viagem a Tóquio, ela estava ainda mais agressiva, praticamente saindo do seu caminho para machucá-lo. Mas ele não sabia por que gostava dela. Só sabia que gostava.

- E tenho que fazer algo a respeito. Tenho que tirar esse peso dos ombros. E, se ela disser não... bem, pelo menos poderei ter certeza. – Ele falou consigo mesmo.

            Mas o que fazer? Não era simplesmente mirar o coração de uma garota qualquer. Os poderes de Ravena eram abastecidos por emoções, e podiam ser incrivelmente perigosos se ela perdesse o controle. Ela sempre dizia que não podia sentir. Mesmo livre da influência de Trigon, ela continuava se esforçando para suprimir toda e qualquer emoção. Como lidar com uma pessoa que não podia, ou, se podia, ia fazer de tudo para evitar amar? Se ele ao menos soubesse qual o truque usado por Malquior...

            Mutano quase saltou quando a lembrança atingiu-o. Pois SABIA. Sabia tudo o que acontecera no breve período em que Malquior esteve fora do livro. Ele levara a empata a acreditar que ele era um mago, aprisionado em um livro encantado por um dragão. Na verdade, ele ERA o dragão, e tinha manipulado os sentimentos de Ravena para que ela o libertasse da maldição. O metamorfo sabia, porque tinha espionado o quarto dela, sob a forma de uma mosca, durante todo aquele período. Naquela época, ele não sabia descrever nem a sensação de vazio que sentiu ao ver sua amiga se apaixonar pelo dragão disfarçado, nem porque, mesmo vendo como ela parecia feliz, desejara que o livro amaldiçoado jamais tivesse sido encontrado. Hoje, ele sabia o que era.

            Ciúme.

            Durante o pouco tempo em que esteve apaixonada, Ravena não teve quaisquer problemas para controlar seus poderes. De fato, ela parecia ter mais controle do que nunca. O que o fazia odiar ainda mais o dragão, que mal havia sido libertado e não esperara um segundo antes de revelar à empata que só tinha usado ela. Mesmo que tenha sido reaprisionado no livro, o estrago estava feito: ele havia partido o coração dela. A pobre menina tinha provado felicidade apenas para vê-la arrancada em um instante. Mutano tinha oferecido um ombro amigo naquela noite, e, embora ele não soubesse, fora esse simples gesto o que mais a ajudara a superar o incidente.

            O metamorfo suspirou. Ele odiava pensar em Malquior, e mais ainda aprender sobre seus métodos. O que o dragão tinha de especial? Ele só conseguia pensar em: 1- a maneira como falava. Parecia alguém que sabia de tudo. Era autoconfiante, mas não com a arrogância agressiva de um lutador, mas com uma certeza de que tudo iria sair bem; e 2- O dragão parecia conduzir a jovem.Ele não realmente pedia a opinião dela. Simplesmente agia. Simplesmente não dava tempo a Ravena para ter dúvidas ou inseguranças

            Será que isso era tudo? Ser autoconfiante e “assumir a liderança”? Não parecia ser ruim. Valeria a pena tentar. Mesmo que não fizesse muito sentido para ele.

            E, transformando-se em um pardal, voou até seu quarto. Os próximos dias seriam movimentados.


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