Beastman escrita por Cicero Amaral


Capítulo 14
Capítulo 14




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Teen Titans não me pertence, blábláblá, em qualquer forma ou blábláblá, Qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais blábláblá... acho que vocês já devem ter sacado isso, a essa altura do campeonato. A propósito... Eldest e a Trilogia da Herança também não são obras minhas.

  

 

            Já passavam das dez quando Ravena finalmente decidiu sair do quarto e descer para comer alguma coisa. Um horário extremamente tardio, considerando-se que ela normalmente se levantava com o sol, em torno de seis horas da manhã.

            Porém, a empata tinha suas razões para tal comportamento. Tinha acordado irritada, devido aos vários acontecimentos do dia anterior, e, por essa razão, decidira não participar do café-da-manhã junto dos demais. Não queria correr o risco de perder o controle com eles por perto. Especialmente porque, hoje, esse risco estava bem maior do que o habitual. Ravena nunca fora exatamente uma fã do ruído, agitação, risadas, conversas e discussões por bobagens sem sentido que acompanhavam a hora do café na Torre. Faltavam poucas gotas para transbordar seu copo, e, quando isso finalmente acontecesse, alguém ia fazer cabum.

            Além disso, ela ainda não sabia qual atitude deveria tomar ante a certo problema. Um problema verde, de orelhas pontudas, e uma presa que teimava em aparecer do lado de fora de sua boca. Um problema que vinha ocupando cada vez mais espaço em seus pensamentos. Já tinha feito milhares de considerações negativas a esse respeito (mas a própria Ravena admitia que 99% eram incorretas, exageradas ou simplesmente falsas), bem como umas poucas positivas (todas perturbadoramente verdadeiras), mas no final, fora forçada a fazer quase o mesmo que o filósofo Sócrates: admitir que a única certeza que tinha era a de não ter certeza de nada. E isso era muito, mas muito frustrante.

            Enquanto fazia os últimos preparativos e arrumações antes de sair de seu quarto, a empata agradeceu por ter decidido, pela primeira vez em todos esses anos, matar um dos treinos matinais impostos a todos os Titãs. Sabia que, mais tarde, Robin iria lhe fazer perguntas, mas ela iria responder apenas que teve “problemas particulares”. O que, de fato, era verdade. Esperava que o garoto-prodígio entendesse a indireta da maneira errada e a deixasse em paz, mas, de um jeito ou de outro, não iria lhe dar nenhuma resposta além dessa.

            Dez horas e vinte e cinco minutos. Parecia mesmo a melhor hora para sair. Com seus quatro amigos treinando, ela podia descer sem medo de trombar com um deles. Um chá quente, bem forte, com uma colher de mel dissolvida nele, estava praticamente implorando para ser preparado e bebido da única maneira correta: em paz e com calma. Era um desses pequenos prazeres que ajudam a dar sentido à vida.

            Sim, com certeza isso a ajudaria a se acalmar. Uma hora inteirinha só para ela, em silêncio, só com a caneca de chá e seus pensamentos. Ravena tinha certeza que, depois desse intervalo, seria capaz de colocar os pensamentos em ordem: nada de treino, nada de barulho, nada de Titãs, nada de Mutano para lhe confundir as idéias.

            Antecipando os bons momentos que estava prestes a saborear, a empata abriu a porta. Foi então que viu algo que literalmente a fez cair para trás.

- Bom dia, Rae! Podemos conversar? – Saudou Mutano, que estava parado do outro lado de sua porta.

 

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            Mutano tivera muita sorte de estar com a manhã livre: Robin aparecera no café-da-manhã com o rosto meio amarelado, arrastando os pés, e com a fala pastosa. Após cambalear para dentro da cozinha, declarara que não estava em condições de treinar e, por isso, os demais Titãs deveriam fazer o programa de treinamento para quatro pessoas. Era um velho código da Torre: quando o menino-prodígio dizia “treinem sem mim”, os demais ouviam “dia de folga”. E o metamorfo pretendia tirar o máximo proveito desse dia.

            Ele estava parado ali, com o ombro direito recostado na parede ao lado da porta do quarto de Ravena, há uns bons trinta minutos, repetindo mentalmente as grandes palavras que pretendia dizer para sua misteriosa amiga. Que, por sinal, já deveria ter saído do quarto há muito tempo.

            Por sorte, ele não precisou ficar parado tempo o bastante para se sentir nervoso ou inseguro, pois um ruidoso “Bonc!” interrompeu suas divagações. Ele só viu um par de botas azuis apontando para o alto, enquanto dizia:

- Bom dia, Rae! Podemos conversar?

 

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            O metamorfo e a empata permaneceram algum tempo imóveis, olhando um para a cara do outro, surpresos demais para falar. Ela tinha certeza de que precisava pensar bastante antes de falar com o metamorfo novamente, mas ali estava ele, dizendo que queria conversar a respeito de alguma coisa que, por mais surpreendente que fosse, parecia séria. Já ele tinha a certeza que a veria sair calmamente do quarto, e logo depois lhe dirigir um olhar de irritação, mas ali estava ela, com a bunda no chão, olhando-o como se fosse... como se fosse... bem, o que quer que seja capaz de lhe dar um susto desses.

            Quando Mutano finalmente conseguiu processar o fato do que Ravena estava caída no chão, agiu da única maneira que julgava adequado: ajudou-a a levantar. No entanto, ao invés de simplesmente estender a mão, ele ajoelhou-se ao lado dela e, com o braço direito, prendeu firmemente a cintura da empata, ao mesmo tempo em que segurava a mão direita dela em sua mão livre. Um momento depois, levantou-se, trazendo-a junto consigo. Ela ficou suspensa no ar por um momento, presa ao braço do metamorfo, que, gentilmente, a baixou de volta até o nível do solo.

            Esse gesto não demorou mais do que uns poucos segundos para ser feito, mas para Ravena, pareceu durar muito mais. Ela esperava que ele achasse graça, pois o tombo que tinha levado era o tipo de coisa que fazia o garoto à sua frente literalmente rolar no chão de tanto rir. Mas não. Mutano meramente se abaixou e colocou-a novamente em pé. E, durante aqueles poucos instantes em que seus pés não estavam tocando o chão, apertou a mão do metamorfo com mais força do que esperava: naquele momento, ela só queria que ele não a largasse.

            Foi quando a empata firmou os pés no solo que os olhares de ambos se encontraram. Violeta encontrou verde, forçando dois corações a bater mais depressa. Os dois adolescentes permaneceram imóveis por longos minutos, incapazes de perceber o mundo à sua volta. Toda a existência se resumia ao olhar dele. Ao perfume dela. À forma como ele segurava sua cintura. À força com que ela estava apertando sua mão. Nada mais existia para os dois, exceto verde. E violeta.

            Foi com grande dificuldade que Ravena conseguiu baixar a cabeça, desviando seu olhar do de Mutano. Não podia mais continuar com isso. Se continuasse a fitar o rosto de seu colega, ia acabar... fraquejando. E ela não podia cometer um erro desses. Já sentia uma pequena fração de sua energia escapando, e precisava lutar com todas as suas forças para evitar um desastre. De fato, essa foi a única razão pela qual a empata conseguiu se forçar a olhar para baixo.

            Ao ver sua amiga abaixar a cabeça, o metamorfo, lentamente, soltou a cintura dela. A mão esquerda, no entanto, permaneceu onde estava: ela ainda a estava apertando com força. Ele estava muito contente, mas, por alguma razão, permanecia sereno. Não sabia de onde vinha toda essa calma; sabia apenas que era chegada a hora de fazer aquilo para o que vinha se preparando:

- Rae... – Chamou ele, baixinho.

            Ela não falou nada. Mas logo fez um pequeno movimento. Algo mínimo, apenas o suficiente para Mutano saber que ela estava ouvindo. E ele sabia o que deveria dizer. Tinha ensaiado. Só neste corredor, nos últimos 45 minutos, tinha repetido 74 vezes a frase que pretendia usar.

- Anteontem de madrugada foi legal, não foi? – Perguntou o metamorfo, jogando fora todas aquelas horas de preparação. Na verdade, ele deveria ter dito: “Gata. Eu. Você. 8 horas da noite. Lá fora”.

            Ravena sabia que ele estava se referindo à última noite que a equipe tinha assistido filmes junta, e deu de ombros, indiferente. Mas não conseguiu sair de onde estava. Nem tampouco soltar a mão dele.

- Sabe, Rae, eu reparei que você gostou daqueles filmes baseados em livros, então... – Mutano fez uma pequena pausa, para avaliar a reação da garota à sua frente, sem, no entanto, perceber nenhuma. Ou ela estava ignorando-o completamente, ou estava ouvindo atentamente.

- Bem, fiquei sabendo que hoje vai estrear Eldest. Baseado no segundo livro da Trilogia da Herança. – novamente, o Titã verde fez uma pausa. Precisava tomar fôlego antes de continuar, pois, com toda aquela expectativa, ele se esquecera de continuar respirando. – Então, eu fiquei imaginando se você não ia querer ir ao cinema assistir ao filme comigo.

            Essas palavras esmagaram a capacidade que Ravena ainda tinha de permanecer apática. Antes que pudesse se dar conta disso, estava olhando novamente para o rosto de seu colega, com uma expressão de absoluta surpresa estampado em sua face. As luzes do corredor oscilavam de forma a parecer com a aurora boreal, mas nenhum dos dois jovens conseguiu ver nada disso. Estavam concentrados demais um no outro.

            O metamorfo viu, não sem certo prazer, a empata quase que saltar com o susto. Normalmente, ele interpretaria isso como um sinal de recusa, mas não hoje. Ele só conseguiu achar engraçadinho, aquela menina quase que se contorcendo na frente dele, ao mesmo tempo em que o encarava com aqueles enormes olhos púrpura. Nos recessos de seus sentidos, podia ouvir um “tec,toc,tec” vindo do quarto dela, provavelmente objetos se mexendo sozinhos, mas não deu maior atenção. Ele tinha algo muito mais importante para ocupar suas orelhas agora.

- A... equipe... está indo ao cinema hoje? – Indagou Ravena, evasivamente. Tinha entendido perfeitamente o que o metamorfo quisera dizer da primeira vez, mas não queria acreditar. Ela não podia acreditar. E, novamente, baixou a cabeça, incapaz de sustentar o olhar de seu colega.

- Não Rae. Só eu e você. – respondeu ele, colocando ênfase nas palavras “eu” e “você”. – Hoje às oito, no cinema da praça central.

            A empata não podia mais ignorar o que o garoto verde estava dizendo. E isso a deixou apavorada. Quase que por reflexo, largou a mão dele e recuou um passo, tentando se afastar e fugir. Mas só conseguiu bater as costas na porta de seu quarto, que tinha deslizado de volta a seu lugar automaticamente. E ela só conseguiu ficar ali, parada, de lado contra a porta, os braços envolvendo a si mesma, evitando ao máximo olhar para o metamorfo.

            Ravena lembrou-se das palavras que ouvira no dia anterior. Estelar estava certa! Mutano estava bem ali na sua frente, pedindo um encontro! E ela tinha que dizer não. A empata não tinha palavras para descrever o que estava sentindo agora. Estava feliz pelo que tinha acabado de ouvir. Esse pedido tão simples, tão comum, encerrava um significado que a alegrava. Significava que ele a queria por perto. Que apreciava sua companhia. Talvez até... mais do que isso. Talvez fosse um sentimento verdadeiro o que o motivava. E essa era uma das coisas que ela mais tinha desejado em sua jovem vida. Por outro lado, no entanto, estava arrasada. Porque nada do que ele queira, pense, ou sinta, fazia alguma diferença. Nada do que a própria Ravena quisesse era relevante. Ela só podia fazer uma coisa agora: responder “não”. Que não queria ir a lugar algum junto dele.

            Ainda encostada na porta, ela se virou lentamente, de forma a ficar de frente para Mutano. Queria olhar nos olhos dele enquanto falasse, mas logo percebeu que não conseguia levantar a cabeça para encará-lo. Na verdade, ela mal estava conseguindo encontrar a voz para dizer aquilo que precisava ser dito.

- Mutano... eu... você... a gente... – Balbuciou a empata, com grande dificuldade. Ela agora sabia que, dentro do oceano de dúvidas no qual ela mergulhara, havia uma certeza: o que ela estava prestes a dizer agora... não era verdade.

            Engolindo em seco, Ravena tentou continuar falando, mas foi impedida. Um polegar verde pousou suavemente em seus lábios, silenciando-a. Em seguida, essa mão dirigiu-se a seu queixo, fazendo-a levantar o rosto e olhar fará a frente. E ela viu que seu colega tinha o olhar fixo nela, e estava sorrindo levemente.

            Mutano não estava muito certo do que estava compelindo-o a agir dessa maneira. Fora capaz de perceber que a empata estava em conflito, no momento em que ela tentara se afastar. Sentira uma pontada do medo da rejeição, mas não teve dificuldades para dominá-lo. Porque ele sabia que, se Ravena não o quisesse ali, há muito já o teria jogado longe. E, com toda a certeza, não teria quase esmagado os ossos de sua mão esquerda, se não o quisesse por perto. Na verdade, ela mais parecia estar com dúvidas, a respeito de alguma coisa. E, naquele momento, naquela situação, se Ravena não tinha certeza de algo, só podia ser de uma coisa: do que ele realmente sentia por ela.

            O metamorfo não queria que ela permanecesse em dúvida nem por mais um segundo. Foi por isso que a impediu de continuar falando. Foi por isso que pegou o rosto dela em sua mão, forçando-a a olhar novamente em seus olhos. Ele queira que ela visse. Que sentisse. Que entendesse tudo aquilo que ele estava sentindo.

            E ela viu.

            Viu como ele a estava observando agora. O olhar. O sorriso. Era algo tão intenso quanto na última vez, em seu quarto, mas também diferente. Não inundava seus sentidos tanto quanto daquela vez. Era antes um olhar caloroso, convidativo. Havia uma doçura ali, que a compelia a não desviar seus olhos dos dele. E, quando ela percebeu a mão dele tocando a sua, e dedos entrelaçando-se suavemente aos seus, não desejou fazer nada, além de segurá-los também.

            Ela também sentiu.

            Sentiu o que ele sentia. Emoções, tanto dele quanto dela, estavam sendo irradiadas livremente naquele corredor. Mas, desta vez, não era um caos rodopiante como antes. Ravena sentia claramente as emoções que vinham dele. Quais eram, e qual era sua intensidade. E ela viu que Mutano não tinha incertezas ou dúvidas. E, quando ele passou novamente o braço direito em sua cintura, puxando-a para si, não opôs resistência alguma, contentando-se em envolver os ombros dele com seu braço ainda livre.

            E, finalmente, ela entendeu.

            Entendeu que era verdade. Que era verdadeiro e sincero o sentimento que o metamorfo nutria por ela. Ali, naquele corredor, parada em frente a seu quarto, enquanto ele a pressionava contra seu peito, ela compreendeu o significado da tarde em seu quarto, dois dias atrás. Embalada pela vibração rítmica de dois corações que batiam em conjunto, ela entendeu o que a estava tocando tão profundamente. Estelar estava certa. O sentimento de Mutano era, realmente... poderoso.

            Quanto ao Titã mais jovem, este percebeu a sutil mudança no olhar da empata. Percebeu que ela não mais estava tremendo. Soube então que tinha conseguido mostrar a ela o que queria. Porém, ainda havia algo a ser feito. Não bastava apenas mostrar a ela o que sentia. Ele queria demonstrar isso. Da única maneira capaz de esmagar quaisquer dúvidas agora.

            Mutano removeu sua mão da cintura de Ravena e a levou até o rosto dela. Seus dedos acariciaram o cabelo e a face da menina, cuja única reação foi inclinar um pouco a cabeça, pressionando um pouco a mão que a tocava. Era chegada a hora. Fechando os olhos, o metamorfo aproximou seu rosto do dela, buscando contato com seus lábios. Esse momento já tinha sido adiado por tempo demais.

- Ai! – exclamou ele, levando a mão à testa dolorida. – Mas o quê...?

            Olhando à sua volta, Mutano viu que estava sozinho no corredor. Pelo visto, Ravena tinha se teleportado para outro lugar, e ele acabou dando uma cabeçada na porta (de leve, mas assustou). Uma parte dele estava frustrada e sentida com o fato de a empata fugir no último instante, mas todas as outras estavam vibrando de empolgação: a maneira como ela se comportara em seus braços não deixava dúvidas. Ele tinha certeza que seu convite seria aceito.

            Inspirando profundamente, conseguiu descobrir a localização de sua colega. Seu olfato lhe indicara que Ravena estava dentro de seu quarto, do outro lado da porta. Encostando-se a ela, Mutano proferiu a única, dentre todas as frases que tinha ensaiado para usar, que lhe pareceu espontânea, e acima de tudo, verdadeira.

- Ah, Ravena? Eu ia dizer para colocar uma roupa bonita, mas, sinceramente, que diferença isso faz? É você quem vai deixar o vestido bonito mesmo...

            E, tendo proferido estas palavras, o metamorfo se retirou, assobiando contente. Apenas um pensamento estava presente em sua mente agora.

- Cara... hoje é o melhor dia da minha vida!

 

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            Ravena estava sentada no chão de seu quarto, com as costas apoiadas contra a porta. Não parecia nem um pouco com ela mesma: o cabelo estava caído por cima do rosto, os braços estavam abraçados a suas pernas, e seu semblante em nada lembrava a expressão serena e indiferente de sempre. Muito pelo contrário. Qualquer pessoa que a visse agora, provavelmente iria pensar que a empata estava profundamente angustiada ou ansiosa. Exceto seus amigos Titãs, que provavelmente exigiriam saber “quem era ela e o que tinha feito com a verdadeira Ravena”.

            Não que a empata estivesse dando a mínima para isso. Ela tinha preocupações muito mais importantes para ocupar sua mente. A começar pelo motivo pelo qual sua respiração estava tão pesada e fora de ritmo, e que fazia com que as batidas de seu coração martelassem seu peito por dentro, tão forte que pareciam prestes a arrebentá-lo. Ela nunca tinha imaginado que passaria por algo parecido antes. E certamente, não imaginava que pudesse ser tão intenso assim.

            Ela se ausentara de seu quarto por menos de quinze minutos. E, em menos de quinze minutos, vários conceitos e certezas, antes absolutos para Ravena, foram demolidos como se não passassem de castelos de areia. Nada, seja neste mundo ou em qualquer outro, poderia tê-la preparado para lidar com tudo isso. De fato, essa foi a primeira certeza que Ravena viu ser destruída: a de que jamais teria que passar por uma situação como esta, ou seja, abalada e confusa demais até para conseguir permanecer em pé.

            A razão pela qual Mutano batera à sua porta era outra coisa que ela jamais esperava ver. Nunca imaginara que alguém, quem quer que fosse, pudesse ter esse tipo de interesse por... uma criatura como ela. Também estava certa de que ninguém jamais seria capaz de manifestar um sentimento verdadeiro em relação a ela. E o fato de essa pessoa ser o piadista imaturo, barulhento, hiperativo e irritante que vivia na Torre era a prova viva de que não existe mesmo essa tal de “certeza absoluta”.

            Mas, mais inacreditável do que um garoto a estar convidando para um encontro, mais improvável do que ser um sentimento sincero aquilo que o motiva, mais insólito do que esse garoto ser O Mutano, era o fato de a empata NÃO conseguir se sentir revoltada com esse último detalhe.

- Oh, Azar. – Ravena falou para si mesma, a sua testa ainda pousando sobre os dois joelhos. – Por que ele? Por que, de todas as pessoas no mundo, tinha que ser JUSTAMENTE ELE? Nada disso estaria acontecendo agora se fosse qualquer outra pessoa!

            Isso era verdade. Se fosse outro garoto qualquer, a empata não teria tido a mínima dificuldade em recusá-lo. E ela não teria nenhum conflito emocional como este. Porém, mais do que todas as pessoas que já conhecera, Mutano tinha uma capacidade única para trazer caos à vida dela; era sempre difícil conseguir manter o controle quando ele estava por perto. E, nos últimos meses, manter esse controle emocional completo que ela precisava tinha se tornado quase impossível. Alguma coisa nele a estava afetando cada vez mais, e isso estava virando seu mundo de cabeça para baixo. Ora, ela não estaria aqui agora se tudo estivesse normal, não é mesmo?

            Ravena se lembrou do momento anterior. De como ele olhara para ela. De como acariciara seu rosto. De quando ele a puxou para junto de si. E ela aceitara isso. Desejara isso. Durante os poucos instantes em que esteve envolta no abraço do metamorfo, partilhara mais do que o calor do corpo que estava junto ao seu. Naquele momento, pôde saborear suas emoções. Banhar-se nos sentimentos que ele lhe dirigia. A empata podia pensar em várias palavras para descrever o ocorrido, nesta e em todas as outras línguas que conhecia. Mas uma, e apenas uma, dentre todas elas, era capaz de cumprir tal tarefa com justiça.

- Inesquecível. – falou ela de olhos fechados, como que perdida em um devaneio. E talvez estivesse mesmo, porque havia um pequeno sorriso em seu rosto. Um sorriso de verdade.

            No entanto, com ou sem devaneio, a mente de Ravena foi trazida de volta ao momento presente. Estava um pouco mais calma agora, os pensamentos recuperando pouco a pouco a nitidez. E conseguiu enfim fazer a si mesma uma pergunta sem palavras: qual era o motivo para ela estar ali sentada, assustada como uma criança pequena? Porque se comportar assim, se ainda há pouco ela tinha vivenciado algo que antes só via em seus sonhos?

            A resposta veio sozinha para a empata, na forma de uma memória. Uma memória na qual podia ver o rosto de Mutano cada vez mais próximo ao dela. Na qual a mão dele se apoiava suavemente em sua face direita. Em que ela se deixou dominar pelo pânico, assim que percebeu o que ele estava prestes a fazer.

            Que irônico. Apenas dois dias atrás, a empata sentira vontade de esganar seu colega verde, por ele fazer (ou seria não fazer?) exatamente a mesma coisa que ela tinha acabado de fazer agora: mudar de idéia no último segundo. Uma pequena parte dela estava contente por lhe dar o troco na mesma moeda, mas todas as outras estavam praticamente uivando de frustração. Se Ravena soubesse disso antes, provavelmente não teria se irritado tanto. Pelo menos, sabia que sua fuga não o tinha afetado de verdade. Mutano tinha falado alguma coisa por trás da porta fechada uns poucos minutos atrás. Ela não tinha conseguido ouvir, mas sentira as emoções dele naquele instante. Seu amigo permanecia imbuído de alegria, mais até do que o habitual. O metamorfo se afastara irradiando felicidade com quase tanta intensidade quando o Sol irradia sua luz.

            Uma felicidade que Ravena sabia que jamais poderia ter.

            Sabia disso porque lembrava do que a tinha assustado. Seus poderes. No último instante, ela tinha pensado no que poderia acontecer se ficasse onde estava. Ela não queria ter fugido. Não queria. Mas que outra escolha tinha? Tinha lutado para manter o controle desde o instante em que trombou com Mutano na porta, e, assim que ele fez seu convite, não teve mais como impedir que uma parte de sua energia se libertasse. Energia que ela ainda podia sentir escapando.

            Criando coragem, Ravena levantou a cabeça para examinar seu quarto, já esperando pelo pior. Foi então que viu uma coisa que não tinha previsto.

            Conforme esperado, praticamente tudo ali dentro estava sob os efeitos de seus poderes, brilhando com uma aura preta, balançando-se, chocando-se e tombando. A luz, toda a luz, fosse ela solar, proveniente das lâmpadas ou das velas, oscilava com uma velocidade impossível. De fato, a luz estava sofrendo o mesmo efeito que as lâmpadas do corredor tinham sofrido há pouco. Pareciam a aurora boreal.

            Mas Ravena não estava interessada nas luzes. Havia algo mais importante intrigando-a, e esse algo era o fato que os objetos ainda existiam. Não era assim que seus poderes funcionavam. Quando a empata relaxava o autocontrole emocional, ainda que por um único instante, coisas explodiam. Quebravam-se. Derretiam. E nada disso tinha acontecido agora. Todos os seus objetos tremiam e estavam se movendo sozinhos, mas permaneciam intactos. E, se a empata não estivesse tão concentrada nesse estranho fenômeno, teria achado a luz de aurora boreal muito bonita.

            E a adolescente não tinha idéia de porque isso estava acontecendo. Somente uma vez ela tinha perdido o controle, sem que seus poderes reduzissem coisas a cacos. Fora dois dias atrás, neste mesmo quarto, quando ela e Mutano passaram por uma situação parecida. Muito parecida, na verdade. Só que Ravena não iria perder tempo investigando, pois tinha outra preocupação em mente agora.

- Eu não posso ir com ele. – pensou a empata. - Não posso.

            Esse pensamento, essa percepção de que ela precisava recusar o chamado de seu amigo foi... desagradável. Extremamente desagradável. E Ravena não conseguia entender a razão disso. Pelo amor de Azar, era Mutano quem a estava chamando! Barulhento, infantil, hiperativo, obtuso, desatento, teimoso, irritante e enxerido! Ela tinha absoluta certeza que antes que uma hora se passasse por lá, o metamorfo ultrapassaria todos os limites da sua paciência. Tinha certeza que ele faria das horas lá um festival de bobagens sem pé nem cabeça. Se isso tudo tivesse acontecido quatro meses atrás, a empata nem teria se dado ao trabalho de responder: simplesmente fecharia sua porta na cara do Titã verde. Mas agora... por que agora ela se sentia tão tentada a participar de uma atividade, a qual sabia que, na melhor das hipóteses, apenas toleraria?

- Eu não posso ir. Vai ter muita gente lá. É muito perigoso.

            Nem passou pela cabeça da empata que ela não gostava de multidões ou outros passatempos mundanos. Lembrando a si mesma de seu maior impedimento para sair naquela noite, esperava tornar mais fácil dizer não ao pedido de Mutano. Tudo o que conseguiu, no entanto, foi ficar ainda mais revoltada com Trigon (Que apodreça para sempre no abismo sem fundo!), sua origem e seus poderes.

- Eu não vou lá. – pensou Ravena durante o almoço, observando o debate carne vs tofu nº. 84723974, que estava em seu auge. – Olha só para ele, todo despreocupado. Aposto como está tentando me pregar uma peça, isso sim.

            Mentira. A própria Ravena reconheceu isso enquanto lavava seu prato. Sabia muito bem que ele brincava com qualquer coisa, menos algo realmente capaz de magoar um amigo. Sem falar que ela sentira as emoções que ele emitira antes, e não era possível uma pessoa conseguir mentir e, ao mesmo tempo, estar sob o efeito de emoções tão fortes. Não era uma peça, disso a empata podia ter certeza. O que também não a ajudava a dizer não.

- É melhor não ir. – raciocinou ela naquela tarde, com os olhos grudados em um livro que não estava realmente lendo. – Eu não disse que ia, afinal de contas. Não tenho nenhuma obrigação de ir.

            Talvez não, mas o metamorfo iria ficar chateado do mesmo jeito. A empata nunca tivera quaisquer problemas em cortar o barato dele no passado, mas agora era diferente. Quando Mutano terminara a conversa de manhã, estava quase brilhando, de tão contente que estava. E Ravena percebeu que não tinha vontade alguma de mudar isso.

- Mas como eu poderia ir? Não tenho nada adequado para ir com alguém ao cinema. – este pensamento a incomodara durante todo o seu banho, e estava de volta enquanto a empata examinava seu guarda-roupa, que praticamente continha só uniformes, capas, alguns pijamas, toalhas, e algumas roupas que Estelar tinha lhe dado de presente. Nada que considerasse bonito, ou, pelo menos, casual.

- É tarde demais para ir. – pensou a jovem, olhando para um relógio de bolso antigo, que guardava em uma das prateleiras de seu quarto. Seus ponteiros indicavam 19h54min. – Ele disse que era para estar lá às oito.

            Com isso, Ravena desabou na cama. Ela estava fazendo o que precisava fazer. Não tinha escolha. O que ela queria não tinha importância. Só aquilo que ela devia fazer era importante. E isso significava que era ali, naquele quarto, onde a empata iria ficar até o próximo nascer do sol.

- Eu não devia ter vindo. – lembrou ela, no meio das luzes que iluminavam a praça central da cidade, sua mão firmemente segura nas de seu amigo verde. – Não devia.


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