Sala Branca escrita por Maxine Evelin


Capítulo 1
Sala Branca


Notas iniciais do capítulo

Esta fic é melhor apreciada ouvindo a música White Room da banda Cream.
Espero que tenham uma boa leitura.



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Renny olhou para o teto, vendo as sombras brincarem de esconde-esconde, correndo de si mesmas num pega-pega escuro e triste, as faces sem forma gritando, os braços longos e tortuosos fugindo das mobilhas dentadas e do Sofá-Rei. Ouvia a risada de sua filha e de outras crianças tão espalhafatosas quanto ela. Ela que se lambuzava de Nutella e sujava a cortina da sala com suas mãos cheias de chocolate.

- Fácil, fácil as coisas acabam. - olhou para o cano prata da arma e seus olhos se fixaram no buraco que havia em sua extremidade, o cano parecia expandir e retroceder conforme sua respiração desritimada - É só um clique. Renny fechou os olhos e empurrou o cano da arma para dentro de sua boca, suspirou profundamente e puxou o gatilho. A arma fez um clique e o martelo estalou onde estaria à bala. Um som reverberou pela sala, mas logo foi consumido pelo barulho do trem na estação perto dali, deixando após sua passagem um desconcertante e mórbido silêncio.

"Aperte o gatilho, bang, fim de papo. Ela não volta".

Renny riu, e olhou para o abajur quebrado no chão da sala, a lâmpada jogada ao lado piscando e para sua arma na mão.

Existe um momento em que mesmo imerso na insanidade, você tem autonomia de se perguntar o que acontece, sente que em meio a aquela loucura, aquela sensação de perda e confusão, deve ter alguma explicação. Você estica a mão e tenta se agarrar a aquela luminária que lhe traz conforto, mas ela desliga e você é engolido. Fim. Você perde. Eles ganham. Simples, melhor que lutar para manter a lucidez.

- Você deveria parar de beber papai, isso faz mal. -

- Não, não faz filha, não, não faz.

- Papai, o doutor disse que você não está legal, tem emagrecido muito.

- Ele não entende de merda alguma! Não passa de um maldito clínico geral! - Renny virou-se para trás e tacou o copo de uísque na parede. O copo estourou num estalo oco que vibrou pela sala branca de cortinas negras. Uma mancha alaranjada na parede, igual seu fígado descolorado. - Você não sabe de nada!

Estava enlouquecendo, havia menos de duas horas

seriam mesmo duas horas?

que estava naquela sala e já estava enlouquecendo. Ouvia sua filha falar com ele, sentia ela por perto, sentia o cheiro de Johnson & Johnson de seus cabelos ruivos. Mas ela estava longe, não mais ao seu lado.

- Papai, tá chorando puque? -
Sorriu, lembrou do toque da mãozinha dela, segurando seu dedo quando bebê, da risada dela quando via chegar em casa do trabalho. - Papai?

- Você não está aqui! - chorou caindo de joelhos no chão, o peito ardia, a alma cansada parecia querer deixar o corpo. - Você não está aqui...

Levantou a cabeça e viu a sua mulher sentada no sofá. Marina estava olhando para ele, inclinada, mechas caindo sobre os olhos uma fisionomia preocupada.

- Renny, olhe para você, acabado. Sinto pena que ver você assim.

- Não, não sente. - A sala branca estremeceu com o barulho dos trens que passavam na estação litorânea, as cortinas negras ulularam e balançaram num movimento hipnótico. - Nunca sentiu. Desde que nos juntamos, nunca sorriu mais, nunca me olhava nos olhos.

- Renny, querido, este era você. Você está confundindo as coisas.

- Eu... Você está mentindo! Mentirosa! Você... Eu sei. - apontou para o sofá vazio. - Deus...

De vez em quando dava um gole seco e respirava fundo. As nuvens formavam uma camada acinzentada no céu, intensa e carregada, e o mar estava agitado batendo-se contra a parede de rochedos onde a Casa encontrava-se. O mar girava e levantava, fluindo com sua majestosidade liquida pela superfície das pedras, deixando seu rastro de espumas e investindo novamente contra a parede. Uma luta eterna daquele que tudo consome e daquele que resiste firme ao ataques do gigante furioso. Renny bebeu novamente, observando formas e ondulações hipnóticas que a água fazia ao escorrer constante pela janela.
Ele franziu a testa ao tomar mais um gole, a bebida causava uma sensação de ardor forte ao descer pelo esôfago. Doutor Claúdio havia diagnosticado durante a última consulta que tinha uma pequena úlcera formando-se ao longo do esôfago, depois de tantos anos de bebedeira. Cerrou os dentes para focar a dor na boca, mas pouco adiantava estes ultimas semanas, nem a dor da bebida fazia-o se sentir vivo. Nada traria sua filha de volta.

A chuva caia do lado de fora por umas duas horas sem parar, a intensidade continuava a mesma, ventos vindo do oeste, do mar, assoviavam pelas frestas das janelas que tremiam com a força do vento. A água deslizava pelos painéis do solarium no pátio abandonado. Não era exatamente uma casa, era um hibrido entre uma mansão que era antiga, o bastante para ser mantida naquele lugar como patrimônio histórico e uma casa de praia, daquelas que alugam para passar temporadas de férias e logo após ficam desabitadas por mais meses. Sempre em reformas, alguns sacos de cimento abertos num canteiro de obras abandonado e latas de tinta empilhadas no fundo do depósito, demonstravam que mesmo havendo um certo descaso sazonal, havia um cuidado para evitar que o lugar caíssem em pedaços. A sensação que Renny teve quando entrou pela primeira vez na Sala Branca, foi de estar invadindo um corpo de um idoso. Sentia a certa atmosfera saudável do lugar, bem iluminado e arejado o suficiente para o cheiro de mofo não ficar tão estagnado nas mobílias. Mas sentia as estruturas sofrendo, em cada ranger e estalos durante a noite como as juntas de um velho artrítico. Estava sentado em frente a janela com um copo de Jack Daniels com duas pedras de gelo, a garrafa jazia no chão, seca.

- Sabe, aqui não é um mal lugar. - disse Marina.

- É, não é um mal lugar. - disse Renny olhando para a janela.

- Pois é, acho que ela vai gostar deste lugar. Tenho quase certeza disso. - Renny olhou para a barriga de sua mulher, inchada de nove meses. Seu bebê, o fruto que fixara seu casamento, que lhe dera uma oportunidade de ter sua família. Sua felicidade. - Talvez. Acho que esta casa vai ser boa para nós, uma nova vida, uma nova experiência, não é?

- Uhum. Acredito que sim. - disse Renny com um sorriso branco estampado em sua face sem barbas. - Tenho certeza que vai ser bom para nós, melhor, ser ótimo.

Renny estava do lado de fora, a garrafa de Jack Daniels quase vazia, balançava entre os dedos fraquejados como um pêndulo. Dava passos vacilantes, como uma marcha de um deficiente, pensando muito até ter certeza que teria equilíbrio suficiente para dar o próximo passo. Pensou nas crianças da AACD e riu. Que comparação de mal gosto. Elas tinham uma vida, ele havia jogado a sua fora. Nunca se compararia a elas, elas tinham algo que ele não tinha mais. Força de vontade.
Arrastou os pés num caminhar lento, cambaleante pelo quintal e escorou-se numa das rochas que ficava perto do precipício, olhou para o oceano sempre imponente e fechou os olhos sentindo o vazio da solidão consumir seu interior como uma chaga que expande seus tentáculos pelo interior, esmagando sua felicidade e torturando seu ego. As andorinhas estavam escondidas nos pedregulhos, seus chiados que preenchiam os céus aquele horário deram lugar ao barulho da chuva e das ondas manipuladas pela maré agitada. Renny levantou a cabeça e olhou para o céu cinzento, deixando a chuva lavar de seu rosto as lágrimas salgadas.

- Papai, olha que lindo! Olha, olha! - disse a pequena ruivinha apontando para o céu. Estavam os dois aquela manhã observando o céu, vendo as pequenas pipas planando no céu como pontinhos coloridos num painel azulado. Uma brisa calma passava por eles, fazendo a vegetação gramínea balançar e roçar umas as outras. Em algum lugar um grilo cricrilou.

- Sim, lindo não é? São as crianças empinando pipa, em cada extremidade deve ter alguma criança puxando a linha que os conecta...

- Para trazê-los de volta? Senão eles se perdem, né?

- É, quase por ai filha. Quase por ai.

Renny abriu os olhos, estava na Sala Branca, escorado em uma das paredes. Sua camisa estava suja de vômito, seus olhos divagavam bêbados pela sala destruída. Olhou para as mãos sujas e cheias de pólvora molhada e chorou, chorou o bastante para ficar soluçando como um bebê no solo. Chorar para ele era parte da rotina matinal, acordar, beber uma garrafa de Dallas ou qualquer coisa com mais de 8% de álcool e chorar. Sabia que não era sua culpa, mas mesmo assim não podia parar de se culpar por isso. Marina já havia virado o jogo, suportado a perda, já havia conseguido superar e continuar sua vida. Com outro homem, lógico.

Ele não conseguia, era sua menina, sua pequena. Ele sentia sua falta. Era como ter um pedaço de si arrancado. O cheiro azedo de seu hálito, o barulho da chuva, e o barulho do trem da estação o fizeram levantar e caminhar até a porta. Precisava caminhar novamente, precisava se recompor. Em pouco tempo, havia se tornado uma cópia de seu pai, era o sangue fraco de sua família correndo em suas veias.
Lembrou-se de seu pai após ter perdido a fortuna  que tinha em nos bancos em jogos de azar e investidas de grandes somas de dinheiro em invenções que nunca deslancharam. Lembrou-se das poucas imagens, que restavam em seu álbum mental, dos fracassos estampados em sua face lânguida e cansada. Era a mesma coisa. Ambos eram fracassados e sem força de vontade.

Caminhou até a porta e tropeçou ao dar os primeiros passos, caiu de bruços no chão e não levantou dali, ficou estirado no chão sentindo o cheiro de bebida azeda invadir o nariz e causar enjoo.

- Papai-í... - ela sempre o chamava assim quando tinha uma ideia que fervilhava em sua cabeça, arrastando mais uns duzentos is, como se tentasse com isso expor as ideias de forma clara, suficiente para um adulto entender o que se passava na cabeça da criança. - Mamãe disse que não está gostando de você mais.

- Como assim? O que foi que a mamãe disse? - Renny virou a cabeça para olhar a menina. Ela estava cercada de Lego e tentava descobrir onde colocar a peça gorda amarelada nas fundações da casinha.

- Ela estava falando com o tio Fernando. - ficou quieta um tempo e desistindo de usar a peça amarela, pegou uma mais fina e vermelha. - Tio Fernando disse que você tinha uma "anant". Ela disse que você não tinha. E os dois começaram a brigar.

- Brigar? Tio Fernando gritou com ela? - Renny deixou de escrever e inclinou a cabeça para trás.

- É. Ele disse coisas para a mamãe e fez ela chorar. - respondeu a menina deixando a casinha rústica do lado de uma pequena fazenda que ela e seu pai haviam montado. Renny, por um breve momento, pensou na reação que teria se fosse aquele homenzinho amarelo, ordenhando sua vaca e repentinamente, uma gigante ruiva deixaria um novo estábulo para ele. - Mamãe chorou muito, mas depois fizeram as pazes. Tio Fernando abraçou a mamãe e os dois ficaram abraçados até a hora que foram para o quarto.

- E? O que aconteceu depois? -

- Dai começaram a brincar, acho que de esconde-esconde. - a menina passou a mão nos cabelos ruivos e ondulados que caiam sobre os ombros e deu um olhar inocente para seu pai. - Mamãe dava uns gritos estranhos e depois ria. Tio Fernando também. -
Renny inclinou para trás na cadeira, e suspirou fundo. Precisava de uma bebida urgente.

A lâmpada fluorescente era a única coisa que havia na Sala Branca, as paredes não tinham janelas e nem portas. Eram lisas e sem textura. Sem atrito, as mãos escorregavam no branco. Renny estava deitado no chão, seu corpo nu não sentia frio, nem calor. Apenas o vazio que se expandia como um pequeno universo em seu peito. A cada respiração a luz piscava e a sala por um instante tornava-se escura. Um instante que refletia seu estado atual. A cada vinte segundos contados em sua mentem, não importava se era rápido ou lento, a sala tremia e a camada pegajosa do silêncio rompia-se, como papel na água corrente, tomada pelo som ensurdecedor dos trens que haviam na estação. O chiar da maquinaria, dos metais se friccionando, do agudo do apito cada vez que parava na estação. Gritava cada vez que ouvia o apitar pressionando seus tímpanos com uma agulha quente, sentindo a cabeça comprimir ao tamanho de uma noz-moscada e retornar num estalido oco, ao estado original. Vinte, Piiiii - pop... Vinte, piiiii - pop.

- Não vai não! - Sua filha aos prantos abraçava sua barriga.

Marina estava em pé encostada ao pilar de ferro da estação, a expressão de seus olhos eram vazios, mas brilhavam das lágrimas que se depositavam ali, no fundo sentia-se fragmentada, talvez nem tanto como Renny, mas estava decidida a tempos. O divórcio no papel havia sido assinado a uma semana, embora o sentimento já havia ido ralo abaixo há dois anos. Era triste ver aquele homem com quem trocara votos e decidira viver o resto da vida, envelhecendo junto, na alegria e na tristeza, partir. No final das coisas, na hora da tristeza, sempre testamos o quão amamos o nosso próximo, e para Marina, não amava aquele homem. Amava apenas o jovem colunista do jornal e não o beberrão. Amava o sexo longo, dedicado e prazeroso da juventude, não as rapidinhas insatisfatórias da meia-idade. Amava aquele homem que em sua cabeça era incomum e sempre positivo, mas que nos últimos cinco anos, principalmente após o casamento e o nascimento da sua filha, mostrou-se ser tão comum quanto qualquer um. E então percebeu que era apenas paixão e quando esta acabou, não havia mais nada que pudesse fazer a não ser repudiar aquele homem.

- Olhe querida, papai não vai embora. - A menina levantou o rosto e olhou para sua face avermelhada e seus olhos azuis-cristalinos cheios de lágrimas. - Papai só vai viajar por um tempo, ele volta - Renny olhou para Marina, a mulher mantinha um olhar de "você não vai voltar", não depois de arcar com uma ação na justiça para tirar a filha inocente das mãos de um alcoólatra. Ela virou o rosto e olhou para o trem branco estacionado. Mulheres conseguem às vezes serem umas doidas varridas.

- Não, eu quero ir também! Mamãe, porque nós não vamos? – A menina olhou com uma expressão enfadonha, encarando o rosto da mãe com os olhos gibosos exaltados.

- Filha – Marina agachou na frente da filha e pegou sua mão – Seu pai vai para um lugar perigoso, não é... querido? –
Renny meneou a cabeça hesitante, e forçou um sorriso maior do que o necessário.

- Papai volta

não... não volta

                       

                            viu, não precisa se preocupar. – O homem passa a mão no rosto da pequena e afaga seus cabelos longos e ruivos. Seu coração se afunda dentro do peito, uma mão invisível esmaga-o com implacável força, fazendo a cada batida ser insuportavelmente dolorida.

– Papai... – Engasgou, as palavras não saiam de sua cabeça, não era fácil mentir para uma menina que sequer fazia ideia do que era mentir. As palavras fervilhavam na cabeça, o suor escorria pela testa, os pensamentos corriam pelos nervos e encontravam uma barreira em sua garganta. Uma música suave soou pela estação, um pequeno soneto contrastando com a voz grave de um funcionário avisando que todos os passageiros deveriam se encaminhar aos seus vagões. Renny sentiu um alivio repentino passar em seus ombros resetando os nervos tensos, salvo pelo gongo, pensou ironicamente. Abraçou a menina que segurou em seu peito como uma filhote de coala e sentiu aquela sensação de vazio apertar o peito novamente. Uma fila de pessoas já desaparecia para dentro dos vagões e os seus funcionários gritavam para que entrassem logo. Renny fez um esforço para manter o peito estufado como se encarasse aquela situação de peito firme e decidido, mas seus olhos marejados e seus ombros caídos denunciavam seu estado atual. Estava arrasado.

Caminhou em direção de Marina e deu-lhe um abraço forte, porém não retribuído na mesma intensidade, Marina levou os braços ao peito de Renny e deu um leve empurrão. O homem afastou o rosto e não conseguiu olhar dentro dos olhos de Marina, sentiu-se como uma pessoa pestilenta tendo seu abraço, cheio de boas intenções, rejeitado. Suspirou, dizendo as palavras que doíam. Do adeus-até-nunca-mais. Subiu no vagão devagar, carregando nas mãos as malas que pesavam como chumbo. Não olhou para trás quando sua filha gritou papai, não olhou para fora quando sentou-se na poltrona, não levantou a cabeça das mãos até estar a metade do caminho para a próxima cidade.

- Ei Renato, sei de um belo lugar que você pode ir para passar o tempo, você está com uma cara de quem precisa de umas boas férias. Sério mesmo, você parece merda.
    - Muito obrigado Fernando, muito obrigado. – Renny olhou para seu reflexo na tela do computador desligado, parecia mesmo uma merda. 
    - Sérião cara, tu precisa de uma folga. - Fernando levantou a mão por cima do cubículo que separava-os e entregou um panfleto azulado - Tó, isso vai te alegrar. –, uma foto de uma mansão rústica perto de uma escarpa, cuja uma plataforma foi construída para levar ao mar. Ao fundo em letras garrafais
                                        maldito comic sans
                                                                                 estavam escritos "Venha para a Casa Branca, o repouso de seus sonhos". Casa Branca. Renny riu imaginando o presidente jogando bolas de golfe ao mar enquanto a primeira-dama banhava-se ao maravilhoso sol da Casa Branca do mar.
- É me parece um bom lugar para se ir.
- Tenho certeza que você vai adorar. Já fiquei lá uma vez. Muito agradável.
- Uhum. Casa Branca – olhou para Fernando – me parece ser um bom lugar.

Talvez eu vá para lá um dia.


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