Escuridão escrita por Emaluela
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OS DIAS SEGUINTES AO MEU ENCONTRO COM MORGAN NO ZEBRA BAR
passam insossos e insignificantes. Nada acontece, à parte uma forte enxaqueca que não
me abandona um instante sequer. Não encontrei mais Morgan na escola e não telefonei,
embora não consiga parar de pensar nele. Mas também tenho outra coisa na cabeça:
nosso grupo de amigas continua a se desagregar implacavelmente e Naomi se prepara
para sua festa exclusiva fechada num silêncio cada vez mais impenetrável. Na realidade,
tenho a nítida impressão de que é um silêncio forçado, como se não quisesse ou não
pudesse me contar uma coisa que sabe que não aprovaria: seu novo amigo Tito. Com
certeza, tem alguma coisa a ver com ele.
Seline é um fantasma. Junto com o peso, também perdeu o interesse por tudo o que
a cerca. Não faz mais as mil perguntas inúteis que costumava fazer e não fica
completamente doida por um par de sapatos novos. Veste mais ou menos o que aparece,
suas pernas parecem dois galhos secos e os remédios encovaram o rosto. Os pais a
mantém pelo menos sob controle médico.
Agatha é a única que permanece tal como era. Mas talvez seja apenas a impressão
que quer passar, pois ninguém nunca sabe exatamente o que se passa em sua cabeça.
Continua a odiar todas as pessoas do sexo masculino que se aproximam e a seguir sua
receita de completa solidão. Acho que nunca a vi trocar uma palavra com alguém além de
nós. E de sua tia, imagino. Falta muito, mas não comenta nada.
Se pergunto como vão as coisas, responde:
— Bem.
Se pergunto sobre a tia, responde:
— Na mesma.
Faço mais de uma tentativa de ajudá-la. Não sei por quê, mas num certo sentido me
sinto mais próxima dela que das outras duas. Não e sua culpa, penso comigo mesma, se
está nessa situação, mas Seline e Naomi, elas construíram sozinhas os problemas que
enfrentam. Um dia, durante o intervalo, pergunto a Agatha se gostaria que eu ou as
meninas fôssemos visitá-la.
Seus olhos se iluminam num lampejo de medo.
— Já disse que não! — responde quase gritando.
— Não estou tentando matá-la, Agatha. Só propus uma visita.
— Minha casa é um nojo, Alma. E você sabe que minha tia está muito mal —
explica ela, num tom mais pacato.
É estranho ouvi-la pronunciar meu nome. Em sua boca, há um som agressivo:
Alma... arma.
Dou de ombros.
— Como quiser. Era só uma ideia.
— Deixe para lá.
— Não vai conseguir, sozinha.
— O quê?
— Disse que não pode continuar assim, sozinha.
— E o que deveria fazer, na sua opinião?
— Se tem algum problema precisa falar conosco, senão...
Agatha olha para mim muito séria.
— Senão a nossa amizade não faz sentido.
— Quer me afastar?
— Não, só estou dizendo que nossa força é permanecermos unidas. E nos
ajudarmos mutuamente. Se cada uma seguir seu caminho, e melhor parar de fingir que
somos amigas.
Agatha percebe que estou falando sério. Vejo que parou para pensar.
— Não fui eu quem começou — diz.
— Começou o quê?
— A não contar tudo.
— Está falando de quem?
— E não sou a única que tem seus segredos.
— Acha que eu...
— Acho que Naomi não está contando nada a respeito de Tito e seu bando. Acho
que você não contou nada do que anda fazendo com Morgan...
— Não faço nada com Morgan! — exclamo.
— Então por que ficou tão mordida?
— Não estou mordida.
Um sorriso enviesado aflora em seu rosto.
— Deve ser isso mesmo... Seja como for, não tenho problema aIgum. Obrigada por
perguntar. — Depois disso, faz meia-volta e se dirige para a porta da sala.
A meu redor, outros meninos e meninas se apressam para entrar antes do som da
campainha. Suéteres e moletons coloridos, tênis e botas. No entanto, sinto como se
estivesse mergulhada num filme em preto e branco, daqueles a que ninguém mais assiste
porque são lentos demais.
Nossa cidade, ao contrário, segue veloz. Nosso mundo corre. Sua pressa é tanta
que não se consegue mais vê-lo direito ou, como diz Jenna, se vê tudo desfocado.
As coisas perdem seus contornos e se misturam umas com as outras.
Transformam-se numa mancha única na qual tudo se confunde. Até o bem e o mal.
No mesmo dia, Naomi está flertando abertamente com Tito no pátio da escola. Gira
a seu redor como uma abelha sobre a flor. Ou como uma mosca sobre uma planta
carnívora. Resolvo ignorá-la toalmente e seguir adiante. Sigo pela calçada de cimento
escuro, não há sinal do mais mísero fio de grama nem perto do meio-fio. O ônibus está
parado na minha frente, como um animal ferido. Aperto o passo para não perdê-lo e dou
uma olhada na publicidade estampada na traseira logo acima do cano de escapamento.
Olho bem, é uma montanha-russa.
Reconheço imediatamente, sentindo o sangue gelar em minhas
É a mesma que aparecia no outdoor onde Alek foi crucificado. O publicitário. Acho
revoltante: como puderam manter a campanha de lançamento mesmo depois de tudo o
que aconteceu?
19 DE FEVEREIRO.
É a inauguração do velho parque de diversões da cidade, que alguém comprou e
reformou totalmente. Com os olhos fixos naquela imagem, as palavras de meu conto
voltam à mente como pontas de flechas atraidas por um ímã.
Vai acontecer no dia 19 de fevereiro, penso.
Mas o quê?
O que vai acontecer?
Minha cabeça começa a pulsar loucamente.
Preciso parar. Abaixar os olhos. O ônibus fecha as portas e parte.
Dentro de dois dias será 19 de fevereiro.
23
PASSEI UMA NOITE DE PESADELO. O DESPERTADOR NA MESINHA de
cabeceira diz que já são sete horas. Se não levantar, chegarei atrasada à escola. Tento
colocar o travesseiro na cabeça e apertar forte com as duas mãos. Repito que vai passar.
Tento me concentrar. Essa dor de cabeça tem de passar.
Aperto mais e quando diminou a pressão não sinto mais nada.
Não acredito e, portanto, permaneço imóvel com medo de que retorne. Mas não
estou enganada, a dor de cabeça sumiu.
Bato as pálpebras, olhando para o teto.
Levanto.
Passou mesmo.
Jenna está no corredor, pronta para ir ao hospital.
— Tchau, tesouro. Está melhor?
Ela me viu ontem à noite. Estava realmente acabada. Não olhei para ninguém e não
toquei na comida. Fiquei trancada no quarto, enfiada sob as cobertas esperando que o
mundo continuasse a viver a meu redor o mais silenciosamente possível.
— Melhor — respondo.
— Deveria passar no hospital para uma consulta. Tem um especialista que é muito
bom.
Fala enquanto se veste, com a frieza típica de quem trabalha todo dia em contato
com a dor.
— E por quê? Estou bem, agora.
— Sabe muito bem por quê.
— Não tem nada a ver.
— Você sofreu um acidente grave, não esqueça. As consequências de certos
traumas podem se manifestar muito tempo depois. É so um controle. Nada mais.
Talvez não esteja enganada, mas não tenho vontade de fazer uma tomografia
computadorizada e ter de me enfiar naquela máquina infernal, onde não há espaço para
respirar. Amarrada com correias, para desestimular qualquer desejo de fugir.
— Só estava cansada...
— Você é quem sabe, mas se acontecer de novo, vai fazer tomografia.
— Não vai acontecer de novo — digo e me tranco no banheiro antes que Jenna
mude de ideia.
Encaro o espelho.
Meu rosto está relaxado, como se tivesse dormido perfeitamente sem as pontadas
lancinantes nas têmporas que me mantiveram acordada a noite inteira. Tive a dor de
cabeça mais forte de toda a minha vida, mas agora é como se não tivesse acontecido
nada.
Molho a testa e os pulsos com água fria, penteio os cabelos. São tão longos...
Em seguida, saio para ir à escola.
****
Seline não volta.
Saiu para ir ao banheiro há 15 minutos e ainda não voltou para sala. Levanto e vou
buscá-la.
Ignoro as palavras do professor, que tenta me deter.
Percorro todo o longo corredor até chegar ao banheiro das mulheres.
Antes mesmo de vê-la, posso ouvi-la.
Depois reconheço seus tênis branco e rosa despontando embaixo de uma porta,
que escancaro: Seline está inclinada para a frente e segura os cabelos com uma das
mãos. A outra está apoiada na parede manter o equilíbrio.
Está vomitando.
Sem dizer nada, trato de ajudá-la, puxo a descarga, saio junto ela. Seu rosto tem um
colorido que cai bem com o cinza descascado dos banheiros.
— Não estava me sentindo bem... — sussurra quando a crise passa. Fora da janela,
ouve-se o barulho monótono do trânsito, como um gigantesco motor sempre ligado. Seline
ergue os olhos. — Acho que comi alguma coisa que me fez mal.
Sacudo a cabeça.
— Seline, você está com um problema.
— Não tenho problema nenhum! — grita ela com o pouco de força que lhe resta.
— Isso é bulimia. Você recusa a comida e faz isso por culpa daquele maldito vídeo.
Mas agora chega!
Olha para mim com seus grandes olhos verdes e, um instante depois a chorar.
Seline não é durona e nunca será. Não consegue conter nem uma migalha de sofrimento.
Pobrezinha, penso, arrancando algumas toalhas de papel e estendendo para ela. Ingênua,
fraca, consumida. Sua vida, que mudou no prazo de algumas semanas, está lhe
apresentando uma conta muito cara. Pela primeira vez, sinto uma espécie de raiva ao
olhar para ela. Mas não é contra Adam, contra ela mesma ou contra qualquer outra pessoa
em particular. É raiva da vida. Das coisas que acontecem.
Enquanto pego a enésima toalhinha para enxugar suas lágrimas, Seline faz uma
coisa que me pega de surpresa. Ela me abraça. Faz isso num impulso, tomada por uma
necessidade irrefreável de calor. Um calor que meu corpo não lhe transmite. Fico imóvel,
rígida, os músculos tesos, fechada numa couraça que não deixa passar nada.
Sinto seus braços me apertando cada vez menos. Finalmente, ela se afasta de mim,
limpa os olhos com o dorso da mão e diz:
— Obrigada.
— Somos amigas.
Entramos para a sala de aula depois de nos ajeitarmos um pouco.
— Como você é fria, Alma — murmura Seline enquanto nos aproximamos da porta
da sala. — Não está se sentindo bem?
— É, não... estou bem — respondo indecisa.
Um dia, quem sabe, vou entender por que um simples abraço me fere mais que uma
punhalada.
24
QUANDO O DIRETOR CONVOCA TODOS OS ALUNOS AO GINÁSIO, nenhum de
nós tem dúvidas sobre os motivos de tal assembleia.
Scrooge, de pé sobre um banco para acrescentar alguns centímetros à sua parca
estatura, espera que todas as turmas se reúnam no campo de linóleo. Seu microfone
assovia.
— Um... dois... testando... Vamos lá, silêncio... Silêncio!
Um murmúrio sobe e volta a descer, como um mar. Ele não parece ter pressa.
Esfrega as mãos uma contra a outra insistentemente, irritando as caixas de som. Parece
estranhamente satisfeito, satisfação que se adivinha pela leve curvatura dos lábios finos e
oliváceos. Se um dia for lembrado, certamente não será por sua simpatia.
Agatha está a meu lado, Seline, do outro lado e, depois dela, Naomi. Espremidas no
meio dos outros colegas, esperamos. Procuro Morgan na multidão de alunos e finalmente
o vejo, do outro lado do ginásio. Tenho a impressão de que ele também está olhando em
minha direção e por um instante, como já tinha acontecido no Zebra Bar, é como se
estivéssemos só os dois naquele ginásio. Desvio os olhos rapidamente e trato de cerrar
fileiras com minhas amigas. Nesse momento estamos unidas, pelo menos fisicamente.
Longos minutos se passam, nos quais Scrooge espera, com a paciência de um
animal à espreita, que reine o mais absoluto silêncio no salão. Seus olhos são duas
fissuras que examinam o ambiente como um radar de profundidade. E eu, esmagada pelas
paredes brancas e pavimento azul-claro do ginásio-caixa, me sinto como uma das muitas
folhas caídas e deixadas apodrecendo no fundo de uma piscina inverno.
— Convoquei-os aqui, jovens... convoquei-os...para fazer um anúncio importante.
Às costas de Scrooge se abre a porta que leva ao pátio. Duas pessoas entram: a
secretária de Scrooge, uma mulherzinha pequena e redonda, com as faces sempre
vermelhas e um sorriso beato estampado na cara, e Adam. Os ferimentos em seu rosto
quase desapareceram. Mesmo assim, ele mantém os olhos baixos e um ar conformado.
O silêncio reina absoluto.
— Todos vocês já sabem... — grasna Scrooge ao microfone — do que aconteceu
em meu gabinete algumas semanas atrás. Pois bem, hoje quero que todos fiquem
sabendo que, depois de uma longa e cuidadosa investigação, identificamos o culpado...
Avante!
A secretária dá um empurrãozinho nas costas de Adam, como um convite para
andar mais rápido. Ele vacila atrás dela, sem erguer os olhos para a multidão compacta de
seus colegas, que o encaram como um condenado à morte. Os dois vão até o banco onde
o diretor está plantado.
— Chegue mais perto, meu rapaz, bem aqui — grasna mais uma vez Scrooge,
indicando o espaço à sua frente.
Adam obedece.
Agora posso vê-lo bem. Usa moletom preto com uma grande caveira laranja no
peito, jeans e tênis com os cadarços desamarrados.
Quando Adam passa diante dele, Scrooge pousa uma mão lenhosa em seu ombro
direito. Adam fica bloqueado como se tivesse levado um choque elétrico. Os dedos
nodosos afundam no moletom como garras.
****
— Você errou, Adam — recita ele como um pastor. — Violou as regras desta escola.
Entrou em meu gabinete para saqueá-lo como o pior dos vândalos. Traiu minha confiança
e a dos professores desta escola. Mas traiu também a confiança de seus colegas.
Em seguida, ergue a voz passando os olhos pela plateia atenta.
— Quero que olhem bem para ele. É isso que acontece com quem não respeita as
regras.
Com um leve empurrão, Scrooge afasta Adam de si alguns passos, como um lixo
repugnante.
— Adam, você está suspenso das aulas.
Ninguém se surpreende, embora ouvir alguém pronunciar uma sentença tenha um
estranho fascínio. Faz bater o coração.
— A suspensão será de três meses. E vai perder o ano. Nem mesmo um estudante-
modelo, e você certamente não o é, conseguiria recuperar tantas horas perdidas... Mas
isso não é tudo.
Posso ouvir claramente o rumor de dezenas de colegas que engolem em seco
nesse momento.
— Em comum acordo com seu pai, chegamos à conclusão de que não poderá ficar
em casa vagabundeando diante do video game durante os meses da suspensão. Terá que
vir à escola. Terá que ajudar na limpeza.
Comentários e exclamações se erguem em meio ao público, como um banco de
névoa sobre nossas cabeças.
Os lábios de Scrooge se fecham numa expressão satisfeita. Seu microfone assovia.
A secretária parece um salmão pequeno brilhante e prateado, pronto para ser jogado no
óleo fervente. Adam, ao contrário. Imóvel e calado: sem meias palavras, está sofrendo a
maior humilhação de toda a sua vida.
Mas em seguida, de repente, levanta os olhos: seus olhos queimam de ódio e
correm sobre nossos rostos, como se procurasse alguém. Movem-se rapidamente, sem
hesitações.
E param em...
— Podem ir! — ordena o diretor naquele momento, dispensando os alunos. — Vão,
respeitem as regras, sigam os nossos ensinamentos e não terão nada a temer!
****
— Por que Adam olhou para você daquele jeito? — pergunto a Agatha assim que
saímos do ginásio.
Ela dá de ombros.
— Não estava olhando para mim.
— Eu vi!
— É mesmo? E viu o quê?
— Que estava procurando você com os olhos.
— Pois eu, ao contrário, achei que estava olhando para você.
Hesito. Por alguns instante, também pensei isso. Já tinha um olhar perfurante de
Adam na escada, algum tempo atrás. Mas, dessa vez senti seus olhos deslizarem sobre
meu rosto, ignorando-o, para se fixarem em seguida, como pregos, em Agatha.
— É por causa do spray — comento.
Ela não fala.
— Você disse alguma coisa? — insisto. — Quer dizer, depois de nosso ataque-
surpresa.
— A quem, se me faz favor?
— Sei lá, Agatha. A alguém! Falou por acaso com Scrooge?
— Eu não falo em absoluto com Scrooge! Não falo com autoridades, de nenhum
tipo. Só me causaram problemas, sempre. Além do mais... — para. — O que pensa que
poderia dizer? Olhe, senhor diretor... Adam fez um vídeo de uma amiga nossa seminua e,
como vingança, esperamos por ele no rio com um spray de pimenta. Acho que foi ele
quem tocou fogo em seu gabinete. Até logo.
Tem razão, de fato. O que falei é estúpido. Agatha não teria nenhum motivo para
falar com Scrooge. Não acredita em nenhuma forma de autoridade, nem na polícia, nem
nas instituições, que dirá no diretor.
No entanto, alguma coisa está me escapando. Algo que tem a ver com aquele anel.
E com Morgan, talvez.
O dragão-marinho.
— Sabe o que é um dragão-marinho? — pergunto.
— O quê?
— Ouvi dizer que o desenho no anel de Adam é um dragão marinho.
— Podia ser até um dragão de carne e osso, estou pouco me lixando. O que conta é
que o encontramos.
Concordo. Tem razão. O que conta é que o encontramos.
— E assim, Seline foi vingada — acrescenta Agatha, alguns passos depois.
— O que Seline tem com isso?
— Estamos falando de Adam, não? — responde Agatha, seca. — OIhe para ela. —
Com um gesto da cabeça indica as costas frágeis de Seline, que caminha como se a
decisão de Scrooge fosse contra ela e não Adam.
— Acha que ela está satisfeita agora? — pergunto com desprezo.
— Deveria estar!
— Não importa o que aconteça com Adam, ela está arrasada. Simplesmente
gostava de Adam.
— Adam é um cretino e teve o que merecia.
— Vai perder o ano.
— Seline também perdeu alguma coisa.
— É verdade, mas...
Agatha para novamente, olhando para mim.
— Pense assim: o coisa-marinho...
— Dragão.
— O dragão-marinho foi como a mão divina.
— O que quer dizer?
— Que talvez exista uma justiça divina, só isso — responde. — E, senão existe,
pelo menos podemos inventar uma. — E, sem dizer mais nada, começa a subir a escada
para voltar à sala de aula.
Deixo os outros desfilarem a meu redor, empurrando-me e falando alto. Olho a
sombra negra de Agatha. O espectro de Seline. Naomi silenciosa.
Procuro por Morgan.
Não o vejo.
Estou pensando nele mais do que gostaria.
25
SÃO CINCO E POUCO. ESTÁ ESCURO, MAS UM POUCO MENOS QUE NOS
dias anteriores. Os dias estão começando a se alongar.
Estou no ponto, à espera do ônibus que vai trazer Naomi e Seline. Combinamos
passar a tarde fazendo compras para levantar um pouco a moral de Seline.
Não disse nada a ninguém sobre o que aconteceu no banheiro. Não quero que
Seline se sinta traída. Que ela mesma conte, quando quiser. Enquanto isso, se quero que
confie em mim, tenho que ensiná-la a confiar em meu silêncio.
Começa a chover e busco abrigo sob o toldo da uma loja. Viro para olhar ao redor,
mas não há nenhum ônibus à vista.
Se tivesse um relógio, poderia ver a hora.
Suspiro: detesto esperar.
Enquanto me encolho na jaqueta, entrevejo a papelaria onde comprei o caderno
roxo do outro lado do cruzamento. Vejo a luz filtrada da vitrine. Será que marquei mesmo
um encontro com as outras bem aqui, nesse lugar?
Rever aquela loja, mais uma vez num dia de chuva, causa emoções constratantes:
de um lado, gostaria de me afastar daqui o mais rápido que pudesse, pois a lembrança
daquele assassinato que descrevi em meu conto ainda é nítida; por outro, uma curiosidade
incomum poderia me levar a atravessar a rua e espiar de novo a vitrine.
Controlo a rua mais uma vez: apenas carros que passam como flechas levantando
jatos d’água à sua passagem.
A chuva agora cai pesada e densa. Como da outra vez.
Guiada pelas coincidências, atravesso a rua e chego à papelaria.
****
A vitrine hoje é surpreendente, sem dúvida obra de um artista. Exibe uma pequena
maquete representando alguns edifícios e áreas da cidade (reconheço o Teatro, o Centro
Comercial, o Porto Velho, a Ponte de Ferro que leva à Cidade Velha e assim por diante),
inteiramente feita de canetas. Há caneras de rodo tipo e para todos os gostos, numa
mancha cromática que tem o poder de fazer essa metrópole de mortos parecer alegre.
Sem pensar, empurro levemente a porta de madeira com a grande vidraça central e,
assim que ponho o pé do lado de dentro, a velha campainha desafinada anuncia minha
chegada. É tudo como da primeira vez. Familiar. E tranquilizador. Fico imóvel, com as
roupas pingando na soleira, perguntando a mim mesma se devo prosseguir.
No interior da loja só há uma cliente: uma velha senhora enfiada num casaco de
pele que cheira a naftalina e pelos molhados, com um chapéu encimado por uma grande
pena multicolorida de um pássaro qualquer. Está comprando três cadernos com a capa
azul e alguns lápis de cor.
— Sinto muito, senhora, mas a cola em vidro acabou — está dizendo o homem-
anjo, com suas maneiras gentis e seu sorriso calmo. — Se puder retornar amanhã, já terá
chegado, com certeza.
A senhora do casaco de pele murmura uma resposta. Depois, começa a extrair de
uma bolsinha uma série infinita de minúsculas moedas, que alinha na mesa como fichas de
pôquer. Enquanto faz isso, sinto os pingos de chuva caírem dos meus cabelos ensopados
sobre o chão. Um a um, como em câmera lenta. A sensação é a mesma da primeira vez:
parece que o tempo parou ali dentro. O proprietário, os objetos à venda e mesmo os
clientes pertencem a um mundo que não existe mais. Até a cidade reproduzida na vitrine
não é mais a mesma. É como entrar num instantâneo de muitos anos atrás, quando,
talvez, ainda houvesse alguém vivendo aqui de verdade, pessoas que não estavam de
passagem como todos nós. Deixo que a senhora se aproxime de mim e, quando sinto seu
cheiro de naftalina, abro a porta para que possa sair.
Ela ergue o rosto alisado pelo tempo e abre um sorriso de pequeno roedor. Usa um
batom vermelho vivo, como as estrelas do cinema mudo de antigamente.
— Obrigada, meu anjo — sussurra ela, surpresa com aquela pequena gentileza.
Viro de lado para impedir que sua mão trêmula e coberta de manchas marrons
consiga tocar em meu rosto. Depois disso, vou até o homem-anjo.
— Bom dia, senhorita — cumprimenta ele. — Um segundo e já vou atendê-la.
Arranja algumas caixas sob o balcão e depois, conforme prometido, volta toda a sua
atenção para mim.
Na verdade, não preciso de nada.
Pelo menos, é o que acho. Digo isso, acrescentando:
— Só estou dando uma olhada.
— Naturalmente. Se precisar de mim, estou aqui.
Sem parar de sorrir um instante, começa a retirar pilhas de grandes cadernos de
capa em xadrez escocês de dentro das caixas.
Dou uma olhada através da vidraça para ver se as meninas não chegaram. Uma
cortina de chuva embaça tudo. Lentamente, concedo-me uma pequena inspeção nos
tesouros da papelaria.
Nas prateleiras de madeira há um pouco de tudo: pastas de papelão, álbuns,
cadernos de dimensões variadas, lápis de cera em recipientes separados por cor, num
mostruário com tantas divisões quantas são as cores à venda, e uma série infinita de
canetas reunidas em potes cilíndricos. Sinto-me atraida por elas, sugestionada, talvez, pela
fantasiosa vitrine. Mais à frente, as canetas-tinteiro mais importantes, com longas pontas
de lança. Tem para todos os gostos, de madeira, de plástico colorido, com plumas,
cobertas de paetês, de couro brilhante. Parecem minúsculas armas de um povo de
gnomos. Passo os olhos sobre elas rapidamente, detendo-me na última, no final do
mostruário, exposta numa caixinha só sua com fundo roxo e tampa transparente. À
primeira vista, lembra daqueles velhos lápis que precisavam ser apontados com canivete
ou faca. Mas na verdade é uma caneta-tinteiro aguçada, toda de metal brihante e com o
corpo triangular. Parece um objeto vindo do espaço.
Meus olhos a acariciam e depois, como não consigo resistir, toco a caixa com os
dedos.
— Se gostou, posso fazer um ótimo preço — propõe então o proprietário.
— Para dizer a verdade, não tinha intenção de comprar. Nunca usei uma caneta
dessas.
— E aposto que também nunca tinha visto nenhuma tão bonita
— Não... — respondo, um pouco hesitante. — De fato, não.
— São feitas à mão e numeradas, sabia? — explica o homem-anjo, abrindo a caixa
e indicando o pequeno número gravado num dos três lados da caneta: é um 11.
— Imagino que deve ser cara...
— Quanto pretende gastar?
Certa de que está brincando, mostro o que tenho no bolso. Não é muito.
Mas ele parece satisfeito.
— Perfeito. É suficiente.
Olho para ele insegura.
— Tem certeza? Parece pouco para uma caneta desse tipo.
— E é mesmo. Mas... o que faz a diferença é a senhorita.
Aponto para mim mesma, surpresa.
— Eu?
Ele sorri. Com seu jeito tranquilo, recoloca a caneta na caixinha e estende para mim.
— Canetas-tinteiro como essa aqui não têm preço. Devem ser amadas. Quem não
sabe usá-las, mesmo que possa comprar, acaba por matá-las.
— Está me assustando — confesso, aceitando a caneta.
— Oh, não! Não precisa se assustar. Não precisa mesmo. Vai ver, essa caneta
ainda vai lhe ser muito útil. E se eu estiver enganado... sempre pode me devolver. Posso
garantir que darei seu dinheiro de volta.
Enfio a caneta no bolso e, um pouco perturbada, saio da papelaria. Uma vez lá fora,
um arrepio me percorre bruscamente, mas não por causa da chuva que cai como
chicotadas. Sinto uma estranha energia vibrando no ar.
Examino minha afiada caneta-tinteiro nova.
A número 11.
O número não significa nada para mim.
Um caderno roxo.
Uma caneta sem preço comprada por alguns tostões.
Será que cada coisa que acontece comigo tem um significado oculto ou será que
estou ficando paranoica?
Do outro lado da rua surge uma grande sombra escura, cuspindo gasolina em
espirais acinzentadas. E o ônibus das meninas. Para mugindo, abre as portas sanfonadas
e deixa seus desconsolados passageiros saltarem, como um gigantesco peixe que expulsa
suas ovas.
Naomi levanta a mão para me cumprimentar.
Meus dedos estão gelados.
Não costumo amar os objetos, é o que gostaria de dizer ao homem-anjo. Mas a
porta da papelaria já está fechada às minhas costas e a campainha desafinada já decretou
minha saída daquela lojinha fora do tempo.
Nunca amei nada nem ninguém.
Exceto aquele caderno roxo. Talvez.
E Lina, penso logo em seguida, com uma ponta de vergonha.
Claro. Minha irmãzinha.
A cabeça volta a pulsar, levemente, no ritmo de trovões distantes.
****
— Está se sentindo bem? Está com uma cara... — pergunta Seline.
— Tudo bem — respondo, quase irritada. Afinal quem está mal é ela, ou não?
— Por onde começamos? — pergunta Naomi. — Sapatos?
— Por que a pressa?
— Preciso de um sapato lindo.
Olho para ela com ar interrogativo.
— Está bem... talvez tenha um encontro essa noite.
— Com seu novo namorado?
— Não é meu novo namorado.
— Mas é com ele, certo?
— A famosa e exclusiva festa surpresa?
— Espero que sim. Não disse nada, mas pelo modo como falava com os amigos..
Falo com Seline:
— Sapatos?
Ela sorri sem muito entusiasmo.
— Por mim, tudo bem.
Mesmo porque os sapatos talvez sejam a única coisa que pode experimentar sem
mostrar que seu número diminuiu.
— Ninguém merece uma chuva dessas! — exclama Naomi, mexendo no guarda-
chuva.
Caminho atrás delas, evitando as poças. Quando passamos pela papelaria, noto
que as luzes lá dentro estão apagadas.
26
A GRANDIOSA NOTÍCIA QUE ME RECEBE ASSIM QUE PONHO OS PÉS em
casa é que passarei a noite no bar de salgadinhos de Gad com Jenna e Lina. Esse tipo de
jantar não é muito frequente, felizmente, mas de vez em quando Jenna consegue nos
fisgar para agradar Gad.
Coloco a sacola com minhas novas botas lilases no corredor. Lina exibe um belo
sorriso que corta seu rosto no meio como uma fatia de maça. Parece feliz. Não posso fazer
nada senão dizer que por mim tudo bem.
— Se é que minha opinião pode interessar — acrescento sarcástica.
— Vista alguma coisa bonita! — grita ela de seu quarto. Vou até lá, encosto no
batente da porta e olho para ela. Está só de calcinha e tenho que admitir que, apesar da
vida infernal e dos muitos sofrimentos, ainda é uma belíssima mulher.
— E por que deveria usar alguma coisa bonita?
Minha objeção subentende duas conclusões possíveis: .Para deixá-la cheirando a
óleo queimado?. ou .Como, se não tenho nada de especial?.
— Porque fica muito mais bonita quando se veste como se deve.
Jenna não costuma me dizer muitas vezes que sou bonita. Na verdade, não
costuma me elogiar. E não tenho certeza de que isso é mesmo um elogio.
Conformada com o fato de que terei que sacrificar um vestido àquele cheiro nojento,
vou para o meu quarto.
— Ah, estava esquecendo. Tea vai também. Resolveu trabalhar com o pai —
acrescenta, tentando fechar a saia.
Dou meia-volta.
— Deixe que eu ajudo.
Ela deixa, curtindo um raro momento de proximidade entre nós. Enquanto puxo o
zíper, sinto que prende a respiração para encolher a barriga. Apesar dos pesares, a saia
ainda cai às maravilhas e Jenna se olha no espelho do armário com um suspiro de alívio.
— Tea? — pergunto.
— É. Gad estava todo contente.
Nessa altura dos fatos, junto uma coisa com outra e tiro duas conclusões. A primeira
é que a pobrezinha não foi convidada para a festa exclusiva de Tito. A segunda é que tem
mesmo intenção de roubar o próprio pai.
— Ele contou o que combinaram?
Jenna fecha o sutiã e começa a repassar as camisetas penduradas no armário para
escolher uma decente.
— Acho que vão dizer hoje à noite. Parece que Tea colocou a cabeça no lugar e
está ajudando Gad a administrar o negócio. E ele está ensinando a ela como lidar com os
clientes.
Então é isso que vai fazer: esperar o momento certo, quando tiver ganhado
completamente a confiança do pai, para esvaziar o caixa. Ou então tirar um pouquinho a
cada dia para cobrir suas loucuras. Que cretina!
Acho que minha expressão trai meus pensamentos, pois Jenna se e pergunta o que
há comigo.
Sacudo a cabeça.
— Nada. Não gosto muito de Tea, é tudo.
— Sei, mas tente ser gentil, se conseguir.
— Vou tentar.
Volto para pegar as botas novas, que jogo em cima da cama.
Depois me refugio no chuveiro.
****
Jenna está toda elegante. No final, escolheu um vestido preto que não usava havia
anos e que ajudei a amarrar atrás do pescoço. Lina escolheu um conjunto amarelo-
canário, combinando com o arquinho de cabelo com dois papagaios na ponta de uma
mola. Parece uma bonequinha. E sabe disso, pois olha para mim com um ar sonhador e é
toda sorrisos. Eu, ao contrário, resolvi por um conjunto de saia e suéter bem istos com
estampa geométrica verde, roxa e preta.
— E Evan? — pergunto por força do hábito.
— Ainda não o vi hoje.
Diante do espelho do banheiro, Jenna vira o vidrinho de perfume, espremendo as
últimas gotas.
Lina sacode a cabeça: também não viu nosso irmão.
— Deixe um bilhete.
— Não me parece que saiba ler.
— Alma!
— E ele tem chave. Se quiser voltar, é só entrar.
Minha mãe não insiste. Abre a porta de casa:
— Vou pegar o carro. — diz.
Vamos para o térreo e encontramos com ela no portão. Vemos nossa mãe penetrar
nas sombras da noite e reemergir logo em seguida a bordo da caminhonete vermelha,
compacta como um torpedo e com a capacidade de um triciclo. Lina senta atrás e eu vou
na frente, lado a .ado com Jenna. O rádio do carro dispara uma cantilena insuportável de
sininhos e mugidos de baleia.
— Temos mesmo que ouvir essa porcaria?
— Isso é música relaxante, queridinha. É só se deixar levar.
— Claro, para o hospício.
Ela já não está ouvindo e, contrariando os supostos efeitos da tal lenga-lenga, guia
seu calhambeque como se fosse um ás do volante. Mas talvez seja uma questão de
automatismo: percorre esse mesmo trajeto todo dia. Fato é que em menos de meia hora
estamos na frente lo bar.
Um letreiro vermelho e amarelo sobre a porta exibe o nome em letras maiúsculas:
GUSTIBUS. Urna palavra latina, culta, típica de Gad. Mas basta levantar os olhos para o
resto do edifício e a poesia se desfaz. É alto e moderno, com grandes vidraças e muito
cimento, das construções ao redor. A distância, pulsa o grande H luminoso do hospital.
Imagino Gad nos dias em que minha mãe dorme lá, fechando a bar e levando petiscos
para ela escolhidos nos guarda-frituras comprados não lembro onde. Depois de dois
homens egoístas e imaturos, pelo menos Jenna teve o bom gosto de escolher um sujeito
gentil.
Entramos no estabelecimento e somos assaltados por aquele cheiro que já se
tornou tão familiar.
O bar de Gad é formado por uma sala de dimensões medianas, com um longo
balcão em que são expostas as delícias da casa, como pedras preciosas numa joalheria.
Do lado oposto, junto a uma colossal jukebox, ficam algumas mesas amarelas, com as
respectivas banquetas com almofadas vermelhas.
No teto, zumbe um ventilador industrial, encastrado numa teia de aranha de tubos
de cobre. Uma selva de guirlanda de propagandas de cerveja balança em cada canto,
como uma rede de cipós. Assim que nos vê chegar, Gad nos recebe com um grande
sorriso por trás do balcão. Parece realmente feliz naquela noite.
— Bem-vindas! Sentem-se ali. Já venho.
Indica a última mesa da fila, a mais tranquila e afastada, na qual impera uma cartela
com a palavra RESERVADO sustentada por duas coxas de frango de plástico.
Há um certo movimento no local. Outra família — pai, mãe e duas filhas —, sentada
a algumas mesas da nossa, consome asas de frango com a voracidade de quem não
come há meses; um casal de meia-idade examina a espuma na caneca de cerveja em
busca de algum tema de conversação e dois rapazes evidentemente gays esperam suas
porções para viagem diante do balcão.
Tea desponta inesperadamente das cozinhas. Caminha com jeito de dona do
pedaço.
— Jenna! — cumprimenta. E em seguida: — Alma! — Então seus olhos descem até
Lina: — E minha priminha favorita!
Gad observa a cena sorrindo. Agora, sua felicidade está completa.
Tea quer nos beijar no rosto.
— Oi, meninas, boa noite.
Minha mãe enlaça seus ombros.
— Gad me contou tudo. Fiquei muito orgulhosa...
— Ah, que bom...
— Seu pai precisava de você.
Ela sorri, falsa. Ajoelha-se para beijar Lina, que trata de proteger seu arquinho.
Depois chega a minha vez.
Estendo a mão, rígida e indiferente, mantendo a distância:
— Oi, Tea, como vai?
— Muito bem, obrigada, e você? Arranjou um namorado, finalmente?
Encaro-a, O macacão de quadradinhos brancos e vermelhos fica tão bem nela
quanto um kilt escocês num beduíno. Os cabelos, ralos, não veem a cor do xampu há
semanas. E o esmalte preto das unhas está descascando. Se soubesse que estou a par
de seu planinho sujo, certamente não seria tão escrota.
Mas cada coisa a seu tempo.
— Não, nenhum namorado. Tenho mais o que fazer.
— Verdade? O quê?
— Viver.
Jenna lança um olhar atravessado. Tiro o casacão e penduro junto em cima dos
outros, onde provavelmente irá absorver mais cheiro de fritura que os demais. Exibo as
botas novas e vejo que Tea notou.
— O que posso lhes oferecer de bom? — pergunta Gad do balcão, trovejante como
uma divindade grega.
— Sim, claro, o que desejam? — acompanha a filha.
— Frango, frango ou frango? — digo, arremedando.
— Tea, já virou o cartaz? — pergunta Gad. Depois resolve fazer e mesmo, bufando:
vai até a porta e gira o cartaz para o lado que diz: fechado.
— Assim, podemos ficar mais tranquilos — sorri para nós e para os outros clientes.
— E então? O que vamos comer? — repete, dando um beijo em Jenna. —
Gostariam de um cabrito sen-sa-cio-nal?
Não gostaria, mas fico calada.
Escolhemos cabritos sensacionais para dois, asas de frango fritas e uma pirâmide
de croquetes de batata para Lina. Gad volta para o balcão e começa a fritar cada coisa em
sua vasilha de óleo. O cheiro da massa penetra em minha carne como um veneno.
Começamos a comer e o cabrito é realmente muito bom. Quando a outra família, os
gays e o casal de zumbis saem, Gad e Tea também sentam conosco, livrando-se dos
aventais. Começam assim as infalíveis conversas, anedotas e histórias de sempre. Jenna
está radiante em seu vestido preto. Entro no jogo e só fico atenta quando o assunto passa
a ser Tea e seu trabalho ali.
— E seu namorado, como reagiu? — pergunta Jenna.
— Bem, eu diria. Não acha nada mal que trabalhe num local onde sempre encontra
alguma coisa para comer.
Todo mundo sabe que Michi, o namorado, não dispensa uma boca-livre.
— Por que não o convidou? — pergunta Gad, surpreso. — Podia ter vindo, já que
estamos todos reunidos.
Ao que parece, Evan já conseguiu ser excluído da ideia de .família..
— Não — responde Tea. — Quer dizer, convidei, mas ele não podia.
— É mesmo? Por quê? — pergunto maliciosa.
— Foi convidado para uma festa que não podia perder.
Deve ser a mesma de Naomi.
— E por que você não vai?
— Porque agora estou trabalhando. — Olha para o pai em busca de aprovação. —
Gosto da ideia de ficar com você, papai. E com elas também, claro.
Que mentirosa! Distribui sorrisos e olhares doces com aqueles seus gélidos olhos
amarelados. Não sei por quê, meu pai sempre me dizia para não confiar em pessoas com
os olhos amarelos. Talvez tenha sido exatamente uma mulher de olhos amarelos que o
afastou de nós. Quem sabe?
— Uma festa a mais, uma a menos, dá na mesma — diz alguém ao redor da mesa.
O relógio em forma de frango que está na parede diante de nós indica que passa
um pouco das onze.
— Precisamos ir — diz Jenna. Alguém já deveria estar na cama.
Lina está feliz e satisfeita com seu prato vazio
Gad levanta para pegar o casaco dela.
— Claro, claro. Tudo bem.
— Precisa de uma ajudinha, Gad? — pergunta Jenna, atravessando o local deserto.
— Não se preocupe, Tea vai me ajudar.
Jenna lhe dá um beijo, mal tocando seus lábios finos.
— Então vamos dar boa-noite e obrigada pelo jantar.
Sorrio.
— Obrigada, Gad, estava tudo ótimo.
Jenna parece aprovar.
— Tea...
— Alma...
****
Saímos da Gustibus e num instante deslizamos pelas ruas da cidade. Lina, no
banco de trás, caiu dormindo, exausta de tanto croquete de batata e frango frito.
— Acho que Tea está fazendo a coisa certa. Gad está muito feliz. — comenta
Jenna, quando chegamos embaixo de casa.
— Não confio nela.
— Alma... você é muito desconfiada.
— Diga a Gad para verificar o caixa toda noite.
— Alma!
— Trate de avisar, certo?
Sem esperar resposta, desço do carro, abaixo o encosto do banco e me estico para
pegar minha irmã. Com ela nos braços, cuido para que não bata na porta ao sair. É leve
como um passarinho.
Levanto os olhos para examinar o céu.
Em meio às nuvens, sobre os tetos exaustos dessa cidade, vejo de repente o brilho
de uma estrela. Aperto Lina contra o peito, surpresa.
Como milagre, é mais do que se podia esperar por hoje.
27
NÃO SEI QUE HORAS SÃO, SE É DIA OU NOITE, MAS O TELEFONE DE CASA
toca bruscamente e me faz pular da cama.
É noite.
Caminho às apalpadelas, como um escafandrista, e corro para atender sem nem
acender a luz. Jenna não ouviu: dorme com tampões nos ouvidos. Evan provavelmente
ainda não voltou. Lina talvez esteja de pé no fundo do corredor, mas mesmo que quisesse
não poderia atender. O único telefone que temos fica na entrada. Sinto o ar gelado que
passa por baixo da porta. Estou descalça sobre os ladrilhos.
Levanto o fone.
— Alô?
Meus olhos doem. Devem ser altas horas da madrugada.
— Alô — repito.
Não ouço nada, à parte um chiado fraco. E depois um raspão, seguido de um fio de
voz.
— Alma...
— Quem está falando? Alô!
— É... n... omi...
— Como?
— N...ao...mi.
Meu coração salta uma batida.
— Naomi? É você? O que houve?
— Ve... vem... me... pegar...
— Onde você está?
— I...grej...ja... ba... ro... velh...lho...
— A igreja do bairro velho?
— Por... fa… vor...
— Estou chegando!
Dou um salto até meu quarto para trocar de roupa. Calça jeans, suéter de gola alta.
Olho o despertador: cinco da manhã. Pensei que fosse mais cedo. O que Naomi está
fazendo na rua a esta hora?
— A festa — penso comigo mesma.
Procuro os tênis. Calço. Saio do quarto.
O que pode ter acontecido?
Por um instante, considero a possibilidade de acordar Jenna e pedir que me leve de
carro, mas logo afasto a ideia. É muito provável que Naomi esteja bêbada, e não posso
correr o risco de comprometê-la com a presença da minha mãe. Preciso me virar: não
posso ir a pé. Nem de bicicleta. Abro o armário e remexo na primeira gaveta. Reviro tudo.
No fundo das meias de náilon estão as minhas economias. Pego um maço e notas.
****
Tentando não fazer muito barulho, volto para a entrada, pego o catálogo no móvel
embaixo do telefone e procuro o número do ponto de táxi.
Murmuro meu endereço.
227 AG, em dois minutos.
Perfeito.
Procuro as chaves, encontro, dou uma olhada para o corredor e faço sinal na
direção da sombra que poderia ser Lina pedindo que volte ao seu quarto. Abro a porta
lentamente, saio e fecho muito lentamente também.
Dois minutos.
O taxista é um oriental, de rosto oval e inexpressivo. Guia como uma lesma cansada
e cada vez que fala parece ter engolido um rádio.
Respondo em monossílabos, mesmo porque entendo mais ou menos um terço do
que diz.
— Para a igreja, na Cidade Velha.
Pergunta alguma coisa que não entendo. Abandonada sobre o banco, começo a
roer nervosamente as unhas.
O que terá acontecido com Naomi?
Logo terei uma resposta, e acho que não vou gostar.
O céu clareia a oriente e nas ruas o trânsito das primeiras horas da manhã começa
a fluir. Passamos ao lado do estádio, um enorme caldeirão oval e apagado. Inútil, sem o
seu formigueiro de torcedores.
A ponte do aeroporto está bem na nossa frente. Pulamos em cima dela passando
sob os cabos de metal que a mantêm suspensa no ar. Foi projetada por um arquiteto
japonês que morreu antes que ficasse pronta e que pediu para ser murada no vão central.
Não pôde ser atendido, por motivos legais. Sob a ponte escorre o rio, negro e inchado
pelas chuvas dos dias anteriores.
Chegamos à perimetral e ultrapassamos o aeroporto com seu tráfego de voos
internacionais. As placas deslizam velozes fora da minha janela: quando chegamos àquela
que indica a Cidade Velha, o táxi vira Imagino como seria rápido chegar, se os carros
também pudessem passar pela Ponte de Ferro. Percorremos uma alameda longa e larga,
com pelo menos três pistas para cada mão. Olho a hora no relógio digital que brilha em
cima do retrovisor: são 5h35.
Espero que Naomi não tenha saído de lá.
Um pouco mais adiante, à esquerda, vejo o perfil do giro da morte de uma
montanha-russa despontando por trás de um muro. Um arabesco de ferro negro que se
delineia contra o céu. Reprimo um arrepio: é o velho parque de diversões da cidade. Aliás,
agora é o novo. Esqueci a inauguração: dia 19 de fevereiro, às 20h30. Um nó de tensão se
forma no fundo de minha garganta, e até respirar fica difícil.
É hoje à noite.
Tenho um pressentimento ruim.
Mordo um dedo e fecho os olhos.
O parque de diversões desaparece nas luzes da aurora.
O taxista diz mais alguma coisa que não entendo.
****
Quando chegamos à velha igreja com seu cemitério, o céu ganhou um colorido
leitoso.
Vejo o campanário de pedra bem acima dos tetos das casas.
— Pare aqui — ordeno. — E espere por mim, por favor.
Desço do carro correndo. É aquela hora irreal em que a luz artificial dos lampiões
ainda acesos e a luz natural do Sol, quase na hora de nascer, achatam as sombras.
Costeio rapidamente o perímetro da igreja até a escadaria que sobe para as
arcadas do pátio. Ali, sob a entrada, está o corpo enrodilhado de Naomi.
Corro para ela.
— Estou aqui, Naomi! Está me ouvindo?
Parece que não. Não se move, parece aturdida, não consegue manter os olhos
abertos. Mas não está simplesmente bêbada. Tem uma série de pequenas feridas no
rosto, está muito pálida e perde sangue pelo nariz.
— Naomi?
Experimento dar uns tapas para ver se desperta.
— A...juu...da — é só o que consegue sussurrar, sem nunca abrir os olhos.
Agarro seu braço, passo por trás da minha cabeça, consigo levantá-la, de um modo
ou de outro, chego até o táxi.
— Por favor, venha me ajudar! — grito.
Mas ao ver Naomi cambalear agonizante, o oriental se apavora. Acende os faróis,
pisa violentamente no acelerador e parte. Mal consigo sair da frente e ele já desapareceu
entre as ruas tortas da Cidade Velha, sem esperar nem pelo pagamento.
Naomi vai ficando cada vez mais pesada, tenho praticamente que arrastá-la.
Quando não consigo mais carregá-la, deixo seu corpo deslizar sobre um banco e
me abandono, eu também, contra o encosto, com a respiração ainda mais ofegante.
Enfio a mão no bolso em busca de uma moeda para ligar para casa. Mas meus
dedos encontram outra coisa: o dragão de papel, que retiro rapidamente. O número
marcado na cauda ainda está lá.
Corro para a cabine telefônica mais próxima. Quase todas elas já foram retiradas.
Enfio as moedas. Uma, duas, três. Continuam a cair.
Digito o número e Morgan responde ao segundo toque.
Tenho a nítida sensação de que estava esperando minha ligação.
28
MORGAN ESTÁ SENTADO A MEU LADO NA SALA DE ESPERA DO pronto-
socorro. Não diz nada. Nem eu. Recordo nosso encontro, o modo como saiu correndo
depois do telefonema e seu olhar preocupado antes de verificar que eu estava bem.
Colocamos Naomi em seu carro e voamos para o hospital, para entregá-la aos
cuidados atenciosos dos homens de branco. São sete da manhã.
— Como se sente?
Tem um olhar doce.
Sinto o contato de seu braço no meu. Irradia uma energia reconfortante. Inclino a
cabeça, apoiando-a entre as mãos.
— Quem está mal não sou eu.
— Ela vai se recuperar.
— Faz ideia do que pode ter acontecido?
Morgan tensiona os músculos quase imperceptivelmente.
— Não faço a mínima. Parecia... — suspira, agitando as mãos. — Drogada ou algo
parecido.
— Foi o que pensei também.
Aperto os punhos e acrescento à meia-voz:
— Tito.
Ele relaxa o corpo no encosto da cadeira de plástico.
— Quem é esse Tito?
Em geral, prefiro não falar das coisas que dizem respeito às minhas amigas com
estranhos, mas trata-se de uma emergência.
— Estava saindo com ele havia pouco tempo.
— Alto, rabo de cavalo, olhos de chinês?
— Conhece?
Morgan sacode a cabeça.
— Não exatamente.
— Pelo visto, não gosta muito dele.
— É. Continue.
Olho para ele.
— Disse que parecia drogada. Pode ser. É possível que tenha sido obrigada a tomar
alguma coisa. E depois... os cortes no rosto...Será que foi Tito?
— Como ela estava nesses últimos dias?
— Contente. Fomos todas juntas comprar sapatos com ela.
— Ah...entendo. E daí?
— Não tem muito mais, a não ser que também não fui com a cara o sujeito. Não o
conheço, mas conheço uma pessoa que frequenta o mesmo grupo e..
Mas o que estou fazendo, penso comigo mesma, interrompendo-me bruscamente.
Morgan anda com Adam, que fez o vídeo de Seline e tocou fogo no gabinete do diretor. E
também foram à piscina
— Por que parou?
Sacudo a cabeça.
— Nada não. Acabei. Não tinha mais nada a dizer.
— Naomi contou que tipo de festa seria essa? Onde? Num bar ou algo assim?
Mordo o lábio, antes de continuar:
— Não, nem ela sabia. Era uma festa-surpresa. Uma festa exclusiva. O exemplo
perfeito de coisa que destesto.
Olho para ele:
— Foi ele, não? Acha que foi durante a festa?
Morgan concorda.
— É provável.
— São dois — murmuro. Primeiro Adam com Seline. Agora Tito com Naomi.
— Dois o quê?
— Nada, não. Mas... se foi ele quem fez isso com Naomi, garanto que vai pagar.
— E como pagaria?
Naquele exato momento tenho a impressão de que Morgan sabe da emboscada no
rio. Acho que Adam contou. Aquele verme maldito do Adam. No entanto, não vejo nenhum
sinal de censura nos olhos de Morgan. Está sério, preocupado, lindamente pálido. Nada
mais. Sustento seu olhar o mais que posso, mas somos interrompidos pela chegada do
médico de plantão. É um homem alto e corpulento com uma densa barba escura e um
rosto de primata. Parece perturbado e fecha os olhos várias vezes, como quem concede a
si mesmo alguns segundos de repouso.
— Foram vocês que trouxeram Naomi?
Morgan levanta.
— Fomos.
— E avisaram seus pais?
Fico em silêncio.
— Nossos pais estão fora da cidade, sou seu irmão. Sou maior de idade. — Mente
com uma rapidez que me deixa sem palavras. Aponta para mim. — E Alma é minha
namorada além de colega de turma de Naomi.
— Certo. Naomi não estava com nenhum documento. Quantos anos tem? Se não
for maior, você terá que assinar os documentos de internação.
Morgan fica em silêncio. Não faz ideia se Naomi é maior ou não.
— Fez dezoito anos há pouco — intervenho. Por sorte, penso.— Como ela está?
— Nem mal, nem bem e... devo admitir que hesitei entre chamar ou não a polícia.
Dadas as circunstâncias, talvez vocês me sejam úteis. Como a encontraram?
Conto ao médico sobre o telefonema de Naomi e como fomos buscá-la.
— Na velha igreja, é? E por acaso não sabe o que sua irmã fez ontem à noite? —
pergunta a Morgan.
Respondo pelos dois.
— Não sabemos nada.
— Ela tem namorado?
— Não fala muito sobre isso.
O médico me observa.
— Não — respondo —, não agora.
— Bem... desculpem a pergunta, mas sabem se sua irmã participa de um desses...
bandos... ou grupos estranhos de jovens?
— Por que tantas perguntas, doutor?
— Principalmente porque não posso perguntar a ela: está sob efeito de sedativos e
dorme um sono profundo. E também pelo que fizeram com ela...
— O que fizeram com ela? — pergunta Morgan com um fio de voz.
— Quando a trouxeram estava num estado de profunda confusão mental. Começou
a divagar e a dizer frases sem sentido assim que a colocamos na maca. Sua taxa alcoólica
é de 2,35%, não muito elevada, portanto. Mas o pior é que seu corpo apresenta pequenos
cortes e queimaduras que ela não lembra como apareceram. E tem estranhas raspagens
na cabeça e na zona genital.
— O quê? — exclamo, levando as mãos à boca.
— E os cortes? São profundos?
— Não diria isso. Parecem minúsculas incisões, muito pequenas e muito
profundas...
— E as queimaduras?
— Circulares e espalhadas pelo corpo inteiro: cigarro.
Fecho os olhos horrorizada.
— Está dizendo que apagaram cigarros em seu corpo?
O médico faz que sim, com uma cara sombria.
Tenho quase medo de fazer mais perguntas:
— E as raspagens?
— Bastante brutais e imprecisas. Na nuca, em cima da orelha esquerda, na área
pubiana.
— Não posso acreditar!
O médico dá de ombros, fechando os olhos, como quem quer se acalmar.
— Apesar disso tudo, sua irmã não corre nenhum perigo. Vai se recuperar
fisicamente.
— É possível que tenha sido drogada?
— Se quer minha opinião, senhorita, tenho quase certeza disso. Apresenta
pequenos furos de agulha no tornozelo direito. Em todo, estamos à espera dos resultados
do exame toxicológico. Mas, para dizer a verdade, o que me preocupa é seu equilíbrio
psiquico. Não afastaria a possibilidade de que fique em estado de choque, depois que
passarem os efeitos dos sedativos. Talvez fosse interessante consultar um especialista.
— Precisa de um psiquiatra?
O médico rabisca alguma coisa numa folha e entrega a Morgan.
— Conheço um psiquiatra que é muito bom nesse tipo de problema. Seu nome é
Mahl e seu consultório fica perto da estação ferroviária.
Fico sem palavras. O dr. Mahl, especialista em traumas da adolescência. É o
mesmo pisquiatra que Jenna me fez consultar depois do acidente.
Morgan lê a folha e guarda no bolso.
— Obrigado, doutor.
— Se passar bem o dia e a noite, amanhã poderá voltar para casa Está no quarto 7.
Mas atenção... Para ajudá-la o mais importante é tentar entender o que aconteceu e de
que modo ela conseguiu... aqueles ferimentos.
— Posso vê-la agora?
— Não enquanto estiver dormindo. É melhor voltar mais tarde. E... — o médico coça
a cabeça, pensativo: — Posso lhe fazer um pergunta? Sempre fora dos procedimentos
normais...
Morgan concorda.
— Não quero me meter nos hábitos íntimos de sua irmã, é uma menina, mesmo
sendo maior e... tem uma outra coisa que me preocupa: teve repetidas relações sexuais.
Com diversos homens.
— Não! Naomi, não! — exclamo.
Absurdo. Naomi não é assim. Nunca procurou os meninos para ir para a cama. Na
verdade, sempre acreditou no verdadeiro amor. Aquele mesmo que eu sempre disse que
não existe. Imagine se ia aceitar participar de... de uma orgia com tudo isso!
— Quer dizer que foi violentada? — pergunta Morgan.
— Não, não há sinais de violência sexual. É possível que as relações tenham
acontecido depois da administração de entorpecentes com efeitos alucinógenos.
O médico olha para o relógio, cansado.
— Se não tiverem mais perguntas, preciso terminar meu turno.
— Não, está tudo muito claro. Obrigado, doutor -- responde Morgan pelos dois.
Não consigo falar. Os pensamentos voam tão rápido em minha mente que não
consigo agarrá-los para poder me expressar. Meu coracão bate forte e tenho dificuldade de
respirar.
Nunca precisei do apoio dos outros, mas agora não posso mais dispensá-lo. Tem
algo de maligno acontecendo a meu redor. Algo que não consigo compreender, mas que
sinto que está me cercando.
Fico feliz que Morgan esteja aqui.
****
A manhã já vai adiantada quando chego em casa.
Peguei um táxi, embora Morgan tenha se oferecido para me trazer. Preciso ficar um
pouco sozinha. A casa está silenciosa. No móvel da entrada, um bilhete de Jenna avisando
que ela e Lina saíram para fazer compras. Com certeza, achou que eu estava dormindo
em meu quarto. Não abriu a porta e, portanto, não viu que tinha saído. Caminho pelo
corredor como uma marionete cujos fios foram cortados.
Vou para o meu quarto.
Um sol tímido desponta entre o cinza da massa de nuvens e ilumina, pelos vidros
ainda marcados de chuva, os grãos de poeira que dançam diante da janela. Flutuam
desordenados, num turbilhão no qual gostaria de me perder por um instante. Para ser
transportada para bem longe.
A cama ainda está desfeita, como deixei antes de sair. Tenho a impressão de que
um dia inteiro se passou depois do toque daquele telefonema. Mas, ao contrário, foram
apenas algumas poucas horas.
No chão, tem de tudo: vestidos, jornais, uma escova. Afasto um pouco as coisas e
recoloco no armário. O caderno roxo não está mais embaixo do monte de suéteres, tênis e
velhos álbuns. Começo a retirar tudo. O fundo do armário aparece liso, claro, sem o menor
sinal do caderno.
— Não... — murmuro. — Por favor... não.
Sinto o pânico subir dentro de mim como a água em direção à borda de um vaso.
Olho ao redor e dou alguns passos para trás, na direção da escrivaninha. Afasto os livros
da escola, mas também não está lá. Inspeciono cada canto do carpete cor de cinza-rato e
espirro quando passo na frente da luz do sol. Ajoelho para olhar embaixo da cama. E,
finalmente, o encontro. O caderno está lá, perto de um velho coelho de pelúcia esquecido
há não sei quanto tempo. Pego e ajeito cuidadosamente sobre meus joelhos. Tenho quase
medo de abri-lo. Pelo volume da capa, percebo que uma caneta ficou presa entre as
páginas.
Estou suando frio e o sangue corre gelado em minhas veias, enquanto abro
lentamente as duas capas roxas.
A primeira coisa que vejo é a caneta-tinteiro que comprei na papelaria à tarde. A
caneta com o número 11.
A caneta sem preço.
Depois vejo as linhas traçadas com uma grafia hesitante.
A inauguração foi um sucesso. Toda a cidade pôde admirar um trabalho que
durou anos, a perfeição do projeto: as montanhas-russas mais altas e mais
arrepiantes que alguém já projetou. Satisfeito com a lembrança das honras
recebidas, Giulian se demora no escritório pré-fabricado montado no interior do
parque de diversões durante os anos de trabalho...
— Não! Não! — grito, jogando longe o caderno e a caneta-tinteiro.
O pesadelo recomeçou.
29
UM DIA E UMA NOITE SE PASSARAM, LONGOS E DENSOS COMO A NÉVOA no
inverno. Nenhum assassinato. Mas ainda é cedo. Talvez seja só uma questão de tempo.
Noite de novo. E de novo dia. O dia em que Naomi terá alta.
Estou aqui, na frente do hospital, com Morgan.
— Quer um café enquanto esperamos a hora de entrar? — propõe ele.
Faltam dez minutos para a uma, quando começa o horário de visitas.
— É tudo que eu queria. Obrigada.
Disse que não precisava me acompanhar para buscar Naomi. Mas ele insistiu e
acabei cedendo. No fundo, ele pode continuar a representar o papel de irmão de Naomi. E
sua presença me dá segurança.
Caminhamos bem próximos, ao longo do corredor que leva do pronto-socorro à
entrada principal do hospital. A cada passo, tenho medo de topar com Jenna, a quem não
contei nada. Não sei se já voltou para casa. Espero conseguir evitar as mil perguntas que
me faria se me visse ali com um menino que ela não conhece.
Chegamos ao bar sem maiores incidentes.
No balcão há doces e sanduíches de todo tipo, mas pedimos apenas café. Nenhum
dos dois parece ter fome.
No canto, há um mostruário com jornais. Vou até lá sem pensar, como se um ímã
me atraísse para aqueles títulos em caracteres negros.
— Aonde vai?
— Pegar o jornal.
— Deixe para lá — tenta me dissuadir Morgan — , só falam de desgraça e de gente
que se mata.
Gente morta, exatamente. Um aperto no estômago quase não me deixa respirar.
Penso nas poucas frases que escrevi naquele maldito caderno e não ouço mais a voz de
Morgan.
Pego um exemplar do jornal diário local.
Olho a foto na primeira página, esperando estar enganada. Mas não, lá está ele, o
velho parque de diversões. Com aquela maldita montanha-russa e um título que gela meu
sangue nas veias: “O último giro da morte de jovem engenheiro.”
Já sei como se chama. Já escrevi seu nome: Giulian. Minhas mãos tremem. Abro o
jornal. Na terceira página encontro uma foto que não deixa dúvidas: o corpo de um homem
com um corda no pescoço pende da curva mais alta do giro da morte, como o pêndulo de
um gigantesco relógio.
É horrível. Ainda mais horrível que o primeiro homicídio. E tem algo de surreal.
Morgan lê o jornal por trás de meu ombro.
— Como é que ele fez isso? — pergunta.
— Fez isso o quê?
— Aquela curva é praticamente inalcançável! Como fez para se enforcar lá em
cima?
O publicitário também foi crucificado no alto. E também em seu caso, todos se
perguntavam como era possível. Analogia macabra. Fruto de uma mente doente que
acredita no terror para espalhar o caos
— Não se enforcou.
— Mas está escrito: .As razões do suicídio ainda não foram esclarecidas....
Morgan lê junto comigo sobre o acontecido. Sei lá por quê, parece ter uma teoria
sobre a dinâmica daquela morte. Enquanto isso, cafés esfriam no balcão.
****
Pelo que diz o artigo, a polícia levantou a hipótese de um suicídio porque, num
primeiro exame, não foram encontrados indícios de violência no corpo. Mas a mulher do
jovem engenheiro, grávida do segundo filho e desesperada, fala do marido como de um
homem alegre fe feliz, que não se suicidaria por nenhum motivo do mundo.
Não faz sentido, penso eu, que um homem que está para ganhar um filho se
suicide, e além do mais na noite em que comemora um grande sucesso profissional. Tem
alguma coisa errada. Talvez Morgan tenha razão. Ou talvez seja mais um terrível
assassinato que sonhei e descrevi.
— Parece preocupada.
Fecho o jornal tentando dissimular a tensão.
— Primeiro o publicitário, agora esse engenheiro. Tem alguém na cidade que não
quer um novo parque de diversões.
— Não é de se espantar tanto assim. Ninguém sabe que interesses estão por trás
disso. Política. Propinas. Dinheiro sujo — diz ele, mas não parece muito convencido.
E o meu caderno roxo, o que tem ele com isso?
— Não sei... — murmuro. — Mas é como se...
O que mais posso dizer? Que .pressenti. os dois assassinatos e, de alguma
maneira que não sei explicar, à noite, como uma sonâmbula, fui capaz de descrevê-los
num caderno roxo comprado numa papelaria do centro? Que o caderno foi vendido por um
homem-anjo e que, desde que o comprei, é como se tivesse entrado em contato com um
assassino diabólico?
E que tem alguém torturando minhas amigas?
E que, portanto, corro o risco de enlouquecer ou que talvez já tenha enlouquecido?
O que mais posso lhe dizer?
— De qualquer jeito, nunca saberemos o que aconteceu realmente exclamo. — É o
caos.
— É. Um grande caos — comenta Morgan, como quem pensa em voz alta. Depois,
acorda de repente: — Vamos. Já está ficando tarde.
Deixa duas moedas no balcão e dirige-se para o corredor.
Agora ele também parece muito tenso.
Nem tocamos em nossos cafés.
****
Ao longo do corredor do hospital, as portas dos quartos ficam num lado e as janelas
do outro, dando para um estacionamento interminável.
Cruzamos com duas silhuetas ondulantes que se arrastam agarradas ao suporte do
soro, munido de rodinhas, com os saquinhos transparentes das drenagens cheios de um
repulsivo líquido avermelhado. Nunca faria isso, vagar daquela maneira sob os olhos de
todos. Preferia me jogar pela janela. Se quisesse, cada um desses pobres infelizes poderia
sair de seu quarto e se jogar lá embaixo: seria um jeito mais digno de morrer para aqueles
corpos sem esperança.
Morgan está caminhando a meu lado. Não falou mais nada depois que lemos o
artigo sobre o enforcado da montanha-russa, e tenho a impressão de que não pretende
fazê-lo. Melhor assim, pois eu também esgotei as palavras. Sinto que está distante agora,
perdido num mundo longínquo e todo seu, no qual não há lugar para mim. É estranho
como Morgan alterna momentos de infinita doçura, cheios de olhares e palavras
compartilhadas, com outros de distância intransponível, nos quais um simples contato
queimaria mais que fogo.
Chegamos ao quarto número 7. Morgan aponta para ele, mas se detém. Resolveu
esperar do lado de fora.
— Não se apresse — Estarei esperando aqui fora.
Entro.
Naomi está sentada no leito, completamente vestida e com a bolsa na mão. Está
pálida como um cadáver e tem o olhar perdido de um cãozinho abandonado.
Estampo um sorriso no rosto.
— Oi! E então, como está se sentindo?
— Não sei... Sinto muito, Alma, eu...
— Não diga nada. Não agora. Só me diga como está.
Ela coloca a bolsa sobre os lençóis.
— É como se não fosse eu fazendo as coisas, falando, mas alguém em meu lugar.
E eu estivesse observando de fora.
É a mesma sensação que tenho depois de escrever.
Fico a alguns passos de distância da cama.
— Você sofreu um grande choque. Precisa de repouso.
Naomi não responde, mas olha ao redor em busca de alguma coisa. Talvez um
ponto onde se apoiar para sair do abismo em que tinha caído. Tenho, no entanto, a
impressão de que não consegue ver nem um ponto nem qualquer outra coisa.
— Trouxe uma base para o rosto e uma tesoura — lhe digo. — Venha comigo.
Vamos ao banheiro. Ela evita se olhar no espelho. Senta num banco e me deixa
fazer a maquiagem, com os olhos fechados e imóveis.
Passo os dedos sobre seu rosto. Sobre a pele se forma uma constelação de
brilhantes. Meus gestos são rápidos, como os de uma maquiadora experiente. Por sorte,
os cortes no rosto não são profundos e deixaram apenas alguns pequenos sinais que
camuflo sob uma camada cor de terra de base. No pescoço, ao contrário, há duas grandes
queimaduras que parecem marcas de uma doença exantematosa.
— Use isso — digo, estendendo uma echarpe fúcsia.
Naomi arranja a echarpe ao redor do pescoço com indiferença, como se realmente
aquele corpo não fosse seu.
Em seguida, pego a tesoura e começo a ajeitar seus cabelos. Tento igualá-los como
posso. Em alguns pontos, o couro cabeludo aparece, branco e desarmante. Naomi
continua de olhos fechados, me deixando trabalhar.
— Ainda não se lembra de nada? — pergunto, enquanto continuo a cortar.
— Não. Minha cabeça é um vazio absoluto.
— Qual é a última coisa que lembra?
— Entramos num bar. Perto do rio. Não sei dizer nem o nome. Foi só o tempo de
descer do carro de Tito e atravessar a rua.
— E depois?
Naomi abre os olhos.
— E depois liguei para você.
— Isso não é normal, sabe disso, não?
— Sei. Se meus pais ficassem sabendo... iam me matar.
— Não dissemos nada a ninguém. Sua mãe acha que foi dormir na minha casa.
— Obrigada.
— Preste atenção para que não descubram essas marcas no pescoço, senão vou
me encrencar também.
— Obrigada, Alma.
— Ainda não acabei. Amanhã vamos ligar para um médico.
— Um médico? Para quê? Eu... agora... estou me sentindo bem.
Acabo de ajeitar o cabelo. Parecia saída de um Fashion Center da última moda. E é
exatamente isso que vai dizer em casa. Fashion. E não esquálido horror metropolitano.
— É o dr. MahI. Eu conheço.
— Não é nenhum .psi., é?
Faço que sim.
— Não, Alma, por favor...
Está fraca demais para replicar. Aperto seu pulso com força e a obrigo a
permanecer sentada.
— Só quero ter certeza de que não está correndo riscos, Naomi. O médico que
tratou de você ontem pediu muito que fosse vê-lo. É o que faremos.
— Nós quem? Quem mais estava lá?
— Só Morgan. Foi ele que nos levou para o pronto-socorro.
Ela sacode a cabeça desconsolada.
— Estou bem, Alma. Eles... não sei, talvez tenha bebido demais... dizem que pode
acontecer, quando se bebe demais. É. só isso. Só apaguei as últimas horas daquela noite
da memória.
— Naomi, o médico me disse ontem que encontrou furos de agulha em seu
tornozelo direito. Teme que tenha sido drogada.
Naomi me olha com olhos arregalados e perdidos.
— Acha que Tito poderia me fazer um horror desses?
— Se gosta tanto de você, onde ele está agora? Por que não está aqui, ajudando a
esconder isso tudo de seus pais e levando você para casa?
Naomi não diz nada.
— Onde se meteu, o seu príncipe encantado?
— Alma, eu...
Tenta levantar, mas impeço novamente.
— Agora tem que fazer exatamente o que estou dizendo, Naomi. Sair daqui comigo
e com Morgan e voltar imediatamente para casa. Não ligar para Tito em hipótese alguma.
E se ele a procurar, me chame. Entendeu bem?
Silêncio.
— Trate de me chamar — pressiono. — Esconda de seus pais essas queimaduras
no pescoço e amanhã marco uma consulta com o dr. Mahl.
— Não quero ir a nenhum médico de maluco.
— Eu fui. Depois do acidente. Fui a esse mesmo médico de maluco: tentei recusar,
mas Jenna insistiu. E me ajudou.
Naomi concorda afinal.
— Só algumas vezes, não muitas. Ele é bom. Pode ajudá-la a lembrar.
— E se eu não quiser lembrar?
Olha para mim com olhos irreconhecíveis. A menina corajosa e decidida que
conheci foi substituída por uma cópia desbotada.
— Ouça bem, Naomi. É absolutamente normal que não queira recordar agora. Tudo
bem. Mas... com calma, com toda a calma do mundo, descobriremos quem lhe fez isso. E
quando descobrirmos...
— Faremos o que fizemos com Adam? — sussurra, esmagando com os pés os seus
cabelos cortados.
— Se for necessário, sim respondo. — Você também terá sua justiça.
— E o que faço com a justiça? Seline parou de comer desde quando teve sua
justiça.
— Você não é Seline.
Naomi aperta a cabeça entre as mãos. Reúno seus cabelos perto da cestinha de
papel e paro diante do espelho.
— Quero ir para casa — diz ela com voz fraca.
— Só se me prometer que vai ao médico comigo.
— Tudo bem — concorda finalmente. — Eu vou.
— E vai me ligar se Tito aparecer.
30
NAOMI MORA NO SÉTIMO ANDAR DE UM PRÉDIO ANÔNIMO PERTO da
estação ferroviária. É um bairro de construção recente. Os edifícios são modernos
paralelepípedos, todos da mesma altura e pintados de amarelo pálido, intercalados por
pequenas alamedas com fileiras de arbustos de copa arredondada. Aqui, a ciclovia se
desfaz e se refaz entre um prédio e outro, mas, seja como for, permanece sempre deserta.
Felizmente, nossa chegada envolve menos problemas que o previsto. Só a irmã e a
mãe estão em casa e vêm logo ao nosso encontro. A mãe está com um ar muito
preocupado. Algumas rugas na testa e ao redor dos olhos revelam poucas horas de sono e
prenunciam o inevitável sermão. Marti, a irmã, espera pacientemente ao lado da mãe,
pronta para intervir em socorro de Naomi.
A solidariedade fraterna é uma beleza.
A mulher avança com sua silhueta miúda e seu olhar fixo. Usa cabelos curtos, como
Naomi, e parece uma versão reduzida da filha Marti, por sua vez, é muito diferente: tem
longos cabelos castanhos e lisos e olhos cor de avelã, vivos como os de um pequeno
cervo.
— Pode-se saber onde esteve? — pergunta a mãe com voz alterada.
Naomi fica em silêncio. Sei que não conseguiria responder nem que quisesse, de
modo que respondo por ela.
— Fomos a uma festa e, como ficou muito tarde, Naomi ficou para dormir lá em
casa.
— E você? Por que não diz nada? — pressiona ela mais uma vez.
Naomi continua muda. Espero que consiga desempenhar papel.
— Francamente, Naomi! Podia pelo menos ter ligado para avisar. Isso não é
maneira de se comportar.
— Sentimos muito. Não vai acontecer novamente. Não é, Naomi?
Ela faz que sim e emite um fraco .é..
A mãe olha para ela com ar inquieto.
— Para mim chega! Vai ter que se entender com seu pai hoje à noite. Vá para o seu
quarto e fique lá, refletindo sobre seu comportamento.
Exatamente o que precisávamos.
A mulher vira as costas e se afasta em direção à cozinha. Marti fica um instante
conosco.
— Pode deixar que dou um jeito nela — diz a Naomi.
Em seguida, vou com ela para o quarto e verifico se está tudo certo.
Naomi olha ao redor, como se estivesse vendo pela primeira vez as paredes, os
pôsteres, os móveis e os CDs arrumados numa pequena coluna de madeira e metal.
— Estou me sentido como alguém que acabou de ser atropelada um trem em alta
velocidade — diz ela.
Faço um carinho em seus cabelos curtos. É incrível que a mãe não tenha notado
nada. Jenna teria me submetido a um detalhado exame radiográfico.
— Vá para a cama e tente descansar.
Abaixo um pouco a persiana e ajudo Naomi a tirar a jaqueta.
— Pode ir, Alma. Eu me ajeito.
— Tem certeza?
Faz que sim. É tão estranho vê-la assim, fragilizada e indefesa. Ela, que costuma
ser uma leoa.
— Então, tchau. Ligo daqui a pouco.
Saio do quarto com um peso no estômago e uma única ideia na cabeça: os
desgraçados que fizeram isso têm que pagar.
Ao sair, cumprimento a mãe, ocupada tirando a poeira de um móvel. Ela responde
com um meio resmungo. Acha que sou responsável pelo que aconteceu, penso eu.
Imagine se soubesse a verdade...
Marti vem falar comigo na entrada.
— Está tudo bem? — pergunta. — Naomi está muito estranha.
Parece preocupada. Acho que, entre festas e encrencas, nunca viu a irmã voltar
daquele jeito.
— Espero que sim respondo.
Saio daquela casa o mais rápido que posso. Só depois lembro que podia ter pedido
a Marti mais alguns detalhes sobre o que viu na piscina, quer dizer, sobre Morgan e Adam.
Mas não tenho coragem de voltar.
****
— Como é que foi tudo? — pergunta Morgan quando saio pela porta do prédio.
— Acho foi tudo bem. Só estava a mãe, furiosa porque não avisamos ontem a noite,
mas... tudo normal.
— E os cortes?
— Estava tão ocupada reclamando que não notou.
— Não estranhou nem o cabelo?
— Não.
— Melhor assim. Naomi deve estar mal, pobrezinha.
— Pois é. — digo.
— Não disse uma palavra no carro.
— Foi a sua presença. Por um lado, está muito agradecida pela ajuda, por outro,
sente vergonha.
— Entendo, mas não direi uma palavra a ninguém.
— Nem a Adam?
Não sei por que fui dizer isso, as palavras saíram de minha boca sem que
conseguisse impedir.
— Por que está falando de Adam?
— Tive a impressão de que eram amigos.
— É só um conhecido.
Não pergunto mais nada, nem ele dá maiores explicações.
Mãos nos bolsos, caminhamos um ao lado do outro até o carro.
Protegi Naomi do olhar indagador de sua mãe. Seus pais não sabem e não devem
saber nada sobre o que aconteceu realmente. O pai um advogado implacável e deixaria a
cidade em polvorosa, com ações legais contra qualquer amigo da filha. Inclusive eu, nesse
caso. A mãe, típica dona de casa insatisfeita, pegaria no pé da filha até enlouquecê-la. O
resultado seria um deus nos acuda completamente inútil, além do risco de perder de vista
os pontos que realmente precisam ser esclarecidos: Tito, ou os amigos de Tito, e tudo o
que aconteceu naquela festa ou depois dela.
Vejo rostos deslizando diante dos meus olhos, como fotos de identidade.
Estou exausta.
— Posso levá-la para casa? — Aceito sem hesitar.
Pela primeira vez desde que essa história horrível começou, consigo ficar
suficientemente lúcida para examinar o carro de Morgan. É pequeno e esportivo, com uma
forma afuselada e agressiva.
— É preto ou azul-marinho? — pergunto.
— Azul-marinho, como a noite.
— Como a escuridão.
— É, como a escuridão.
****
Quando chegamos diante de meu prédio, Morgan desce do carro e vem abrir a porta
para mim. É a primeira vez que alguém me faz um gesto assim. Mas estou agitada demais
para apreciar devidamente.
— Está se sentindo bem? — pergunta ele.
— Sim, por quê?
— Não falou nada a viagem inteira.
— É mesmo? Nem reparei.
— Está pensando demais.
— Não consigo evitar. Não posso desligar o cérebro. — Bato com os dedos na
cabeça.
— Tudo vai voltar ao normal, não se preocupe.
Esboço um sorriso. Não sei por quê, mas tenho a sensação de que ele entende
perfeitamente o que sinto. Dou uma olhada à triste fachada de cimento do meu edifício.
— Tenho que ir agora... Obrigada por tudo.
Morgan se aproxima de mim. Fico imóvel.
Mergulha os olhos dentro dos meus, como se estivesse buscando em mim a
confirmação de alguma coisa que lhe passou pela cabeça.
Aproxima seu rosto do meu. Mais do que nunca.
Estou petrificada.
Depois ergue a mão e, com uma delicadeza infinita, sem parar de olhar para mim,
percorre com a ponta dos dedos frios um lado de minha testa, na têmpora, deslizando
lentamente sobre meu rosto até o queixo. Estremeço.
— Descanse. Parece muito cansada.
Observo o movimento de seu lábios enquanto fala. Sua boca me hipnotiza. Sinto o
contato de seus dedos, mas não me incomoda. Consigo suportá-lo. Para dizer a verdade,
quero que continue.
— Obrigada, de novo — é só o que consigo dizer, antes de dar meia-volta e entrar
pelo portão adentro.
Chamo o elevador, depois me viro.
Através do vidro da porta, vejo que vai até o carro, entra, cumprimenta com a mão
uma última vez e desaparece do meu campo de visão.
Sinto que está cada vez mais próximo. E cada vez mais misterioso.
31
NAOMI ESTÁ DEITADA NO DIVÃ DE TECIDO VERDE. ESTÁ COM OS OLHOS
fechados. Parece dormir. O Dr. Mahl, 1,70m de altura, dos quais pelo menos 10
centímetros são ocupados por uma massa de cabelos louros e encaracolados, está
sentado numa cadeira a seu lado. Tem dedos longos e afilados que se movem no ar,
acompanhando sua voz. Fala num tom pacato e monótono, parece recitar uma espécie de
mantra. Sua técnica funciona, pois as pálpebras de Naomi começam a vibrar, como se
fossem percorridas por descargas elétricas.
Estou sentada numa cadeira, afastada. Em princípio, não deveria nem estar naquela
sala, mas depois que expliquei ao dr. Mahl as circunstâncias que nos levaram até ele, sem
esquecer minhas suspeitas a respeiro de Tito e de sua festa, ele permitiu que assistisse,
desde que ficasse em completo silêncio. Diz que é importante que Naomi tenha uma figura
de referência com quem possa conversar durante o tratamento. E que essa figura poderia
ser eu. Tenho que ficar imóvel, sem um suspiro. O que não é difícil para mim. Dominada,
aliás, pelo ritmo de suas palavras, tenho que me esforçar para não adormecer também.
— Naomi, estou segurando sua mão. Está sentindo? — diz o Dr. Mahl.
Ela faz que sim com a cabeça, murmurando alguma coisa.
— Estamos indo para algum lugar. Para onde está me levando?
— Vamos à fffesta...
— Festa de quem?
— Te... tem um baaar.
— E com quem você está?
— Com Tito.
— E quem éTito?
— Um amiiigo meeeu.
— É só amigo mesmo?
Naomi balança a cabeça.
— É seu novo namorado?
Ela balança a cabeça mais violentamente ainda.
— Certo. Vamos então. Vamos passar primeiro no bar.
Naomi estremece.
— Está muito frio hoje à noite, não?
Ela concorda, sem parar de tremer.
— Vista a minha jaqueta. Vai melhorar.
Naomi relaxa e o tremor desaparece.
— Agora, podemos sair do bar... para onde iremos?
— Para a festaaaa.
— Chegamos à festa. Está gostando?
Naomi faz que sim.
— Quer beber alguma coisa?
— Ti...to.
— Tito está trazendo bebidas para você?
Naomi concorda.
— Que bebida?
— Gim-tônica.
— E quantos são?
Naomi abre a palma da mão diante de si.
— Cinco gins-tônicas... Vai beber todas elas?
Naomi balança a cabeça.
— Quantas você bebeu?
Mostra dois dedos da mão.
Muito bem, penso. Não é tão boba quanto pensei.
— São boas? — continua o médico.
Balança novamente.
— Sua cabeça está girando?
Naomi fica séria. Depois começa a se agitar.
— Não! Não! Não! — repete gritando. E recomeça a tremer.
— Está com frio novamente?
— Não! Agulha, não!
— Alguém trouxe uma seringa?
Faz que sim.
— Minhas rooooupas.
— O que houve com suas roupas?
— As roupas!
Alguém está tirando a sua roupa?
— Hum, hum.
— Quem, Naomi?
— Ahhhhhhh.
Assisto à cena petrificada.
— Quem são eles?
— Ti...to.
— Está sozinho?
Faz que não com a cabeça.
— Quantos são?
Abre a palma da mão.
— Cinco.
Naomi salta como se evitasse um ataque.
— O que estão fazendo?
Naomi se esquiva de um segundo golpe.
— Estão armados?
Não se mexe.
— Um revólver?
Balança a cabeça.
— Uma faca.
Sacode a cabeça com mais força. Depois se retrai; de repente, abandona a mão do
médico e ergue os dois indicadores unidos em cruz diante de seu rosto.
— É um crucifixo?
Confirma novamente, se contorcendo como um peixe na rede.
O que tem um crucifixo com isso tudo?
O Dr. Mahl segura sua mão outra vez.
— Uhhhhh!
— O que estão fazendo?
— Está queimaaaando!
— Cigarro? Estão queimando você, Naomi?
Naomi grita. E depois começa a chorar.
Ao vê-la se contorcendo no divã, entendo que está revivendo a mesmíssima dor que
sentiu naquela noite. Levanto para dar um basta naquilo.
O Dr. Mahl olha para mim com o rabo do olho e faz um sinal com a mão livre para
me deter. A outra está sempre com a de Naomi.
Agora ele acaricia sua testa suada.
— Você está sendo tocada por muitas mãos?
Naomi faz que sim.
Eu estremeço.
— Alguém... está abusando... de você?
O corpo de Naomi vibra como uma vela batida pelo vento. Tem as pernas afastadas
e os braços abertos. Não abandona a mão do médico nem por um instante.
Sofro em silêncio.
Em seguida, lentamente, Naomi se enrosca sobre o divã.
Como um bebê que ainda vai nascer. Que espera renascer. Estava nessa posição
quando a encontrei na frente da igreja. Enrodilhada sobre si mesma.
O Dr. Mahl acaricia sua testa.
— Parou de queimar, Naomi. Está sentindo? Viu? Acabou, tudo acabou.
Pouco a pouco, ela parece se acalmar. Em seguida, o médico diz alguma coisa.
Começa a recitar seu mantra. É estranho... tem um quê de religioso, mais do que médico.
Tenta afugentar alguma coisa, afastá-la.
— Amanheceu finalmente, é hora de acordar — diz ele com doçura.
Muito devagar, Naomi abre os olhos banhados de lágrimas.
— Onde estou?
— No meu consultório, querida.
O médico sorri para ela.
— Preciso ir ao banheiro.
— Claro. Siga pelo corredor. É a primeira porta à direita.
Quando Naomi sai, o médico me chama mais perto.
— O que o senhor achou?
— Foi tudo bem. Ela vai se lembrar com o tempo.
— Tem certeza?
— Certa mesmo, só a morte, minha cara. Mas estou esperançoso. Gostaria, porém,
de conversar sobre uma outra coisa — diz ele em tom grave.
Ouço em silêncio.
— Temo que sua amiga tenha sido vítima de uma seita satanista. O crucifixo, as
torturas, a droga, a violência em grupo são sinais importantes, embora não definitivos. O
mundo está cheio de imbecis. Mas, por enquanto, é melhor não dizer nada a ninguém. Por
favor. Sobretudo a ela. Seria muito danoso para o seu equilíbrio.
Equilíbrio, equilíbrio. Coisa difícil de se manter.
— Uma seita satanista?
O médico confirma.
— Infelizmente, é um fenômeno que vem crescendo na cidade. Sobretudo entre os
jovens.
Penso nos assassinatos que descrevi. Na brutal ritualidade com que as pobres
vítimas foram mortas.
— Tem uma coisa que gostaria de perguntar.
— Pode falar...
— Na sua opinião, é possível sonhar com alguma coisa que depois acontece de
verdade?
— Claro, pode acontecer. São chamados de sonhos premonitórios. E como se
explica isso?
— Algumas pessoas falam de uma espécie de telepatia.
— Telepatia?
— Sim, uma conexão entre mentes humanas. Muitas vezes, tudo se desencadeia a
partir de um evento traumático. Um acidente, por exemplo.
— Um acidente?
— Exatamente. Como o que você sofreu. — O médico olha para mim com ar
interrogativo. Não movo um músculo sequer do rosto.
Aprendi nas sessões com ele a não deixar escapar nada.
No fim, ele parece rendido.
— Se o assunto a interessa, posso emprestar um livro que expõe uma teoria muito
interessante a respeito disso. Não sou especialista no tema, mas encontrei nesse livro
algumas observações dignas de nota.
— Ótimo, obrigada.
— É para um trabalho da escola?
— É, um trabalho — minto.
O dr. Mahl se levanta e pega na estante às suas costas um volume marrom com o
título em ouro: Sonhar é Sobreviver.
Passa o livro para mim.
— Encontrará aqui tudo o que precisa saber.
Coloco o livro na mochila de modo que Naomi não veja.
Ela retorna do banheiro naquele exato instante.
O médico lhe oferece um copo d’água, que ela bebe com avidez. Em seguida,
marca a próxima consulta e se despede.
— O que houve? O que eu disse? — pergunta Naomi assim que saímos.
— Foi tudo bem, Naomi. Tudo certo — tranquilizo. Estou mentindo. De novo.
Sinto um medo horrível. E não paro um instante de pensar no livro dentro de minha
mochila.
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