Escuridão escrita por Emaluela
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SE TEM UMA COISA QUE GOSTO DE FAZER DE MANHÃ É TOMAR UM CAFÉ
fumegante no bar atrás de casa. Não tinha voltado desde que li a notícia do publicitário
assassinado. Mas hoje quero tentar exorcizar meu pesadelo e talvez consiga fazer isso
junto com Seline e Naomi. No balcão, o rapaz de sempre, que, como sempre, sorri. Fico
feliz e retribuo.
— Faz um tempo que não aparece.
— Pois é. Pode me fazer um café?
— É para já. E para vocês?
Naomi pede um café de cevada. Seline, nada. Pago pelas três ao rapaz, mas desta
vez nossas mãos não se tocam. Ao sair, dou uma olhada nos exemplares de free press
largados numa mesinha. A notícia do publicitário assassinado já não está na primeira
página. Não verifico se tem alguma coisa no interior, se há novidades. Não quero saber de
nada.
— Tudo bem?
Naomi interceptou meu olhar.
— Não poderia estar melhor — minto, erguendo o café.
Descemos do ônibus alguns pontos antes da escola. Nenhuma de nós tem vontade
de chegar na hora. É um daqueles raros dias em que o céu está mais azul do que cinza e
a chuva não ensopa qualquer desejo de ficar ao ar livre.
Caminhamos ao longo de uma calçada do centro, uma ao lado da outra, batendo
papo furado, quando de repente meu olhar cai sobre a vitrine de uma loja ainda fechada. É
uma papelaria. A papelaria onde comprei meu caderno roxo.
Diminuo o passo, rememorando aquele dia.
Chovia a cântaros e não se via quase nada entre os jatos d’água dos carros
disparados na rua e a torrente que escorria das calhas transbordantes dos edifícios. Mas
algo atraiu minha atenção: uma vitrine toda roxa. Havia canetas, lápis, estojos, borrachas,
cadernos, pastas, tudo rigorosamente roxo. Minha cor preferida. Meu caderno estava
colocado bem no centro da vitrine. Estava aberto e apoiado nas próprias páginas cor de
marfim, lisas e de gramatura pesada. A capa parecia de couro. E eu ali, do lado de fora,
olhando para ele sob a chuva. Não sei por que motivo, entrei imediatamente para comprá-
lo.
O som desafinado de uma velha campainha me recebeu e introduziu ao interior da
loja, aonde os rumores do tráfego pareciam não chegar. A loja não era grande, nem bonita.
Tinha um não sei quê antigo, com prateleiras de madeira que formavam pequenos e
baixos corredores. A luz vinha de velhos globos de vidro que pendiam do teto como ovos
enormes.
No interior da papelaria havia um homem totalmente normal, de estatura média e
aspecto idem. Tinha a pela clara, os cabelos brancos e os olhos azuis. Ele me fez pensar
num velho anjo que vi num velho cartaz teatral. Sua idade era indefinida e olhava para mim
de um jeito muito estranho, paciente e ao mesmo tempo curioso. Em sua loja, eu me senti
completamente à vontade. E ele me observava, tranquilo.
— Bom dia, mocinha. Posso fazer alguma coisa pela senhorita? — disse ele,
apontando para o meu guarda-chuva que gotejava insistentemente sobre o pavimento de
madeira escura.
Seu olhar não demonstrava irritação, nem pressa. E, além do mais, tinha me
chamado de .senhorita.. E isso não me desagradou. Gostaria de conhecer melhor as
velhas regras de conversação para poder responder com o mesmo pacato senso de
medida, mas as palavras me escapavam. Limitei-me, portanto, ao essencial.
— Queria ver o caderno da vitrine.
— Claro.
Ele, o velho anjo, deslocou um painel para pegar o caderno e, em seguida, colocou-
o cuidadosamente no balcão que ficava no fundo da sala.
Acaricei-o, tocando com o dedo o couro roxo que o envolvia.
— Vou levar. — decidi sem sequer perguntar o preço.
— Muito bem, senhorita. É um presente? Embrulho ou...
— Não, não — foi o que respondi com uma certa urgência. — É para mim.
— O que está olhando? — pergunta Seline.
— Nada. Por quê?
— Parecia perdida em seus pensamentos.
Lanço um último olhar para a vitrine da papelaria, para as portas de ferro abaixadas,
e me pergunto a que horas chegará o velho anjo para abri-las, se é que vai abrir hoje, pois
a velha papelaria só abre nos dias de chuva. E só quando passo por ali.
— É melhor nos apressarmos ou vamos nos atrasar. — digo, afastando aqueles
pensamentos.
— Já é tarde — observa Naomi.
Aceleramos o passo.
****
Conforme previsto, chegamos à escola atrasadas, mas ninguém nos dá atenção. As
portas das salas estão abertas, com os alunos meio dentro, meio fora, como durante o
recreio. O ar está impregnado de um forte cheiro de queimado, mas não me lembro de ter
notado nenhum incêndio, O que será que aconteceu?
— Que horas são? — pergunto.
Nunca uso relógio. Tem sempre alguém a quem se pode perguntar a hora.
— São oito e meia! Droga! — Naomi olha o relógio, espantada que já seja tão tarde.
Diante do gabinete do diretor tem um policial examinando todo mundo de cima a
baixo, com aquela atitude típica de quem leva a vida à procura de um culpado. Quando
seu olhar passa rapidamente por mim, estremeço e digo a mim mesma que é bobagem.
Não fiz nada. Não está ali por minha causa.
— Mas o que houve? — pergunto em voz alta.
— Fizeram o maior estrago na sala do Scrooge – ouço um menino dizer às minhas
costas.
— Está brincando...
— Não.
— Do Scrooge?
— Hã, hã.
Scrooge é o diretor da escola, um homem seco, solitário, solteiro e interessado
apenas no trabalho, que é a única coisa que sabe fazer. Seu nome verdadeiro não é esse,
mas desde que os alunos mais velhos lhe deram o nome do insuportável protagonista dos
famosos quadrinhos,1 ele nunca mais se livrou. Há quem diga que o verdadeiro Scrooge
não é ele, mas o antigo diretor, seu antecessor, totalmente igual a ele, só que mais velho.
1 Ebenezer Scrooge é o personagem principal do romance Um Conto de Natal, de Charles Dickens. O personagem serviu
de inspiração para Gari Barks criar mais tarde o Tio Parinhas. (N. da E.)
Peço algumas explicações ao menino que está atrás de mim.
— Parece que alguém entrou na sala ontem à noite e fez um estrago. Sujou as
paredes, destruiu uma parte dos arquivos, queimou a escrivaninha.
— Correndo o risco de tocar fogo na escola inteira. — Naomi está horrorizada.
— Os bombeiros acabaram de sair — acrescenta o menino. — Alagaram metade do
corredor do primeiro andar.
— Que história mais doida. — diz Naomi, abrindo espaço entre os curiosos.
— E não têm ideia de quem foi? — pergunto.
— Um bando, provavelmente
— E como Scrooge reagiu?
— Do jeito dele.
— Vai nos trancar nas salas até descobrir o culpado?
Ele ri, nervoso.
— Alguma coisa assim, acho.
Naquele momento, chega Agatha. Está com os fones enfiados nos ouvidos, mas dá
para ouvir o rock que está escutando. Olha ao redor para entender o que está ocorrendo,
me vê e se aproxima. Em seguida, tira um dos fones e pergunta:
— Que bagunça é essa?
— Destruíram o gabinete do Scrooge.
— Quem foi?
— Acho que ainda não sabem. Mas a polícia está investigando.
— A polícia?
— Está vendo aquele sujeito lá no fundo? É da polícia.
— Assunto sério, então.
— É o que parece.
Agatha recoloca o fone no ouvido. Não parece muito perturbada com a notícia. A
bem dizer, nada parece perturbá-la, nunca.
— Vou subir — informa. — Nos vemos na sala.
— Correu tudo bem na reunião, ontem — digo sem olhar oara ela.
Agatha para.
— Ia mesmo perguntar. Alguma novidade?
— Não, nenhuma.
— Ótimo.
— Agatha? — interrompe Seline. — Como vai sua tia?
Agatha a encara com aqueles seus estranhos olhos cinzentos, cujo fundo não se
consegue ver, e responde:
— Melhor... obrigada.
Em seguida, liga o MP3, dispara novamente a música a milhões de decibéis e
começa a subir a escada, como se nada tivesse acontecido. E como se aquilo não tivesse
nada a ver com ela.
— Coitadinha — comenta Seline. — Está com a cabeça longe.
Naomi bota as mãos nos quadris.
— Pode ser... Mas quem sabe onde?
— Vamos embora — digo eu, quando percebo que o policial continua a nos
examinar, uma por uma, como se estivesse escolhendo a próxima vitíma.
Minhas mãos estão coçando.
Como acontece quando se tem vontade de escrever.
12
ESTA MANHÃ A ESCOLA PARECE UMA COLMEIA DE BOATOS, SUSPEITAS e
insinuações de todo tipo. Se não conseguiu nada mais, o incêndio no gabinete de Scrooge
deu um pouco de vida a meus colegas. O policial caminha para a frente e para trás nos
corredores, na esperança de encontrar culpados. Pelo que conseguimos apurar —
trancados nas salas de aula, mas com as orelhas em pé em busca de qualquer novidade e
um sofisticado esquema de turnos para ir ao banheiro e interrogar os inspetores — , o
vândalo ou os vândalos ainda não foram identificados. Às dez chega o primeiro
comunicado de Scrooge, lido pelo professor de matemática, uma lagartixa de óculos,
perdendo os cabelos, olhos vermelhos a maior parte do tempo. O diretor ameaça
suspende a escola inteira por uma semana, se o nome do culpado não aparecer.
Não me parece um castigo tão ruim. Se não fosse a chatice dessa cidade, uma
semana sem escola seria uma verdadeira maravilha.
No intervalo, a tensão é grande, percebo murmúrios e nomes que se perseguem a
meia-voz. Quem foi? Você conhece? O que esse policial vai fazer conosco? Ouvi dizer que
aconteceu a mesma coisa em outra cidade. Scrooge ainda não saiu do que restou de seu
gabinete. Queimaram todas as suas fotografias.
Scrooge está furioso.
Scrooge vai nos fazer pagar.
Em toda aquela ciranda de vozes, só uma pessoa parece totalmente relaxada.
Morgan, encostado diante da porta da minha sala.
— Esperando alguém? — pergunto, aproximando-me indiferente.
— É.
Jamais lhe darei a satisfação de perguntar quem é. Fico em silêncio e pero que ele
diga. Mas Morgan olha para o corredor, para os outros meninos, as outras meninas.
Depois, sem afastar os olhos da fila de luzes rescentes que iluminam o teto, pergunta:
— Gostaria de uma xícara de chocolate quente depois da escola?
— Um chocolate? — debocho. — Ora, um homem à moda antiga...
Na realidade, não acho nada mal.
— Um café, então...
— Obrigada, mas não posso — respondo sem desviar o olhar de olhos violeta,
magnéticos. Morgan é um menino maravilhoso, não confio nele e prefiro não me
aproximar.
Ele não parece aborrecido. É como se entendesse por que recusei. Mas não pode
ter entendido, porque no fundo nem eu mesma sei.
— Tudo bem. — diz ele, afastando-se da parede. Roça leve braço. Sinto apenas o
ar que sua mão moveu, cheio de energia.
— Por essa vez, passa... — sorri e vai embora.
Fico olhando suas costas retas cujo movimento acompanha o passo elegante.
Parece saído de um romance do século XIX.
— Deixou escapar? — pergunta Naomi, chegando com um suco ara de caixinha.
— O que disse?
— Morgan.
— Não veio atrás de mim.
— Ah, não? E de quem, então? Acho que não parou para falar com ninguém.
De fato, Morgan tinha dito que esperava uma pessoa. Depois me convidou para
tomar um chocolate.
É possível que...
Com os olhos, procuro por ele novamente, mas não o vejo mais. Não sei para onde
foi. Não sei de onde vem.
Não sei nada sobre ele. E talvez não me interesse saber.
****
No final das aulas, antes de sair da escola, dou uma passadinha no banheiro.
Agatha também está lá. Fumando.
— Não sabia que fumava.
— De vez em quando.
Tem todo o jeito de quem não está contente em me ver. A única coisa que me
intriga é por que está fumando no banheiro, se não tem ninguém para impedi-la lá fora.
— Quer uma tragada?
— Não, acho cigarro nojento.
Os cigarros deixam o hálito ruim e estragam os dentes. Os de Agatha já são feios,
mas gosto muito dos meus. Não tenho nenhuma cárie e me orgulho disso.
Lavo as mãos com muito sabão, como gosto. Agatha olha para fora da janela,
envolvida pelas espirais de fumaça, completamente perdida em seus pensamentos. Pego
uma toalha de papel do suporte, mas ela acaba caindo no chão de ladrilhos cinzentos
incrustados de manchas pretas. Quando me inclino para jogá-la fora, noto que tem uma
coisa despontando do zíper aberto da mochila de Agatha. Olho melhor. É uma seringa.
Ela percebe que vi, agarra a mochila, apaga o cigarro na pia e puxa o ziper.
— Não está fazendo alguma besteira, está? — pergunto.
— É para minha tia. Tem que tomar uma injeção toda noite.
Resolvo acreditar, embora Agatha esteja cada vez mais estranha ultimamente.
Saímos juntas da escola. As outras já foram. Agatha desamarra sua velha bicicleta
de corrida de um poste e eu me dirijo para o ponto do ônibus.
— Tchau. — dizemos antes de nos afastar, cada uma para a sua casa e para os
problemas que esconde.
****
Seguindo a rua até o ponto de ônibus, encontro Morgan de novo.
Ele caminha lentamente, metido numa jaqueta de lã pesada azul-marinho, como um
rio noturno. Vira para mim, olha e sorri.
Não vejo sua boca, coberta por uma echarpe enrolada no pescoço como uma jiboia,
mas seus olhos falam claramente:
Um arrepio percorre minha espinha. Sobe pelas pernas e corre rapidíssimo até a
cabeça, onde provoca uma pontada, forte e muito breve. Fecho os olhos de repente para
buscar alívio. Quando volto a abri-los, Morgan ainda está lá, assim como aquele arrepio
sob a pele que agora ameaça descer mais fundo.
Ele afasta a echarpe da boca com toda a delicadeza.
— Posso ir andando com você um pouco?
— Vou pegar o ônibus.
Aponta para o ponto a cem passos de nós.
— Posso acompanhá-la até lá.
Não digo que sim, nem que não. Caminhamos.
Não consigo entender por que está sendo tão insistente. Talvez ele ambém seja um
desses caçadores de aventuras que cercam a menina por um tempo e, depois, quando
notam que não vão conseguir nada, passam para a próxima vítima.
— Como conseguiu isso?
— Isso o quê?
— Aquela cicatriz, ali, embaixo da orelha. — Indica um ponto quase invisível entre
meus cabelos.
Sorrio.
— Por que está sorrindo?
— Porque é estranho.
— O quê?
— Que tenha notado.
— Por quê?
— Porque você foi o único.
Ele afunda o queixo na echarpe. Parece satisfeito com a minha resposta, embora
minha intenção não fosse elogiá-lo.
Nossos passos seguem simétricos na calçada.
— Sofreu um acidente?
— Como é que sabe?
— Não sei. Foi uma simples suposição.
Suposição, aliás, que não é nada agradável. Quase me assusta.
— Sim, sofri um acidente. Mas, como pode ver, não houve nada comigo.
Afasto os cabelos de modo que a cicatriz fique mais visível.
— E com os outros?
Morgan se aproxima. Estende a mãi e toca a cicatriz com um dedo. Queima como
gasolina numa ferida.
Olho para ele.
— Os outros morreram respondo. E em seguida acrescento num fio de voz: — Eram
duas amigas minhas de infância.
Ele afasta a echarpe de novo e abre a jaqueta, puxando a gola da suéter para baixo.
Sua pele é clara e perfeita, mas também tem uma cicatriz na base do pescoço. Mesmo
sem tocá-la, poderia jurar que é lisa e fria, como a minha. Olho a cicatriz e fico sem
palavras.
— Também sofri um acidente. Deve ser por isso que tenho bom olho para cicatrizes.
Ri sozinho da própria gracinha.
Depois se cobre novamente e tudo desaparece, oculto pelo azul-noite de sua
jaqueta.
13
FIM DE SEMANA.
Todos esperam por ele ansiosamente: quem estuda e quem trabalha. Não vejo nada
de tão empolgante. Em geral, não acontece nada de especial nos dois dias em que grande
parte da humanidade se dedica furiosamente a tudo aquilo que não conseguiu fazer no
resto da semana.
Jenna, como acontece tantas vezes aos sábados, está de serviço no hospital. Gad
vai aparecer à noite com alguma delícia frita que o deixa de estômago pesado, mas de
espírito leve. Evan já foi para seu velho ginasio fedorento, onde vai tocar com a banda até
o amanhecer. O local pertence ao tio de Bi, que permite que o use em troca de uma ajuda
de vez em quando para descarregar as mercadorias de sua loja de ferragens. Prefiro, ao
contrário, ficar em casa com a pequena Lina e seu universo silencioso.
Na medida do possível, arrumo meu quarto. E quando estou pensando a jaqueta
que usava quando armamos a emboscada para Adam, ouço o tilintar de uma sinetinha. De
um dos bolsos, retiro o amuleto de Lina. Seguro entre os dedos e sacudo. Produz um
sonzinho muito parecido com o de um sino verdadeiro. Jenna contou que quando Lina era
pequena, bastava fazê-lo soar perto de seu ouvido para tranquilizá-la. E tem esse efeito
sobre ela até hoje. Dizem que os recém-nascidos conservam uma espécie de memória
inconsciente do que aconteceu com eles nos primeiros anos de vida, e a sinetinha de Lina
é uma prova concreta disso. Não tenho nenhum objeto semelhante. No meu caso, existe
apenas a escuridão. Nada que me recorde a infância.
Abro uma gaveta para guardar a sinetinha em algum lugar, quando o telefone toca.
É Naomi.
Está gritando.
— Fique calma, não estou entendendo nada!
Mas Naomi continua a gritar.
— Seline o quê? No hospital? Mas quando? Estou chegando!
Desligo, pego a jaqueta e corro para a sala onde Lina está vendo um desenho
animado.
— Preciso sair, Lina. É uma emergência. Trate de se comportar e não saia daí.
Volto logo.
Ela me encara com seus grandes olhos escuros, tão densos de pensamentos
inexpressos, e sorri. Quem me tranquiliza é ela.
Chego mais perto para ajeitar a manta sobre seus joelhos e só então percebo que o
pingente ainda está na minha mão, tilintando. Ela ouve aquele som, feliz porque estou com
seu presente. Instintivamente, dá um beijo em meu rosto com aqueles seus lábios macios
e delicados. Fico rígida e surpresa, em geral não permito que ninguém me beije. Não gosto
de contatos. Um círculo de calor se espalha em minha bochecha e se irradia por todo o
rosto, relaxando os músculos da face.
Em seguida, de repente, sinto uma pontada na cabeça. Forte. Sento no sofá, ao
lado de Lina, com os olhos fechados.
Ela sacode meu braço.
Vai passar.
Passar.
Passou.
— Já vou indo — digo, abrindo os olhos novamente. — Não foi nada, volto logo.
****
Se me perguntassem como imagino o inferno, diria que é igual a um pronto-socorro.
Ficamos todos ali, sentados, sofrendo e esperando a nossa vez. Um segura o braço,
outro uma gaze vermelha de sangue sobre o rosto. Todos esperam e, enquanto isso,
assistem ao desfile de macas tendo a bordo os feridos mais graves que eles, que têm
precedência na luta contra o destino. O atendimento não é feito com base na ordem de
chegada, mas na gravidade das próprias condições.
Quem decide é o enfermeiro da triagem, treinado para dar a cada paciente uma cor-
código. Branco: nenhuma urgência. Verde: nenhuma lesão vital, pode esperar para ser
atendido. Amarelo: urgente, comprometimento parcial das funções do paciente, embora
não haja risco de morte imediata. E por fim, Vermelho: emergência, pelo menos uma das
funções vitais (respiração, batimentos cardíacos etc.) comprometida e risco imediato de
morte. Na readade, existem mais duas cores: Laranja, para paciente contaminados; e
Preto, paciente morto.
O pronto-socorro é uma extensão de rostos cansados, pálidos, assustados. Não há
diferença entre médicos e pacientes. Reconheço Naomi no meio deles.
— O que houve?
— Finalmente! Seline está mal!
— Explique direito.
— Tínhamos saído, estávamos no BabyBlue tomando uma cerveja quando ela
desmaiou e não houve jeito de reanimá-la.
— Tinha tomado alguma coisa?
— Não, nada! Acho que o problema é exatamente esse. Ela não come há dias.
— Se bebeu de estômago vazio, é normal que tenha vertigem.
— Alma... acho que Seline tem um sério problema com comida.
De repente, tudo fica claro. Revejo as caretas de Seline no refeitório diante da pizza
na outra noite, rememoro suas palavras a respeito do vídeo e do vexame que passou
diante de toda a escola.
— Onde ela está?
— Foi levada para lá — diz Naomi, apontando para um corredor á nossa direita.
— Qual foi a cor que lhe deram?
Naomi sacode a cabeça. Não sabe.
— Vamos esperar, então.
Nesse meio-tempo chegam também os pais de Seline. Ela é uma mulher feinha,
com cabelos escuros e curtos, não muito alta. Tem os olhos grandes, levemente bovinos,
mas bons. Entre os dois, quem tem um trabalho é ela. O pai, ao contrário, é um sujeito
elegante e um pouco excêntrico, daqueles que poderiam se insinuar para as colegas de
escola da filha. Tem sempre uma historinha divertida para contar e um sorriso impecável,
de 32 dentes brancos como a neve. Nenhuma de nós conseguiu descobrir o que faz na
vida, mas de todo modo, à parte isso, é um homem alto e esbelto, de cabelos curtos,
ondulados, e com o rosto liso de um adolescente. Pelo modo como se move, dá para
perceber que se acha o máximo e que não dá a mínima para a mulher.
Parecem preocupados, sobretudo a mãe. Ele me dá uma olhada complacente e
depois se dirige a Naomi.
— Como ela está? O que aconteceu?
Naomi explica tudo de novo, deixando de lado os detalhes inconvenientes. A mãe
de Seline segura a cabeça entre as mãos, enquanto o pai vai falar com o enfermeiro da
triagem para pedir noticias da filha.
— Como pode? — repete a mulher.
A seu lado, tento me manter fria como gelo. Sei que Seline é muito ligada aos pais,
que sempre satisfizeram todos os seus caprichos e desejos. Mas é evidente que isso não
basta para estabelecer a compreensão e o entendimento entre eles. O que aquele pai
sabe do que está acontecendo com a filha? E o que diria a mãe, tão dedicada ao trabalho,
mas evidentemente incapaz de administrar o que tem de mais importante na vida, se
ficasse sabendo que circula em nossa escola um vídeo em que sua filha aparece
seminua?
Olho para os dois juntos, pai e mãe, e vejo apenas uma prisão de convenções e de
afetos postiços. Tenho sorte por nunca ter me apaixonado.
Logo em seguida, um médico se aproxima. Tem um olhar muito compenetrado e
uma papeleta clínica cheia de números.
— São os pais de Seline?
— Sou o pai. Ela é a mãe. As duas são... colegas de escola.
— Como ela está? — pergunta logo a mãe.
— Melhor agora. Está sob controle.
— Mas como...
— Exagerou no álcool e... bem, sua filha come adequadamente?
Os pais de Seline se olham, espantados. A mãe vacila.
Fico em silêncio e, com os olhos, imponho o mesmo comportamento a Naomi.
— Sim, creio que sim. — responde o pai. — Mas por que a pergunta?
Não sabem de nada. Não notaram nada.
— Porque, na verdade, ela está magra demais, e os exames de sangue indicam
uma forte anemia.
— O que significa isso?
— Que não come há dias.
O pai se vira abruptamente e me encara.
— Meninas? — pergunta, como se nos acusasse de alguma coisa.
— Não sabemos o que dizer — replico. — Não notamos nada de estranho.
Naomi, pouco convencida, concorda a meu lado. O pai e a mãe de Seline trocam
olhares desconfiados.
O médico tosse.
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