Escuridão escrita por Emaluela
1
ESTÁ ESCURO.
Ando, mas não saio do lugar. Minhas pernas pesam como chumbo e na minha
cabeça batem os golpes dos passos imóveis, que martelam sem parar. Começo a sentir
frio. Tremo e não consigo me aquecer. Meus braços também estão paralisados. Doem de
uma dor que nunca senti antes, quase como se estivessem sendo arrancados.
Tento gritar, mas não consigo. Emito apenas um fio de voz rouca e desafinada,
como o som de um instrumento de sopro que tivesse ficado muito tempo embaixo d’água.
Onde estou?
Sinto que alguns rumores, de início, distantes, ficam mais próximos e continuo a
tremer, agora também de medo.
Depois abro os olhos e não vejo nada. Só a escuridão. Mas estarão abertos
mesmo? Sim: vejo uma lâmina de luz embaixo, à direita. E ouço vozes que me parecem
familiares. Do outro lado de uma porta.
Levanto num salto e descubro que, finalmente, posso me mexer. Estou em minha
cama.
Só estava dormindo.
Respiro devagar, tento entender. Aconteceu de novo. A fronteira entre o sono e a
vigília não existe mais, os pesadelos são verdadeiros, a realidade, um inferno. O sonho se
torna realidade. E é um inferno também.
Isso me acontece muito, desde o dia do acidente.
Procuro às apalpadelas o abajur na mesinha de cabeceira. É horrível, rosa com uma
cúpula de plumas sintéticas.
A primeira coisa que vejo é o caderno roxo, que caiu no chão na pressa de levantar.
Comprei ontem. Estava à mostra na vitrine de uma papelaria no centro, uma lojinha sem
graça que nunca tinha notado antes. Deve ter sido pela cor, roxo, mas logo achei que era
lindo. Ainda não sei se ou o que vou escrever. Mas estou contente por tê-lo comprado.
Precisava ter aquele caderno e ponto final.
Agora ele está no chão, todo desfolhado entre os livros da escola que repetem
monótonos, as mesmas histórias inúteis. Sinto suas palavras os números de suas páginas
martelarem em minha cabeça. Vejo suas horríveis ilustrações, as marcas de meu lápis
sublinhando linhas sempre iguais. Penso na escola.
Fecho e reabro os olhos. Inferno.
Dou uma olhadela para o despertador, velho e barulhento. É cedo. São só seis
horas.
Inferno.
Mais barulhos. Barulhos demais. Fecho e reabro os olhos.
É terça-feira.
Os barulhos são de Jenna, minha mãe, que começa mais cedo o seu turno no
hospital. É terça-feira. E ela é enfermeira. Não sei como aguenta. Jamais faria o seu
trabalho. Dias inteiros tratando de gente doente, lavando, cuidando. E para quê? Talvez
para acabar um dia na mesma cama, esperando encontrar uma enfermeira como ela, para
lavar e cuidar de você. Que estará muito mal. Que estará morrendo. Não, obrigada, não
serve para mim.
Fico imóvel sob as cobertas, esperando que a luz do dia se filtre através das
cortinas. Depois levanto e vou até a janela, uma enorme janela tão inútil quanto um ar-
condicionado na Lapônia, porque se abre a sempre e unicamente para o cinza. Cinza de
edifícios, de ruas, até de céu. Contemplo, além do rio lamacento, os aviões desfilando a
distância, sobre as pistas do aeroporto. Como queria ir embora daqui...
Olho o céu, mas não o vejo de verdade.
Hoje, como sempre, chove.
Tac, tac, tac. A chuva batuca no vidro como se quisesse chamar minha atenção.
Saio de meu quarto, sigo pelo corredor deserto em direção ao banheiro. A escuridão do
pesadelo volta a me assaltar, retornando bruscamente a meus pensamentos. Deve ter sido
um sonho, só um sonho, mas me sinto arrasada. Resolvo me olhar no espelho e, pouco a
pouco, a escuridão se dissolve. Sou bonita, apesar de tudo.
Fico ali, examinando meu rosto.
De vez em quando fico pensando o que seria de minha vida se fosse feia, se não
tivesse os olhos verdes, que gosto de fincar nos rapazes para deixá-los intimidados, ou os
cabelos negros e lisos, brilhantes de dar inveja a uma gueixa, ou este corpo que continua
magro não importa o quanto coma. Como seria a minha vida?
Seria um único, colossal, irremediável horror. Podem pensar o que quiserem. A
verdade é que a beleza é uma forma de poder.
A única que tenho.
A única verdadeira, digo.
— E depois, gosto do poder... — digo em voz alta, piscando para mim mesma no
espelho.
Chove lá fora.
Olho bem nos meus olhos.
Já me recuperei.
No corredor, dou de cara com a silhueta errante de meu irmão Evan. É difícil
acreditar que sejamos parentes. Evan carrega os seus 14 anos como quem usa um casaco
velho. Com vergonha. Faz o tempo passar, arrancando cada dia de si mesmo como se
fosse um esparadrapo. Só tem um objetivo: chegar aos 18 anos, ou seja, à liberdade de
fazer o que bem entender, de parar de estudar e de poder, finalmente, morar com Bi, sua
namorada, o único ser humano com quem realmente fala ou interage de alguma maneira.
Evan tem os cabelos opacos, sem vida, e se veste sempre da mesma maneira.
Calça de moletom com elástico e casacos molambentos, sapatos enormes e camisetas
esquisitas, meio descosturadas. Tudo rigorosamente escuro. Tem paixão por piercings.
Acho que estão espalhados pelo corpo inteiro.
A última novidade é um alfinete de fralda enfiado na bochecha.
— Lindo — comento sarcástica assim que o vejo.
Sem resposta. Só um olhar torto, acompanhado de um resmungo digno de uma
velha balconista de bar cansada do trabalho.
Evan me evita e desaparece. Àquela hora da manhã, já enfiou os fones nos ouvidos,
disparando punk-rock a milhões de decibéis.
Suspiro. Não há o que fazer. Não acho que seja por causa dos três anos que nos
separam, nem pelo fato de ser menino. Evan é um ser de outro planeta que ainda não foi
desmascarado. Não há comunicação possível com ele, e basta.
Segue balançando até seu quarto e se fecha lá dentro. Tenho uma imagem fugaz de
seu futuro. Não vejo nada. Só problemas.
Cedo ou tarde, os acontecimentos vão me dar razão.
E aí ninguém vai poder fazer mais nada.
****
Trato de me vestir rapidamente e coloco a mochila no ombro. É roxa, como o
caderno que comprei ontem e um monte de outras coisas que me pertencem. É roxa
porque tudo o que me agrada é roxo.
Abro a porta de casa e volto a fechá-la atrás de mim. Estou pronta para ir à escola.
Hoje é dia de batizado.
Não quer ver anúncios?
Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!
Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!