Heavenly Oblivion I -The Fate- escrita por HopeNightingale


Capítulo 5
V - Rotina Monocromática


Notas iniciais do capítulo

Após meses de espera... Enfim o capítulo 5~ Espero que gostem e me desculpem pela demora! Boa Leitura ♥



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/167705/chapter/5


Você é muito fraco, Sr. Nightingale! Como pôde ser derrotado tão facilmente depois de ter chego tão longe? Até eu consigo ser mais durona que você, bobalhão.


Uma airosa garotinha rodeava-me com um sorriso irônico estampado em sua face. Lisos e brilhantes cabelos prateados como os meus acariciavam suas bochechas rosadas, terminando em perfeitas curvas próximas aos ombros nus.


– Como é? – levantei-me do chão num salto e contemplei seus passos com precisão. Estávamos no interior de um cômodo alvo e aconchegante; uma ampla janela de madeira, parcialmente aberta, permitia a entrada de luz solar e de um ar fresco e pueril, comum em locais arborizados como relvas e florestas. – Você não tem o direito de falar essas coisas sobre mim! E afinal, como vim parar aqui? Minha cabeça está uma bagunça... Lembro-me de estar em Montreal e... – de repente, uma forte vertigem tomou meus pensamentos, trazendo consigo toda a reminiscência dos eventos passados. – Está tão claro lá fora... Já amanheceu? Onde estão os outros?!


– Ui, quantas perguntas! – ela riu com escárnio enquanto moldava os fios capilares usando o dedo indicador. – Não me venha com essa falsa amnésia que se resolve repentinamente acompanhada de infinitos questionamentos. Como conseguem ser tão chatos e previsíveis? É algum tipo de característica básica que os fragmentos de Alma Zero possuem? Você precisa de mais originalidade. Pois bem, se confiar em mim e ao menos escutar-me já será um grande progresso.


Seus dizeres eram rudes: o completo inverso de sua aparência física. Porém, o que realmente deixava-me receoso eram seus insultos sem qualquer partícula de hesitação ou pena; mesmo com forma de uma menininha aparentemente indefesa, não pude descartar a hipótese de que poderia ser uma inimiga (e o fato de ter conhecimento sobre o termo “Alma Zero” tornava-a suspeita, muito suspeita).


– Como sabe sobre esse termo? Não confiarei em nada que disser sem antes uma explicação! Você pode muito bem ser um Darkstalker ou algo assim! – Exclamei com a maior ferocidade que pude, mas isso não pareceu causar qualquer tipo de efeito. - Explique-se agora mesmo ou eu vou...


– Vai fazer o que, Sr. Nightingale? – Ela interrompeu-me enquanto se aproximava, audaciosa. - Você não vai fazer nada por que não tem coragem e muito menos preparo suficiente. Agora, cale essa boca e me escute.


E assim o fiz. Por mais vergonhoso que seja admitir, sua última sentença não só fez com que eu automaticamente me silenciasse, mas também sentisse um terrível arrepio. Quem era aquela criança afinal?


– Ótimo! Quietinho como deveria estar desde o começo. Agora, venha comigo.


Lançou um olhar de superioridade e gentilmente segurou minha mão; guiou-me até uma mesa redonda situada logo abaixo da janela pela qual a iluminação invadia o ambiente. Havia ali duas cadeiras, uma comum e a outra em tamanho menor do que o habitual.


– Sente-se em qual preferir.


Hesitante, dirigi-me até a cadeira maior, e então observei a belíssima paisagem exterior por um momento: uma grande montanha verde banhada por cachoeiras e rodeada por campos com as mais coloridas e variadas flores que eu já vira. A imagem era tão estonteante que mal consegui prestar atenção em outra coisa além da excêntrica natureza; voltei-me para a pequena donzela apenas quando pisou em meu pé, resmungando algo.


– Pare de olhar para fora que nem um retardado! Eu sei que é um lindo lugar, mas você tem que olhar para mim! – Com um leve tapa em meu torso continuou – E que tipo de homem você é? Vai deixar com que eu, uma dama, sente-se nessa cadeira minúscula? Trate-me com devido respeito, Sr. Nightingale!


– Desculpe-me, grandiosíssima mademoiselle... – Ainda estava encantado demais com o que vira lá fora para poder levar suas palavras a sério, contudo, quando percebi sua face contorcendo-se de raiva devido a minha entonação irônica, apressei-me a sentar no objeto menor. Desconfortável, extremamente desconfortável: o pequeno porte do móvel deixava minha coluna posicionada de uma maneira nem um pouco ergonômica, como um tecido retorcido e amassado. Permaneci calado por alguns segundos enquanto fitava-me intensamente; após diversos encontros e desencontros de olhares, ela enfim anulou o silêncio.


– Serei boazinha e responderei três interrogações suas, entretanto, deve fazê-las individualmente. Garanto que todas as respostas ditas serão verdadeiras.


– Qualquer pergunta? - rebati animado. Ela parecia estar disposta em me ajudar com algo importante.


– Sim, qualquer questão que estiver ao meu alcance de ser respondido. Agora que já fez a primeira, quais são as outras duas?


Meus pensamentos estagnaram por um momento como num blecaute; custava-me, e muito, acreditar que havia feito tamanha idiotice ao desperdiçar uma valiosa indagação de forma tão estúpida. Era quase impossível crer também que a garotinha pudesse ser tão severa em relação ao que dizia e regrava, afinal, era apenas uma criança... Ou pelo menos algo muito semelhante a uma. Após refletir um pouco, cheguei a conclusão de que a questão feita não havia sido totalmente inútil, afinal, agora eu sabia que me era possível perguntar sobre qualquer coisa que desejasse. E de acordo com suas palavras, independente do que, eu receberia uma resposta verídica. Parei, pensei, abri a boca sem proferir som algum, parei de novo, pensei mais uma vez, e esse ciclo se repetiu por pelo menos longos 5 minutos; era realmente difícil decidir algo tão "crucial" numa situação como aquela (e os risinhos sarcásticos que ressonavam baixo não colaboravam muito com meu raciocínio).


Sem mais delongas, decidi o que perguntaria. Escolhi cada palavra com cautela e montei-as em duas breves frases como se fossem bloquinhos de encaixar. Inseguro, disparei a primeira em alto e bom som, fazendo figa com os dedos para que as respostas se mostrassem pelo menos claras e objetivas.


– Eu ainda estou vivo? - A imagem da aberração a qual chamavam Bloody Mary pairou sobre minha mente no mesmo momento, fazendo com que minha voz se manifestasse com um ar assustadoramente assustador. Afinal, eu sabia que um perigoso e doloroso golpe havia me atingido e provavelmente... Retirado minha vida.


– Infelizmente... - meu coração bateu mais rápido, senti as pontas dos dedos esfriarem de repente e minha garganta secar. - Sim, você está vivo.


Deixei escapar um grande e aliviador suspiro enquanto a dona dos cabelos prateados brincava com a alça de seu vestido. Relevei o seu "Infelizmente" e abri um largo sorriso de felicidade; se até mesmo eu estava vivo, Fay, Lune e Zel com certeza também estariam (ou pelo menos algo dentro de mim fazia com que eu acreditasse nisso).


Agora, me restava realizar a terceira pergunta; era evidente meu alívio após saber que ainda não morrera, mas o olhar fixo daquela pequena e instigante criaturinha conseguia bagunçar toda a minha sanidade.


– Afinal, o que ou quem é você? - questionei sem pestanejar, frisando cada palavra.


– Até que enfim algo decente! Eu podia jurar que indagaria alguma coisa irrelevante de novo. - cerrou os olhos e bufou, parecendo estar entediada com todo aquele diálogo. - Muito prazer, meu nome é Spica e eu sou o seu Auralveus.

Depois de ouvir tais palavras, minha primeira ação foi certificar-me de que o pingente mantinha-se pendurado em meu pescoço; para minha tranquilidade, ele ainda estava ali, embora o reluzente cristal azulado houvesse desaparecido.


– Viu só? Não há nada aí, pois... Eu estou aqui, bem na sua frente! Passo a maior parte do tempo em estado Crystalite, que é quando me apresento como a pedra reluzente que você estava habituado a ver, mas posso assumir forma humana aqui dentro, recebendo o nome de Personalite. Não e legal? Ah, eu sei que é!


Chocado. Era essa a melhor palavra que me definia após ouvir aquilo. De certa forma, após ter visto na mesma noite cadáveres ambulantes, uma garota ser coberta de fogo sem se machucar e um lunático furar os próprios pulsos, achei que não haveria mais nada no mundo todo que pudesse me surpreender... Eis que uma arrogante criança surge e relata ser, na realidade, a personificação de um cristal, até então incrustado em um colar, o qual um homem com olhos vermelhos e asas negras simplesmente acorrentou em meu pescoço. Tudo faz sentido, claro. Uma situação absolutamente normal e corriqueira.


Porém não.


– Enfim, você não perguntou, mas vou lhe dar uma informação bônus por ter ficado calado. Aposto que anseia saber o que é exatamente "aqui dentro", não é? - ela continuou a falar, parecia saber que me faltavam palavras para dizer qualquer coisa. E, coincidência ou não, ela acertara em cheio o que eu perguntaria se me tivesse permitido tempo suficiente para formular e proferir a questão. - Esta sala é... Seu interior, Hope. Todo esse ambiente faz parte unicamente de você, assim como eu, uma partícula de sua alma e, sem querer me gabar, a mais útil. Portanto me agradeça devidamente no futuro quando estiver em apuros e precisar de minha ajuda.


Observei cada canto do recinto, cada centímetro que minha visão podia alcançar e então notei que já estivera ali antes, muitas vezes; aquele pesadelo que eu tanto temia se passava justamente onde eu estava na ocasião. Era como se eu pudesse passear em um sonho, caminhar... Dentro de mim. Porém, diferente de antes, não havia sangue nas paredes, não havia tristeza no ar, não havia qualquer tipo de elemento que me trouxesse desespero; tudo parecia tão vívido, tão renovado. A sala branca gerava um sentimento bom, muito semelhante àquele quando ganhara meu Auratelum. Aquela janela semiaberta... Seria ela a causa disso tudo?


– Sim, é ela. - Minha linha de raciocínio foi interrompida pela voz de Spica que pareceu se divertir com o fato de adivinhar o que se passava em minha mente. Mesmo sem confessar, com aqueles poucos minutos de conversa pude perceber que como uma "partícula" de mim, um de seus privilégios era poder visualizar meus pensamentos.


– Pode por favor parar de ler minha mente? Já sei que é capaz de fazer isso e me sinto desconfortável assim. - disparei rapidamente, quase engasgando enquanto pronunciava as palavras. - Estou acreditando em você, por mais louco que isso possa parecer, todavia não acho que seja muito educado bisbilhotar o que penso. E a propósito, já que esta janela está relacionada com meus pesadelos e esses acontecimentos, eu tenho direito de saber tudo sobre a mesma. Vamos, continue!


– Idiota. Acabei de perder toda minha afeição por você depois dessas desnecessárias palavras. - Ela bufou e cruzou os braços. - Não posso deixar de ler sua mente já que eu faço parte de você, entretanto tentarei me controlar para não ficar irritadinho. E se quer tanto saber, deve tratar-me com educação, entendeu? - finalizou com um tom de desprezo.


– Ah, claro, faltou educação. Então vamos lá. - pigarreei teatralmente. - A estimada Senhorita Spica, partícula da alma deste que fala, poderia fornecer mais informações sobre a esquadria entreaberta que aparenta ter relação com os sonhos ruins e ocorridos fantasiosos envolvendo a mim?


– Sim, contudo não estou com vontade de fazê-lo.


– Muito obrigado pela compreensão, você é um amor de pessoa, adorável. - rebati, irônico.


– Esse é o meu dever, te compreender. - dessa vez Spica sorriu, mas não com desdém ou algo do tipo, e sim com uma enorme satisfação; um ar triste surgiu em sua voz logo em seguida, retirando automaticamente qualquer resquício de felicidade que pudesse tê-la possuído. - É tão estranho... Mesmo para mim, sabia? É estranho estar aqui com você, ainda mais nessa situação.


– Como assim? - indaguei curioso e espantado pela repentina mudança de humor. - É pertinente que esteja se sentindo assim, afinal, pelo que eu entendi você faz parte de mim então naturalmente sente-se... Como eu me sinto, correto?


– Não necessariamente. – disse de modo suave. - Eu sou uma parte de você, mas isso não significa que meus sentimentos sejam os mesmos. Diferente dos Auralveus de outros Lightbringers, eu não estou com você desde seu nascimento; acabamos sendo separados e... Bem, eu demoraria muito tempo explicando tudo, e agora há outros assuntos mais importantes. Apenas entenda que eu tenho minha própria personalidade, minhas próprias recordações e meus próprios sentimentos. Você não é o primeiro fragmento de Alma Zero que conheço, e com certeza não será o último. Porém, já posso afirmar que é um dos mais interessantes e complexos entre todos os quais pude conviver. A maioria deles simplesmente me usou, trataram-me como um instrumento descartável, mas você é diferente, sinto isso. É ingênuo e especial... É tão humano.


Sua declaração foi definitivamente uma surpresa; não esperava que a conversa tomasse um rumo tão emocional. Cada frase de Spica soava com uma intensa melancolia, como se uma amarga dor relacionada a seu passado viesse lhe assombrar. Senti como se devesse trazer fim ao seu sofrimento; estava disposto a ajudá-la de qualquer maneira, não como um fardo, mas sim como uma ação altruísta, da mesma forma que prometi ao meu irmão.


Confesso também que a tentação de enfim entender o que seria essa tão famosa "Alma Zero" crescia em mim, mas como Zelpher havia dito que explicaria em outra ocasião, achei melhor não tocar em tal assunto.


– Obrigado por suas palavras sinceras. - o agradecimento soou tímido.


– Sei que nos conhecemos há pouco, mas acredito que somos semelhantes nesse aspecto, além da aparência, claro. Você também é especial, nunca vi uma garotinha tão detestavelmente doce. - com essa última frase, consegui retirar um sorriso de seus tristes lábios, o qual retribui calorosamente com outro. - Eu não vou te descartar e muito menos te tratar como um objeto. A partir de hoje somos amigos! De acordo?


– Amigos?! - Spica observava-me com espanto; riu para si mesma e então, com um tom lúdico, continuou. - Nunca me disseram isso antes. Nunca nenhum fragmento de Alma Zero me propôs amizade. Nunca aceitaram sentar na cadeira menor sem antes discutirem, indignados, ou alegando que a maior seria a ideal. Nunca foram simpáticos dessa forma e muito menos esboçaram o mínimo de preocupação com terceiros. Afinal, porque você é tão diferente das outros, Hope Nightingale? Não estou habituada com gentileza e agradecimentos. Minhas ações sempre foram unicamente destinadas a servir como degraus, alicerces que pudessem trazer poder e soberania aos outros; vivi sempre em uma rotina monocromática onde meus sentimentos não passavam de conceitos inúteis.


Rotina monocromática... Era uma metáfora que definia com perfeição aquilo no qual provavelmente havia se tornado a vida de Spica. Quando minha mãe falecera, o mundo todo sucumbiu a um abismo sem fim, restando apenas um apático e doentil cinza no que me era possível observar. Bem, pra falar a verdade, acredito que até algumas horas atrás, eu ainda não havia recuperado todas as cores. Esquisito, não é? Agora eu tinha uma razão pra viver, um juramento a cumprir, uma responsabilidade; fui presenteado como uma inacreditável e inimaginável nova vida.


É até engraçado enxergar as coisas dessa forma obscura, e ao mesmo tempo, tão clara. Clara como a luz que o encontro com os Lightbringers haviam trazido para minha vida; uma luz tão forte e tão intensa, capaz de iluminar algo mais escuro que as sombras da mais escura noite, algo capaz de salvar alguém como eu, que já não acreditava mais em si mesmo.


– Não se preocupe mais com isso, Spica. Como amigos, ajudaremos um ao outro a superar essas recordações tristes e em breve só teremos que nos preocupar com o futuro próspero! O passado ficou para trás, e mesmo que não possamos mudá-lo... Podemos fazer com que o amanhã seja melhor! Combinado? Vamos colorir essa rotina monocromática, juntos.


A garotinha ficou em silêncio por alguns segundos e em seguida levantou a cabeça, até então baixa, com vivacidade.


– Sim, combinado! – gaguejou um pouco - Essa personalidade rígida não passa de uma máscara e, mesmo assim, você parece enxergar através dela, Hope. Entender a personalidade de alguém com certeza é algo muito mais prazeroso e memorável do que leitura de almas. Obrigado pelas palavras... Meu amigo.


Uma fofura bizarra e mecânica havia a tomado de forma tal hilária que não pude conter o riso. Como esperado, não houve qualquer tipo de repreensão ou palavras rudes, e sim uma crescente gargalhada conjunta.


– Bom, voltando ao assunto... Você disse que estamos dentro de mim e que essa janela - apontei com o dedo indicador. - Está relacionada com esses acontecimentos peculiares em minha vida. Pode por favor, me explicar mais sobre eles, ou aquele papo de apenas três perguntas era sério?


– Pra falar a verdade, posso sim, estava apenas tentando te intimidar. Desculpe. - sorriu com o canto da boca, parecia levemente sem graça. - Quando li sua mente, percebi que pensava em algo relacionado a um pesadelo terrível e, de fato, ele se passa aqui, assim como todos seus outros sonhos.


– Tem certeza disso? - perguntei sem qualquer hesitação; Spica estava claramente disposta a esclarecer todas as informações ainda desconhecidas. - Já tive outros sonhos, poucos, porém com certeza eles não se passaram aqui dentro dessa sala.


– Errado! - sibilou de forma descontraída. - Isso aqui não é uma sala, é o seu interior! Logo, não há uma forma fixa para ela, embora essa "sala branca" seja uma espécie de localização neutra. Sonhos e pesadelos refletem diretamente elementos do seu dia-a-dia, como eventos marcantes e pessoas conhecidas, desta forma, sua imaginação entra em jogo e molda o ambiente como bem entender. Vamos tentar fazer isso da forma prática: fique de pé, feche os olhos e pense em alguma cena que marcou sua vida. Imagine os detalhes, os sons, os odores e tudo que puder se lembrar dela.


Me levantei, cerrei minhas pálpebras e busquei uma recordação importante entre o mar de memórias que possuía. Certifiquei-me de não imaginar algo ruim, e dentre tantas cenas vividas, escolhi uma que sempre me fazia sorrir e lembrar como era prazerosa a época onde eu ainda possuia uma família completa ao meu lado.


– Pronto Hope, abra os olhos!


Um holofote apontava em nossa direção, iluminando cada pedaço de meu corpo e tornando-o pálido como o luar; estávamos em um amplo palco decorado com pequenas árvores artificiais e uma platéia silênciosa mantinha os olhos penetrantes em nossa direção. Havia ali também, sentados numa grande mesa repleta de xícaras de porcelana e bules, duas crianças: um menino, o qual vestia um chapéu gigante e roupas de gala, e uma menina loura com um belo vestido azul e meias listradas.


Passeei com o olhar sobre o público e logo avistei o que meu subconsciente procurava: minha mãe, meu pai e meu irmão, ainda um bebê, assistiam atentamente a peça "Alice no País das Maravilhas", a qual eu participara em minha infância.


Aquela visão nostálgica trazia-me uma agridoce felicidade, mas estar na cena no passado e simplesmente me recordar dela agora eram coisas totalmente diferentes. Naquele instante, não havia vida de verdade por perto; tudo não passava de uma grande e imóvel fotografia em três dimensões. Por mais que me esforçasse, não conseguirai lembrar de detalhes suficientes para compor uma lembrança mais realista com vozes ou movimentos.


Desejei correr na direção de minha família e abraçá-los embora soubesse que aquilo não passava de uma ilusão. E além do mais, exceto Spica, não havia como interagir com qualquer outro que ali estivesse. Sequei meus olhos lacrimejantes com a manga do pijama e desviei o olhar do público, voltando-me para a garota com cabelos prateados; ela contemplava os personagens com exaltação.


– O que é isso? - indagou confusa. - Acredito que essa criança usando o chapéu seja você, já que possui características físicas e feições exatamente iguais as suas, mas por que diabos está servindo chá para essa garota enquanto dezenas de pessoas assistem? Não faz muito sentido...


– Sim, sou eu. - afirmei num tom contente. - E isso é uma peça teatral. Quando eu era criança, minha escola apresentou-a em um festival no fim do ano. Ele, ou melhor, eu interpretei o "Chapeleiro Maluco", e a garota é "Alice", interpretada por... - minha voz parou de imediato; até então havia esquecido, mas o diálogo com Spica fizera-me lembrar que aquela era Nina. Eu a conhecia realmente há muito, muito tempo, mas achei melhor não mencionar que era minha namorada; como comentara antes, terminaria essa suposta relação o quanto antes. - Uma colega.


– Parece muito divertido! - ela exclamou - Mas acho que esse personagem não combinou muito você. Creio que não fabrique chapéis e muito menos que seja maluco. - ela sorriu, fitou Nina por algum tempo e caminhou até mim. - Sobre a garota... Não adianta tentar esconder: sei que ela é não é uma simples "colega". Com absoluta certeza é bem mais que isso.



– Você tinha dito que não iria mais ler minha mente! - bradei com um misto de indignação e espanto.


– Eu não precisei analisar seus pensamentos pra descobrir isso, Hope. Você parou de falar subitamente e então seu tom de voz mudou, acredito que isso indique, no mínimo, omissão. - senti minhas bochechas arderem; eu realmente era péssimo em disfarçar emoções ou tentar esconder fatos. - De qualquer forma, eu ainda tenho coisas indispensáveis a lhe explicar. Vamos voltar para o local anterior.


Contemplei uma última vez as expressões orgulhosas no rosto de minha família e percebi que os pais de NIna e Felícia (sua irmã mais nova, na época com aproximadamente a mesma idade que Luke) estavam ali também; diferente do esperado, possuíam uma face tristonha e vazia, destacando-se entre todas aquelas pessoas felizes. Definitivamente intrigante.


Fechei os olhos e, como anteriormente, pus-me a imaginar o local em que desejaria estar; num passe de mágica, assim que abri as pálpebras, já nos encontrávamos de volta na sala branca. Dessa vez, Spica acomodou-se na cadeira menor, perfeitamente proporcional ao seu tamanho. Apressei-me a sentar na outra e então encarei fixamente seus olhos infantis, emoldurados pela graciosa franja reta e simétrica.


– Há muita coisa que ainda não conhece e você deve assimilar tudo com calma pois cada detalhe do que eu lhe disser é muito importante; seria negligência de minha parte apressar-me em contar tantas coisas em um só dia. – proferiu uma pressuposta inflexibilidade.


– Não se preocupe, eu entendo. – declarei serenamente. - Zelpher, o Lightbringer que me entregou "você", prometeu esclarecer e responder parte de minhas dúvidas, em especial as relacionados à Alma Zero. Primeiro desejo entender o que se passa aqui, agora, dentro de mim.


– Ótimo! - Spica estralou os dedos e continuou. - Se bem me recordo... Falávamos sobre a janela, certo?


– Exato! E eu quero saber tudo relacionado a ela. Tudo. - confirmei, exaltando a última palavra.


– Hora de ouvir bastante, prepare-se. - disse com sua voz excêntrica e séria, a qual eu já me habituara. - Quando fui entregue a você, percebi que havia algo muito errado com sua alma: ela estava, literalmente, fechada e repleta de tristeza. Por um momento, achei que não teria como reverter esta situação, mas decidi que tentaria ao menos amenizá-la; com meu poder, construí essa janela espiritual para que pudesse iluminar seu interior e trazer-lhe novamente esperança, determinação e liberdade, no caso, representada pela natureza que vê do lado de fora dessa sala.
Incrível! Aos poucos, as peças do enigmático quebra-cabeça agrupavam-se; como eu dissera quando ganhara o colar, sentimentos bons tomaram meu corpo repentinamente e aquilo era como "uma janela se abrisse em minha alma". Sei que a metáfora usada no momento era apenas um modo de retratar uma sensação por meio de palavras, todavia descobrir que era literalmente o que havia ocorrido deixou-me estupefato; não só surpreso, mas também nervoso. E assustado. E animado.


– Spica, você é demais! - apressei-me em agradecê-la, afinal, foi ela quem causara tamanha revolução benéfica dentro de mim. Também cheguei a conclusão de que a promessa feita a Luke apenas se realizara graças ao renascimento dessa "liberdade emocional".


– Apenas realizei meu trabalho como Auralveus. Não precisa agradecer.


– Tanto faz! Você fez muito por mim, muito mesmo. Não sei como poderei te retribuir...


– Você não precisa fazer nada por mim, idiota! Suas palavras sinceras e reconfortantes ditas anteriormente já foram mais do que suficiente. - sibilou. - Agora vamos continuar com os esclarecimentos.


– Já que você diz, tudo bem. Sinto-me lisonjeado com suas palavras, mas antes... - voltei a pensar rapidamente nos acontecimentos daquela noite, recordei algo que me afligia e apressei-me a comentar sobre. - Eu também senti algumas dores estranhas após te receber. E tive um pesadelo recorrente, o qual eu me referia antes quando leu minha mente, porém dessa vez eu o observava de outro “ângulo” e nele a janela estava fechada. Não deveria estar aberta?


– Isso era exatamente o que eu ia explicar! - Spica exclamou com espanto. - Como eu dissera, o que eu fiz serviu para trazer luz a sua alma. Essa iluminação é de certa forma o que conecta os dois mundos, ou seja, uma fase primitiva de sua Aura. Não adiantaria executar isso de uma vez só, pois sua alma correria grandes riscos e poderia até mesmo ser danificada de forma irreparável. - engoli seco assim que ouvi essa expressão. - Então decidi que o ideal seria fazê-lo em sete etapas: primeiramente, logo quando instalei a janela, abri uma pequena fresta. Isso lhe tornou capaz de escutar e sentir odores presentes do Mundo Espiritual.


Automaticamente, assimilei aquilo com os passos que escutara e com o perfume de Lunette que eu fora capaz de sentir no caminho de volta para casa.


– A segunda etapa foi semelhante a anterior: abri um pouco mais da janela e deixei com que a "pré-Aura" se difundisse em seu interior, mas para não lhe sobrecarregar, fechei-a pouco tempo depois. Como impedi que o fluxo continuasse, seu corpo provavelmente reagiu com estímulos nervosos devido ao "impacto" sofrido, ou seja, fez com que seu cérebro trabalhasse mais rápido do que o habitual, trazendo a tona recordações, e logo após, dor em sua cabeça. Acertei?


– Está... Completamente correta. - Naquele ponto do diálogo, cada palavra de Spica se encaixava perfeitamente no que acontecera horas atrás. Era surreal e, ao mesmo tempo, algo muito... Natural. - E dessa vez, o que me tornei capaz de fazer?


– Esta ação lhe deu a habilidade de enxergar habitantes do Mundo Espiritual. Porém, como eles fazem parte de outra realidade, pode vê-los no Mundo Material apenas através de um vetor, como por exemplo...


– Um espelho. – completei. - Vi um vulto com forma humana em meu banheiro e ele não parecia pertencer ao Mundo Material.


– Confesso que estou surpresa, você está entendendo tudo perfeitamente! E antes que fique preocupado, mesmo que esse vulto seja um Phantom ou um Darkstalker, o alvo da noite é você, sua família está completamente salva por enquanto. Isso eu posso lhe garantir.


Um calafrio de pânico atravessou meu corpo; até quando duraria aquele "por enquanto"? A última coisa que eu desejaria é que meu pai e Luke tivessem qualquer tipo de contato com aqueles seres perigosos. Entretanto, não adiantaria pedir ajuda ou mais informações para Spica nesse caso; os únicos que poderiam evitar e proteger meus familiares de ocorrências futuras são os Lightbringers, incluindo a mim.


– Eu farei de tudo para que meus parentes nunca tenham de se envolver com essa minha nova vida. - disparei num tom rouco. Spica mordeu o lábio e fez um sinal positivo com a cabeça. Decidi retomar o assunto. - Pois bem, depois disso você reabriu a janela, certo?


– Sim. - confirmou. - E com este terceiro ato, a abri a apenas até a metade como pode perceber. Dessa forma, você se tornou capaz de atravessar do Mundo Material para o outro mundo, ou vice-versa. Sua Aura tornou-se completa, isso significa que a partir deste momento seu corpo é metade humano e metade Lightbringer, mesmo que ainda não possa utilizar Cânticos ou ativar seu Auratelum.


– Entendo... - fiquei em silêncio por alguns segundos, reproduzindo mentalmente cada frase dita para fixá-las em minha memória. - Quanto a essa história de atravessar de um mundo ao outro... Eu tenho certeza que não fiz isso por conta própria: um Darkstalker me puxou para fora do quarto e assim eu acabei sendo transportado para o Mundo Material. Lunette me explicara algo sobre transição, mas não entendi exatamente o que significa isso.


– Como eu disse, você é um híbrido de humano e Lightbringer, assim, faz parte de ambos os mundos; a partir de agora, seu fluxo de Aura é ininterrupto, ou seja, não poderei nunca mais impedi-lo através da janela. Como ainda estava em um período de transição, ou seja, momento onde seu corpo procurava se adaptar a essa nova característica, o Darkstalker foi capaz de trazê-lo ao Mundo Espiritual. Provavelmente esperavam por este momento específico para atacá-lo.


A breve introdução que Lune fizera quando estávamos na Metropolis abandonada havia enfim sido completada; tenho convicção de que, caso Ion não tivesse nos atacado, ela teria finalizado com prazer o que começara a esclarecer-me.


– Acho que por enquanto, isso é o suficiente. - declarei. - Muitas de minhas interrogações foram solucionadas e agora que tenho plena consciência desses acontecimentos, acredito que por enquanto só me resta saber como saio daqui. Afinal, passei quase uma hora conversando com você e preciso saber como estão os outros...


– Não! Não precisa se apressar! - a garota bradou com uma voz fina que mais parecia um miado de gato. Seu rosto corou, sua face moveu-se em direção a mesa e ficou estática. - Quer dizer... Uma hora aqui equivale apenas a um minuto no tempo real. E essa iluminação toda é apenas sua Aura, ainda não amanheceu "fora" de você; assim que sair, tudo continuará exatamente aonde parou, quando foi atingido por aquele monstro.


– Sério? Pode não parecer, porém isso é muito bom! - realmente uma ótima notícia, já que a única coisa que me preocupava era a segurança dos outros Lightbringers perante a situação em que estávamos; agora, eu tinha absoluta certeza de que em um singelo minuto que se passou, seres poderosos e habilidosos como Zel, Fay e Lune ainda estariam são e salvos. - Fico aliviado ao saber disso e, infelizmente, é inevitável... Eu tenho que ir embora logo. Preciso ajudá-los!


– Hope, você não entende? Eles vão te proteger a qualquer custo! É melhor que permaneça aqui mesmo que não saiba o que está havendo! Caso saia daqui agora... Poderemos nos reencontrar só daqui uma semana; utilizei grande quantidade de Aura para lhe trazer até aqui, entretanto, agora que está dentro, pode ficar o quanto tempo quiser. Em contrapartida, se deixar o seu interior, só poderá voltar após um período de 7 dias, tempo necessário para recarregar o meu poder.


– Spica, eu realmente não posso ficar aqui parado sem fazer nada. - minhas mãos suavam devido ao fato de apenas pensar na possibilidade proposta. De forma alguma eu conseguiria ficar ali sem ter conhecimento do que ocorria no mundo real. - Que dignidade eu teria se os deixassem assumir todo o perigo? Posso conhecê-los há pouco tempo, mas assim como lhe considero, eles são meus amigos. Mesmo que demore uma semana, prometo que te visitarei assim que possível; basta me trazer até aqui novamente.


– Você definitivamente tem a cabeça nas nuvens... Isso é perigoso demais, estou alertando! Por outro lado, eu não queria voltar para aquele lugar cheio de sangue, destruição, com a Bloody Mary por perto... Não valeria a pena ressurgir assim, de repente, sem possuir qualquer tipo de artifício para ajudá-los.
Eis que tive uma idéia.


– Cabeça nas nuvens... É isso! - disparei interrompendo os resmungos de Spica. Talvez tenha sido a mais genial de todas as que obtive em minha pacata existência, porém, de qualquer forma, era uma completa loucura; nuvens ficavam no céu, aonde poderíamos ter uma vantagem sobre Bloody Mary, e para chegar ao céu eu precisava de... - Asas! Senti uma dor forte nas costas pouco antes de ser trazido ao Mundo Espiritual, como se punhais a cortassem de dentro para fora e abrindo espaço para... Asas!

A dona dos cabelos prateados fitava-me com uma expressão mista de surpresa e censura; levantou-se da mesa e veio até mim, repousando a mão sobre meu ombro esquerdo.


– Hope, parece até mesmo que você também pode ler minha mente. Idiota. - disse com rispidez. - Está certo sobre a questão das asas: elas são o que você ganhará caso eu abra um pouco mais a janela, realizando a quarta etapa. Por achar que seria arriscado para seu corpo que se manifestassem completamente antes de conhecer outros Lightbringers e por não ter a mínima ideia de quando conheceria algum deles, certifiquei-me de iniciar o processo um pouco antes. Em outras palavras, você já tem asas, elas apenas não cresceram e são pequenas demais para serem vistas.


– Pois então as faça crescer! - rebati, animado. - Tenho um ótimo plano para destruir aquela criatura, quase certeza que será funcional! Spica, eu lhe imploro, faça isso... Não há motivos para tanta preocupação, eles vão me proteger a qualquer custo como disse, correto?


– Só de ouvir "quase certeza" já me sinto ainda mais aflita! E sim, eu disse que estará seguro, porém apenas caso esteja parado e inconsciente como uma pedra; sabe-se lá o que pode acontecer com você perambulando no meio de uma batalha. Imagine então voando! Óh, céus...


– Confie em mim, por favor. Não quero ser mais um fardo, um problema... Quero resolvê-los! Como um Lightbringer, devo ajudar meus semelhantes. Devo proteger meu mundo.


Spica, com uma expressão apática, virou-se; após um silêncio frustrante, voltou a falar.


– Tudo bem. Vou fazer o que pede dessa vez, porém, não morra; o mundo há de precisar, e muito, de você. É só isso que lhe peço. - Senti um enorme sorriso surgir em meu rosto, acompanhado de um frio na barriga carregado de adrenalina e excitação. Eu iria ganhar asas nos próximos minutos e seria capaz de voar! Livre como um pássaro! Era evidente que eu não estava delirando, entretanto, parecia que um doce sonho, infinito, havia se tornado minha vida. - Levante-se e dirija-se até o meio da sala.


Imediatamente e com rápidos passos, fui até o centro do ambiente. Mantive-me a observar a bela paisagem e depois Spica; ela afastou a mesa e as cadeiras, segurou com firmeza as duas placas de madeira que compunham a janela e respirou fundo.


– Está preparado? - parecia ainda incerta sobre a decisão tomada com aquilo.


– Sim. - assenti confiante. - Obrigado por tudo, Spica. Você me ensinou muitas coisas e parece se preocupar comigo. Tenha certeza de que nossa amizade, mesmo repentina, é muito importante pra mim! Daqui uma semana, me traga até aqui assim que possível, ok?


– Sr. Nightingale você é definitivamente... Um bobalhão.


Minha visão ficou embaçada e vi a imagem da garotinha se escurecer, até tornar-se impossível istinguir sua silhueta do restante dos borrões. Depois disso, não consegui lembrar-me de nada com clareza, exceto o fato de sentir minha Aura se expandido e iluminando ainda mais meu interior.


A brisa estava ainda mais fria do que antes e barulhentos sons de pancadas ressonavam com grande amplitude. Aos poucos recobrei minha consciência, podendo sentir as quentes mãos de Lune pousadas sobre mim enquanto murmurava "Redintegratio". Então, meu corpo estagnou, esfriou, formigou e se retorceu violentamente, fazendo com que a garota se afastasse.

Os cortes espirituais em minhas costas, dessa vez ainda mais dolorosos, não me permitiam escutar as palavras que a Lightbringer proferia. Tive algumas vertigens, levantei-me cambaleante, porém logo caí; permaneci por longos segundos ofegando com as palmas das mãos esparramadas no úmido chão. Num único e direto impulso, grandes asas surgiram em minhas costas, claras como a neve e tão grandes quanto às de Zelpher.

Um grito brando e rasgado deixou minha garganta, mas num piscar de olhos a dor já havia evaporado, me capacitando sentir aqueles dois conjuntos de plumas tornarem-se parte de meu corpo tão harmonicamente quanto um braço ou uma perna.

– Suas asas cresceram! - Lunette sibilava com a voz abafada, ambas suas mãos encontravam-se próximas a boca indicando espanto. - Mal posso acreditar... Não pensei que isso fosse acontecer hoje! E elas são lindas! Grandes, brancas, brilhantes... São perfeitas!

Embora estivesse contente, aquele não era o momento ideal para congratulações e eu só conseguia pensar na maneira mais adequada de colocar meu plano em prática; não restava um pingo de medo em mim, pelo contrário: uma forte e renovada valentia havia se disseminado por todo o meu eu.

A minha direita, Zel e Fay, claramente fatigados, rasgavam o céu em ziguezague, ora tentando atacar a colossal criatura, ora desviando de seus poderosos golpes.

– Lune, eu vou ajudar os outros. - os olhos da Lightbringer saltaram, porém era óbvio que não conseguiriam derrotar Bloody Mary sozinhos. Eu não tinha outra escolha senão auxiliá-los. - Não se preocupe comigo, estou bem e não sinto mais dor. Descanse um pouco, você merece.

A garota ameaçou dizer algo, mas permaneceu quieta; movimentou a cabeça concordando com o que eu dissera e então se afastou alguns metros.

Agora, chegara o momento crucial: saltei e movimentei minhas asas o mais rápido que pude; aos poucos, meu corpo ascendeu, ficando cada vez mais distante do chão. A sensação ao voar era realmente única e incrível. A princípio, julguei aquele ato complicado, mas logo percebi que era tão fácil quanto bater palmas; eu precisava apenas manter o ritmo certo, nem muito acelerado, nem muito devagar.

– Eu vou destruir o corpo principal, me deem cobertura! – exclamei para os outros Lightbringers da forma mais vigorosa realizável. Zelpher, que girava no ar, fitou-me por um breve segundo, deixando escapar um baixo e incompleto "Não faça isso". Em contrapartida, Fay sorriu malicioso, parecendo concordar com o que eu dizia. - Abram o caminho para mim. Um, dois, três... Agora!

Os dois Lightbringers agarraram-se ferozmente aos "braços" de Bloody Mary, deixando-a imóvel por um breve período de tempo; era o momento ideal para destruí-la. Investi com avidez, primeiro em grande altitude e depois rasante, preciso. Meus cabelos esvoaçavam, era quase impossível manter os olhos abertos, contudo mantive meu punho direito firme e adiante ao corpo. Aproximei-me mais e mais, pude até mesmo ouvir as batidas de meu aflito coração e então, sem hesitar, choquei todo meu corpo diretamente contra a cabeça do monstro como uma flecha, arrancando-a de forma brutal.

Originada devido ao decepamento, uma chuva de sangue frio começara a cair, manchando ainda mais aquele território destruído. Bloody Mary enfim foi derrubada, ocasionando um grande estrondo com sua queda.

Aterrissei, e assim que senti a firmeza do solo minhas pernas cambalearam, as asas recolheram-se e um extremo cansaço manifestou-se, fazendo que eu desabasse sobre o chão. Ainda consegui me manter acordado tempo suficiente para perceber que uma frágil menina loura corria assustada ao longe, reunindo-se com Velvetia e mais duas figuras humanas, as quais não fui capaz de identificar pois logo todas desapareceram envoltas a sombras. Tentei alertar o que via aos Lightbringers que se aglomeravam rapidamente em minha volta, mas não tive força suficiente para falar algo. Observei Lunette sorrir aliviada, Fay levantar os óculos e os brilhantes olhos escarlates de Zelpher aproximarem-se.

– Confesso que no início achei que você seria fraco e covarde, mas eu estava errado; obrigado pela ajuda, você foi ótimo hoje, Hope. Os Darkstalkers se foram por enquanto, relaxe tranquilamente e lembre-se: o que acontece no Mundo Espiritual não deve ser do conhecimento de humanos comuns. Até amanhã... e boa noite, meu caro fragmento de Alma Zero.

Sorri graças aos elogios do Homem das Vestes Negras, cerrei minhas pálpebras e tudo se tornou escuro, silencioso e disforme. Dessa vez, não me preocupei; tinha plena consciência de que tudo ficaria bem. Não havia mais residentes do Inferno por perto, pessoas que se importavam comigo estavam ao meu lado, a terrífica noite terminara de uma vez por todas e eu, Hope Nightingale, continuava vivo, ansioso para voltar o quanto antes àquela assustadoramente fascinante realidade.

O oitavo aniversário de morte de minha mãe, um dia que me atormentara durante anos, fora também o marco do início de minha nova vida; o início de minha história como Lightbringer.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Pequeno Glossário:
Lightbringer: "Trazedor de Luz", em inglês. São aqueles que residem no Céu.
Darkstalker: "Seguidor da Escuridão", em inglês. São aqueles que residem no Inferno e que suportaram a dor e sofrimento proporcionado por este.
Classes: Nomenclaturas usadas para determinar o tipo de talento que um Lightbringer ou um Darkstalker possui. Até o momento, as classes conhecidas são:
- Lightbringers: nenhuma no momento.
- Darkstalkers: Puppeteers (Podem compartilhar seu sangue com Phantoms e assim controlá-los. Ex: Ion.)
Phantoms: Semelhantes a zumbis, são almas que residem no Inferno e cujo o único objetivo é se alimentar de energia vital. São chamadas de Marionettes caso um Puppeteer compartilhe seu sangue.
Alma Zero: ~em breve será explicado~
Aura: A força espiritual que Lightbringers e Darkstalkers possuem.
Auratelum: É um objeto que possui a capacidade de se transformar em uma arma; utilizado pelos Lightbringers.
Auralveus: É uma espécie de guardião que controla a Aura do Lightbringer. Geralmente apresenta-se junto com o Auratelum em forma de Crystalite (cristal), mas pode assumir forma de Personalite (humana) quando estiver no interior de seu dono.
Cântico: Palavras que servem como um encantamento, uma magia, e podem realizar vários atos, desde curar pessoas feridas até mesmo criar objetos ou elementos da natureza.
Redintegratio: "Restauração", em latim.
Alice no País das Maravilhas: é um livro escrito por Lewis Caroll, publicado em 1865.
Mademoiselle: "senhorita", em francês.
*O nome de Spica pronuncia-se como "Spaica"
E aí, gostaram? Deixem reviews por favor ♥ E me avisem caso algum termo importante esteja faltando no glossário ~
Gostei muito, muito mesmo de escrever esse capítulo; ele não tem tanta ação quanto os interiores, mas possui muitos momentos tão interessantes quanto batalhas. Espero que o grande número de diálogos não tenha dificultado a compreensão.
No próximo capítulo, o qual ainda não sei o nome: a primeira verdadeira aparição de Nina e o dia-a-dia de Hope no Mundo Material.
Até lá, cuidem-se ♥



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Heavenly Oblivion I -The Fate-" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.