O Vento E A Chama escrita por Jewel


Capítulo 16
BACK TO REALITY


Notas iniciais do capítulo

Parte II: O Vento



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Acordei sobressaltada e olhei o relógio em minha cabeceira. Cinco e quarenta da manhã. Fechei os olhos para voltar a dormir, afinal, era sábado.

O sonho voltou de onde tinha parado, pela primeira vez na minha vida... Talvez porque aquele sonho me fosse bem conhecido.

Eu estava dentro de um metrô, tomando chá com um senhor oriental. As imagens voavam pela janela, uma infinidade de tendas brancas, mas eu não conseguia ver nada que houvesse nelas. Então vinha um rapaz de cabelos compridos e me entregava uma vela. Essa parte sempre variava. Às vezes era um rapaz, as vezes era uma moça, as vezes era o próprio senhor com quem eu tomava chá... E, invariavelmente, quando a vela chegava a minhas mãos, a porta do
metrô se abria, e eu ficava ouvindo gritos da pessoa que me entregara a vela. Eu pulava do metrô em movimento e acordava.

Respirei com dificuldade. Olhei no relógio novamente. Oito e meia.

– Hora de levantar. – disse a mim mesma, uma mania que não tinha perdido, ainda não acostumada a estar sem meu cachorro a meus pés.

Troquei de roupas e saí para correr. Aquilo me fazia muito bem, não só pelo esporte mas também pelos cumprimentos das pessoas conhecidas de meu bairro.

Cerca de quarenta minutos depois, voltei para casa. Depois de tomar um banho e me trocar, fiz uma lista dos afazeres do dia.

Sábado:

– Ir ao supermercado.

– Passar para ver o Fred.

– Cuidar da horta.

– Ligar para o Sidney – aniversário dele.


Comecei pela horta. Ao voltar de Chicago decidi colocar aquele projeto em prática. Não era fácil manter minha pequena horta de especiarias em meu apartamento, então eu estava me esforçando. Já perdera algumas mudas, o manjericão realmente me deu trabalho, mas agora eu olhava, orgulhosa. Cortei algumas folhas, coloquei adubo e reguei cuidadosamente.

Liguei para o Sidney. Ele ficou muito feliz de receber minha ligação, quase como se não tivéssemos nos visto no dia anterior quando ele buscara Paula no trabalho. Dei-lhe os parabéns e conversamos um pouco. Ele me convidou para uma ‘pequena festa’ que ele daria aquela noite – como se eu não soubesse... eu tinha ajudado Paula a planejá-la. Disse-lhe que passaria lá e desliguei, sorrindo.

Sidney era meu amigo de infância. Eu tinha muita sorte por ele ter se casado com minha melhor amiga da faculdade, Paula. Éramos como uma família. Eu só não saberia dizer de quem eu podia ser considerada irmã e de quem eu era cunhada.

Fiz a lista de compras e saí. Adoro olhar ao redor quando estou dirigindo. Faz-me sentir a Mahatma Gandhi daqui. Todos os motoristas,
estressados com a lentidão, com os outros motoristas, com os motoboys... com tudo. E eu dando de ombros para tudo isso, afinal, em minha opinião, era o preço a se pagar por morar naquela cidade e não ser politicamente ativo a ponto de obrigar os políticos a fazerem o que devem.

Andei pelo supermercado, pegando os itens de minha lista, observando as propagandas de algumas marcas – algumas que eu bolara e muitas que eu gostaria de ter bolado.

Segui para a casa de minha mãe. Mal cheguei, Fred já veio correndo para meu colo, me enchendo com seus ‘beijos’. Eu apertava-o, parando apenas antes que seus olhos soltassem pelas órbitas. Ele lambia meu pescoço me fazendo rir. Pouco tempo depois, Luna também veio me receber, acompanhada de minha mãe.

– Oi mãe! – sorri.

– Oi Ju! – ela veio me abraçar. – Você já almoçou?

– Ainda não. – disse, brincando distraidamente com Fred.

– Eu fiz lasanha. Já vou tirar do forno.

– Que beleza! – aquela palavra sempre me animava.

Entrei seguida dos dois cachorros. Sentei na sala e fiquei vendo o jornal do meio-dia. As notícias eram sempre as mesmas, com exceção de
alguns anúncios culturais.

– Vem enquanto está quente! – gritou minha mãe, da cozinha.

Mais que depressa me dirigi até lá. Almocei, ouvindo minha mãe falar sobre alguns parentes e sobre os novos vizinhos. Ri com algumas
histórias de Fred e Luna. E contei-lhe um pouco sobre minha semana. Ajudei-a com as louças e fiquei brincando com Fred enquanto ela via TV.

Levantei-me para ir e ela me levou até o portão.

– Olha como ele fica triste quando você vai, Ju. – disse ela.

Eu olhei para Fred e o vi sentado, a cabeça realmente um pouco caída, numa expressão humanamente triste. Fui até ele e o peguei no colo.

– Você quer vir comigo? Quer? – perguntei a ele, que começou a me lamber.

– Ele sente sua falta.

– É. Mas se eu levo, ele fica lá, sentindo falta da Luna. – suspirei.

– Eles são apaixonados. – brincou minha mãe.

– É. Um yorkshire e uma labradora. – ri. – O amor é cego mesmo.

– Foi enquanto você estava lá em Chicago. Um mês é bastante tempo.

– É. – disse, dando de ombros. – Talvez seja para um cão.

Despedi-me de minha mãe e fui para casa.

Entrei na internet e vi um novo e-mail de Jane.

Oi Ju! Como está tudo? Espero que bem! Nossa... já faz quatro meses que você foi embora! Parece que foi ontem que eu estava aqui chorando na escada... e de certo modo, foi mesmo: Lucia foi embora ontem. Foi triste ver ela e o Robert se despedirem, ainda mais agora que eles estavam ficando – te contei isso, né? Fazia uns dois meses. Vê-los se despedir me lembrou de você e MinSuk. E aí, querida? Como está essa questão? Já conseguiu responder aos e-mails dele? De resto tudo normal, a mesma correria de sempre. Sinto bastante sua falta. Beijos, Jane.

Suspirei fundo uma vez. Por vários motivos. Sentindo saudade dela. Triste por Lucia e Robert. E pela simples menção do nome de MinSuk.

Comecei a responder.

Oi Jane! Por aqui tudo caminhando tranquilamente. Fico feliz que por aí esteja tudo bem também. Deve ter sido triste mesmo ver Lucia ir embora – ela ficou aí quase um ano, apaixonada por Robert, até ele perceber! lol Mas ainda bem que pelo menos eles puderam ficar um pouco juntos. Quem sabe eles não decidem ficar juntos de alguma maneira? Seria legal.

Nenhuma novidade desde aquele dia em que conversamos. Eu não respondi nenhum dos e-mails de MinSuk... Não consegui... Acho que agora ele já deve ter desistido, não recebo um novo e-mail faz um mês. Também, o que eu diria depois de tanto tempo em silêncio? Melhor deixar como está.

Muita saudade de você, também! Vamos marcar qualquer dia para conversarmos pelo Skype de novo. Manda um beijo para Mayreen. Beijos!”.

Cliquei em enviar e suspirei de novo.

Olhei a pasta ‘MinSuk’ em meu e-mail. Hesitei, indecisa. Então abri a pasta e comecei a reler os e-mails, na ordem em que ele os enviou.


Um dia após minha partida.

Oi Ju! Tudo bem? Recebi seu e-mail avisando que chegou bem. Como estava sua casa? Muita poeira? E seu cachorro? Ele devia estar com muita saudade.

Espero que o trabalho não tenha sido muito difícil. Muitas novidades?

Já estou com saudades. Um beijo, MinSuk.”


Sorri me lembrando do dia em que cheguei. Minha casa estava do mesmo jeito que eu deixara, mas com um cheiro forte de coisa guardada. Numa espécie de ‘neura’, fiquei limpando a casa até de madrugada, só então lembrando-me de avisar que tinha chegado bem. Tinha escrito apenas algumas linhas e copiei todas as meninas e MinSuk. Sim, eu tinha pegado meu cachorro, e fiquei duas semanas observando sua tristeza até me dar conta de que ele tinha se apegado a Luna de tal maneira que achei melhor deixá-los juntos. “Já basta um sofrendo.”, lembrei-me de ter pensado na época. Meu trabalho tinha sido tão duro quanto sempre é, mas eu me senti muito estranha no primeiro dia – era como se nada daquilo me pertencesse. Apenas um dia antes eu estava vivendo outra vida... tão distinta daquela. Por um segundo fiquei com medo de não conseguir me re-acostumar. Então olhei para minha mesa estava abarrotada de coisas... Nada tinha parado com minha ausência, então havia muito a ser feito com meu retorno. Segui para duas reuniões e o clima foi voltando a mim. Nenhuma grande novidade. Eu também já estava com saudades de MinSuk.


Uma semana depois de minha partida.

Oi Ju! Tudo bem? Espero que não esteja tão ocupada a ponto de não conseguir receber meus e-mails.

Essa é minha última semana aqui em Chicago. Se eu demorar um dia a mais acho que nosso produtor me mata. lol É estranho mas eu não me sinto triste. Talvez me sentiria se você estivesse aqui e pensar nisso faz com que eu te admire por ter levado as coisas tão bem. Não que você não tenha sofrido... eu vi você chorar no aeroporto.

Estou tentando aproveitar meus últimos dias. Saí com o pessoal de O’Hare algumas vezes e com Robert e as meninas. Acho que está começando a pintar um clima entre Robert e a Lucia. Não que eu me interesse por isso, mas pensei que você ficaria feliz em saber.

Bom, é só isso. Aguardo sua resposta. Saudades, MinSuk.


Eu tentei evitar que ele visse minhas lágrimas, tentei ser a forte no aeroporto e não consegui. Ir embora foi difícil, por todas as coisas que todos passam, mas principalmente por causa dele. Me senti um pouco mal, imaginando que talvez eu tenha monopolizado-o, impedindo que ele aproveitasse mais de Chicago então, fiquei feliz que ele estivesse aproveitando agora, principalmente com seus colegas de O’Hare. Fiquei curiosa para saber se Lucia tinha tomado coragem ou se Robert que finalmente tinha percebido. Também estava com saudades dele.


Quatro semanas depois de minha partida.

Oi Ju! Espero que esteja tudo bem... Você não me responde e isso está me deixando chateado.

De qualquer maneira eu queria ter te escrito antes. Voltei para casa. Todos estão bem, meus pais, meu irmão. Já estou trabalhando como um louco. Ah, o Bae e o YoungTae estão perguntando quando você vem nos visitar. Eu também quero saber...

Sinto tanto a sua falta. Parece que quando ainda estava em Chicago era fácil aguentar, mas aqui é um lugar em que você nunca esteve... Eu não consigo te imaginar nos lugares em que vou. Nesses momentos a saudade dói demais.

Adoraria que você viesse. Adoraria te ver de novo.

Mil beijos, MinSuk.


Reler esse e-mail fez meu coração diminuir até quase parar de bater. Até hoje eu passava pelas mesmas coisas. Tentava imaginar MinSuk comigo nos lugares, tentava me lembrar... mas ele nunca estivera aqui. Aquilo doía. Lembrei-me que cerca de duas semanas depois que cheguei de Chicago, saí do trabalho desnorteada. Fazia exatamente um mês que ele havia me pedido em namoro e eu dissera sim. A saudade estava insuportável, doendo no peito, enquanto dirigia. Quando dei por mim, estava no Bom Retiro. Estacionei e desci. Andei por aquelas ruas, sob um leve desespero. Eu podia sentir o cheiro das comidas típicas coreanas, via a escrita hangul em diversos lugares e olhava as pessoas. Nem eu mesma tinha consciência do porque de tudo aquilo, mas era como
se eu precisasse que algo me lembrasse de uma maneira mais vívida. Entrei no pequeno mercado e comecei a olhar os rótulos. Então vi uma bandeja de manjoo. Lembrei-me da feira das nações, de como MinSuk estava lindo, de como ele recebia as pessoas... A saudade foi tanta que fiquei em paz. Comprei uma bandeja e voltei para casa.


Dois meses após minha partida.

Eu não sei porque você me isola com esse silêncio. Você quer me esquecer? Você já me esqueceu?

Bae pediu para eu te dizer que está mandando você responder. Eles têm dito que eu estou insuportável e deve ser verdade. Tem dias que nem eu me aguento.

Por favor, me responda. Nem que seja para me dizer que não quer mais que eu escreva.

MinSuk.


Quando recebi aquele e-mail, cliquei em responder. Comecei a escrever, pedindo perdão por não ter escrito antes, contando as coisas que tinham me acontecido, que não o tinha esquecido pois seria impossível, que eu o amava exatamente do mesmo jeito, que minha saudade doía do mesmo tanto que a dele. Escrevi meu endereço de Skype e coloquei um horário para conversarmos. Terminei mandando mil beijos... E salvei em rascunho.


Três meses depois de minha partida.

Por que...?


Aquela única palavra me fez chorar a noite inteira.


Mesmo agora, relendo seus e-mails antigos, eu não tinha uma resposta para MinSuk. Não sei se foi a covardia que me paralisava toda vez que eu começava a escrever uma resposta. Se fora o medo de continuar aquela história que só estava me causando dor. Se fora a resignação de que era melhor acabar no momento em que acabou. Eu poderia inventar mil motivos, mas nada me convenceria de que aquilo tinha sido o certo, o melhor.

Fechei a pasta e larguei o computador. Deitei na cama e fechei os olhos, as lembranças vívidas demais, dolorosas ao extremo... e culpa.

Bem quando achei que a tristeza iria me sufocar, meu celular tocou.

Ju, você vai vir né? – era Paula.

– Sim. Não vai ser às sete?

– Sim. Mas eu não consegui fazer a torta que você me ensinou...

– É? – eu tentei sorrir.

– O que você tem? Sua voz está meio para baixo...

– Impressão sua. Eu estava deitada.

– Ah. Então, a massa não ficou do jeito que ficou aí na sua casa, parece meio molenga.

– Será que você não cozinhou demais os brócolis? – ri.

– Será? Eu tentei fazer igualzinho você falou.

– Vamos fazer o seguinte. São quase seis horas... Eu vou me trocar e vou para aí. Vamos ver se consigo dar um jeito.

– Ok. Enquanto isso, vou terminando o resto. Um beijo!

– Beijo... – e desliguei.

Tomei banho novamente. Me vesti e olhei no espelho. Meus olhos estavam tristes.

– Não devia ter lido aqueles e-mails de novo. Da próxima vez, apago todos! – e sorri, sem entusiasmo, lembrando que tinha dito aquilo em todas as vezes que tinha lido.


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