Do Próprio Inferno escrita por erikacriss


Capítulo 1
1. Farsante




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Era fevereiro de 1899, final do século XIX, Inglaterra.

―Renata, querida? ― chamou minha mãe batendo na porta do banheiro.

― Sim, mãe? ― gritei, tentando falar mais alto que o som do chuveiro.

― Sua irmã quer tomar banho também, vamos logo. ― apressou-me.

Estávamos nos preparando para ir a uma festa de aniversário na casa dos Wilson, Denys Wilson faria 15 anos, a mesma idade que eu tinha. Eu ainda não o conhecia, meu pai conhecia o pai dele, ‘um amigo de negócios’, dizia meu pai. Papai era um dos investidores na companhia de imóveis da família Wilson, ele trabalhava como advogado também, mas com certeza os nossos maiores lucros saiam da empresa dita.

Eu estava animada para ir nessa festa: Comida grátis, música clássica ao vivo, dança e muitas crianças da minha idade para brincar ― isso tudo segundo meu louvado pai. Minha irmã, Anne, também estava ansiosa por isso, mas os motivos dela eram outros já que tinha 18 anos e incessantemente procurava pelo grande amor da sua vida, seu príncipe encantado de cavalo branco ― patético, era só nisso que ela pensava, e o pior é que mamãe apoiava e levava vários rapagões para nossa casa, apresentá-los à Anne, porém até agora nenhum lhe foi bom o suficiente para agradá-la. Minha outra irmã, Lena, não estava nem ai para onde estávamos indo, nem entendia nada do que falávamos ― afinal, a garota tinha dois aninhos de idade, só sabia babar e puxar os cabelos dos outros.

Sim, os cromossomos ‘x’ são os mais ‘dominantes’ nessa família, somente mulheres. Meu pai se estressava com mamãe por não lhe dar filhos homens que tanto desejava, mal o sabia que o cromossomo ‘y’, que determina o sexo masculino, vem do pai e não da mãe. Mas claro que naquela época essas informações não estavam disponíveis ― só fiquei sabendo disso mais tarde. Mas enfim, papai era rabugento, embora tentasse muito vagamente esconder o sentimento de desgosto. Ele falava com nós três calmamente e nunca havia nos levantado a mão, mas mamãe era a única que nos ouvia e entendia de verdade.

Toc, toc, toc ― ouvi batidas na porta.

― Renata! Eu quero tomar banho! ― gritou Anne ― Se apresse! Preciso estar bem arrumada, os Wilson tem um filho da minha idade que mamãe diz ser muito bonito! Vamos! Eu preciso tomar banho! ― disse ela apressadamente.

― Já estou saindo, Anne. ― tentei acalmá-la, mas sei que em vão.

Apressei mais meu banho, eu sempre demorava, mas minha irmã mais velha me superava. Rapidamente me sequei enrolei-me em uma toalha e sai do banheiro. Anne estava recostada na parede roendo a unha de seu polegar.

― Sabe que mamãe não quer que você roa suas unhas, vai estragar o esmalte e vai encurtá-las. Pare ou sabemos que roeras até o sabugo! ― adverti-a.

Ela deu-se conta do seu ato e parou imediatamente. Rolou os olhos para mim e murmurou um ‘obrigada’ enquanto ela se atirava para dentro do banheiro. Ela nunca foi de ter bons modos ou usar as palavrinhas ‘mágicas’ comigo. Isso era raro e quase sempre era obrigada por terceiros ― meus pais ― a fazê-lo. Com os outros não, era uma verdadeira dama, educada e bem vista. E Lena, bem, como eu já mencionei, só sabia babar.

Vesti-me adequadamente para a ocasião: um esplendoroso vestido azul longo de mangas compridas, chapéu, além do desconfortável espartilho, que toda boa moça devia usar. Eu tinha começado a usá-lo há pouco tempo, depois de ter menstruado, o sinal de que uma moça vira mulher. ― Eu na verdade me sentia a mesma, além de que achava a ocasião extremamente nojenta, mas admitia que fosse incrível alguém sangrar sete dias e sete noites e não morrer por isso. Enfim, quem virava mulher tinha que usar o maldito espartilho.

O espartilho era desconfortável e me fazia ficar sem ar, o odiava. Porém, mamãe sempre me disse que era necessário para que não me vissem com maus olhos. ‘Somente as sirigaitas saem por ai sem espartilho!’, dizia minha mãe.

Vesti minhas meias brancas e meus sapatos azuis. Outra coisa que eu odiava: as meias. Para que serviam afinal se iriam ficar escondidas por baixo do vestido longo? Tudo bem que naquela época mostrar as canelas era uma calunia imensurável, mas em minha opinião usar meias até os joelhos já era demais, já bastava estarem escondidas debaixo de grossos panos e babados do vestido. Eu morria de calor debaixo de tantos panos.

Certifiquei-me de que nenhum espaço de meu corpo estivesse à mostra, olhando-me no gigantesco espelho do meu quarto. Na verdade o quarto não era só meu, era também de Anne, nós o dividíamos e em breve Lena sairia do quarto dos nossos pais para o nosso. Anne já se recusava a dividir o quarto comigo por mais um ano, portanto mamãe disse que assim que Lena se mudasse Anne iria para o quarto que estava em reforma. Então seria eu quem teria que suportar a babona sozinha.

― Renata Dalmonth, está linda como uma princesa! ― disse minha mãe adentrando no quarto para me ver de perto. ― Mal posso esperar para que Denys bote os olhos em tanta formosura, irá se encantar!

Há, sim! Esqueci de mencionar, minha mãe me quer ver casada o quanto antes, para que não seja difícil arranjar um noivo, assim como estava sendo para Anne.

― Mãe, já disse que sou demasiada nova para me casar. ― repliquei ― Sabes que não serei eu a casar primeiro, será Anne. Não apresse as coisas, sim?

Minha querida mãe suspirou e assentiu com a cabeça. Não adiantava de nada termos aquela conversa novamente, isso só deixaria tanto a mim quanto a ela estressadas. Eu nem pensava em namoro, quanto mais em casamento!

Ela se retirou do quarto e eu resolvi me sentar e esperar pela hora de partirmos.

Anne se segurava para não dar pulinhos de alegria quando chegamos à festa, que era no interior de uma imensa mansão. Ela estava muito bonita e elegante de vestido e chapéu rosa perolado. Seus cabelos, nada parecidos com os meus enrolados, estavam mais lisos que o normal embora ela nada tivesse feito para isso ― até porque naquele tempo chapinha ainda não existia e a única coisa que ela poderia ter feito seria passar o ferro de passar roupas, movido a carvão, nos cabelos castanhos. Acho que isso seria estranho e cômico de se ver, é bem provável que os cabelos dela pegassem fogo ao invés de ficarem mais lisos!

Mamãe estava extremamente animada em me apresentar ao Denys, na débil esperança de que eu mudasse de idéia sobre casamento quando o visse. ― Ta legal, e eu sou a rainha da Inglaterra!

Meu pai não esboçava nem contentamento nem descontentamento, era neutro. Cumprimentava os convidados com leves acenos de cabeça e ocasionalmente apertava algumas mãos.

Enfim encontramos o dito aniversariante, Denys: Um rapazinho baixinho de narizinho empinado e cabelinho lambido para trás. Sua aparência parecia gritar ‘Eu sou esnobe! Odeie-me!’.

Quando pôs seus olhos em mim alargou um sorriso no rosto. Agora sim, um belo sorriso de dentes brancos e brilhantes, raramente alguém tinha dentes tão bem cuidados nesses tempos. Isso me fez olhá-lo com olhos menos severos, o sorriso dele parecia verdadeiro e simpático.

― Olá, que bela dama. ― Ele disse não tirando seus olhos azuis de mim. Pegou minha mão e beijou as costas da mesma. ― Que honra ter tão requintada beleza em minha festa.

Minha mãe pularia de contentamento se não estivesse entre tantas pessoas.

― É um prazer. ― disse eu apenas. Minha mãe é quem teve a alegria de me apresentar mais adequadamente.

― Esta é Renata. Uma boa moça, bem comportada. É deveras vaidosa e caprichosa... ― Enquanto minha mãe jogava algumas mentiras para cima do pobre rapaz eu estava impaciente. Tudo bem que o garoto tinha se mostrado cavalheiro e não tão arrogante quanto imaginei a princípio, mas isso não mudava o fato de não querer, em hipótese nenhuma, me casar tão cedo.

Está certo, mãe, ele já entendeu que você quer me jogar para cima dele. ― Eu sussurrei só pra ela ouvir depois de alguns minutos de elogios por sua parte.

Ela assentiu sorrindo e depois anunciou:

― Okay, eu acho que vocês têm muito que conversar, eu vou ir falar com o cavalheiro do seu pai e com sua honrada mãe, com licença. ― então ela saiu me deixando entalada naquela situação constrangedora.

Quer dizer, primeiro ela me envergonha com seu papo mentiroso sobre mim ― eu não era tudo aquilo nem de longe! E me atira para os braços do rapaz como se eu precisasse de muita ajuda para conseguir um homem ― não precisava! Apesar de nunca ter tentado, é claro. Mas aquilo era o cúmulo! Eu precisava agora arranjar uma desculpa, por mais esparramada que fosse, para sair de perto de Denys Wilson.

― Então ― ele começou a falar antes que eu dissesse qualquer coisa, me calei e ouvi ―, a senhorita tem excelentes qualidades. Gostaria de me acompanhar em um passeio pelo jardim mon chéri? ― perguntou-me esticando sua mão para mim.

Hesitei, olhei para os lados vendo os convidados e detectei quem queria achar, minha mãe, ela observava com um incrível sorriso no rosto. Dei um pesado suspiro e aceitei ir ao tal passeio, não custava nada, eu não iria me casar com ele por causa disso, além de que isso faria minha mãe feliz. Eu já havia planejado tudo na cabeça, eu daria o passeio com ele e quando eu chegasse em casa iria conversar com a minha mãe, diria que o passeio foi agradável, mas que Denys não me seria um bom marido e encheria a cabeça dela com o meu habitual surto de ‘não-quero-me-casar-no-momento-dá-pra-entender?’. Isso com certeza funcionaria e minha amada mãe iria ficar sem arranjar-me pretendentes por pelo menos mais um ano, ela podia ser muito paciente quando queria.

No caminho para o jardim me deparei com minha querida irmã Anne conversando com um rapagão incrivelmente lindo, muito parecido com Denys, mas muitas vezes mais bonito e aparentemente simpático, sem falar no sorriso que dava para Anne, reluzente e, igualmente ao do irmão, perfeito. Desviei meus olhos para o outro lado, não queria que ninguém percebesse que eu encarava o bonitão, isso não é coisa que moça direita se faça: ficar ‘secando’ o pretendente de outra, principalmente se for da própria irmã. Anne seria muito idiota se não quisesse esse ‘príncipe encantado’.

Em outro canto da sala estava Frida, sim a pobre moça tinha esse triste nome, ela era babá de Lena, que estava, no momento em que olhei, tentando arrancar os cabelos dela do coro cabeludo enquanto babava.

― Renata? ― chamou-me Denys. Percebi então que ele esteve falando comigo e certamente perguntou-me sobre alguma coisa.

― Desculpe o que disse? ― respondi envergonhada.

Ele riu de minha distração e repetiu:

― Perguntei quantos anos tens. ― disse ele.

― Hm... Claro... Tenho 15. ― foi minha resposta.

Ele assentiu e levantou uma sobrancelha, ainda sorrindo.

E então chegamos ao jardim de sua residência. Tudo ali era tão esplendorosamente lindo! Lembro-me vagamente de uma fonte com a estátua de um anjo, que cuspia água, além das várias flores de diversas cores e variedades. Nunca me senti tão em paz comigo mesma como naquele lugar. Havia alguns banquinhos perto da fonte de mármore, Denys me conduziu até um deles.

Eu me sentei e ele sentou-se ao meu lado. Deu um suspiro pesado e jogou a cabeça para trás.

― Em fim longe daquele lugar. ― ele bufou. Achei engraçado o jeito como ele disse aquilo nada cordialmente.

Ele olhou em meus olhos e sorriu.

― Desculpe-me ― começou ―, mas nem de longe sou o que pensa, tu és uma dama prendada, cheia de mimos e toda cordial, não merece um farsante como eu.

― Como assim farsante? ― eu disse tentando esconder um sorriso no meu rosto.

― Ora, sou uma farsa, tento agir cordialmente e falar adequadamente a mando de meu pai, ele nos observava antes, não podia dizer isso a você naquela hora. Porém agora eu digo-lhe a verdade. Não quero me casar tão cedo, nem quero continuar agindo como um exagerado cavalheiro, na verdade odeio essas vestimentas, principalmente essa estúpida gravata borboleta que tanto me enforca. ― ele tagarelava, e eu me esforçava para não rir. ― Quero ser criança e não um homem! Sou novo demasiado para ter compromissos de um homem. Isso é para meu irmão George que já tem 20 anos e está na idade certa para casar. Peço a ti que não se zangues comigo e imploro-te que guarde esse meu segredo para ti. Fale para sua mãe que não gostas de mim e eu direi ao meu pai o mesmo, então poderei novamente ficar debaixo de minha farsa. ― Não consegui segurar mais o riso. Ele olhou-me desconfiado. ― Porque ri de minha desgraça?

― Perdão. ― disse entre risos ― Não consegui evitar. Sou tão vítima como tu. Também odeio esses milhões de panos, odeio esse espartilho estúpido que certamente me sufoca mais que a sua gravata lhe sufoca! Odeio usar meias e esses estúpidos chapéus. Além de odiar a estúpida cordialidade e as estúpidas tentativas de minha mãe em me casar. Para mim ela primeiro me vera morta antes de casada nessa idade! ― bufei e nós dois caímos na risada.

― Sabe, gostei de ti senhorita Renata. ― ele disse em um tom esnobe forçado. Rimos os dois.

― Sua presença igualmente me agrada senhor Denys. ― imitei seu tom ainda mais forçado.

Gargalhamos um pouco mais e então ele perguntou.

― Já que me entende, podíamos falar menos cordialmente um com o outro e eu posso lhe pedir sua permissão para afrouxar a minha maldita gravata?

― Claro que pode! ― Eu disse lhe empurrando o braço de brincadeira. ― Eu também queria poder afrouxar o espartilho, mas isso infelizmente esta fora de cogitação, a não ser que eu tire meu vestido aqui! ― eu ri.

― Não é uma má idéia, sabe? ― ele disse brincalhão.

Empurrei-o novamente indignada com seu atrevimento, mas ainda brincalhona.

― Bobo! ― exclamei.

Ele riu e afrouxou a gravata borboleta que mais o fazia parecer um pinguim juntamente com o terno. Impressionante o jeito como ele ficou mais bonito sendo ele mesmo. Gostei dele e senti que seriamos bons amigos.


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Notas finais do capítulo

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