Doce Pecado escrita por Akiel


Capítulo 19
Escarlate




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Amarga Redenção

Escarlate

Nada machuca mais do que ser a origem da dor de outro. Toda vez que um ser destrói ou quebra outro, ele é o primeiro a ser atingido. Quando mato para conquistar o líquido que me permite continuar vivendo, sinto em minha alma a dor e a tristeza de minhas vítimas. O sabor agridoce que escapa de seus corpos sob o toque de meus lábios só me faz lembrar como são poucos aqueles capazes de sentirem como eu.

Não me refiro apenas aos seres que dividem as sombras comigo, mas também e principalmente aqueles que caminham sob a luz do sol, os chamados tão orgulhosamente de humanos. Quantos entre eles são capazes de sentirem na própria face o golpe que desferem contra a face alheia? Quantos sentem a dor que corta e queima o coração e que é causada no outro através das palavras que eles proferem? Quantos são capazes de observar seus próprios reflexos e acharem em si mesmos os fragmentos a que reduzem os outros?

Machuca machucar, especialmente quando você tem consciência da inocência que preenche o coração destruído, quando olha nos olhos cheios de lágrimas e vê um olhar que implora por piedade. É ainda pior quando você os ouve orar, porque então você se lembra de sua própria fé, que, talvez, tenha sido esquecida há muito tempo. Ou ainda esteja queimando em seu peito, lutando contra as sombras que insistem em tentar te controlar.

Mas mesmo que você sinta, que haja a dor te dizendo que o que você faz é errado, você não consegue parar. A sede te impulsiona e o faz seguir até o final, até que não haja mais do que um corpo vazio e um coração silencioso em seus braços.  E então você pede por piedade e perdão. Você morre sem realmente morrer.

Você fica ali, no chão, questionando o que você fez, o que você se tornou. O pecado, o pecador. O silêncio parece sussurrar em sua mente, dizendo que não há mais volta, que a luz o abandonou e agora as sombras o esperam. O paraíso já não é mais seu, somente o inferno dos pecadores o aguarda, ansiando para aplicar a punição por seus crimes.

Um sofrimento eterno. É a isso que se resume ter uma existência como a minha e Amadeus está começando a experimentar o significado por trás dessas palavras.  O toque, antes amigo, agora inimigo, fere ao invés de curar. As palavras isolam, maldizem, renegam aquele que um dia aceitaram. A fé, tão viva e confusa no peito, toma a forma da prata e rouba a visão, ou pelo menos tenta, afinal sua fé, ou melhor, nada pode roubar o que você nunca possuiu.

Humanos não costumam ser capazes de ver e nem mesmo de ouvir. Eles veem somente o que querem, se esquecem de ver o que deveriam ver. E se, por acaso, se deparam com algo desconhecido, o negam ao invés de entendê-lo. Para que parar e tentar compreender um ser como eu, como Amadeus, se é mais fácil nos julgar como “demônios”, como “filhos da escuridão”?

O desconhecido assim permanece graças à recusa do ser humano em torná-lo algo conhecido. Por que tentar desvendar as sombras, se é mais simples e confortável se refugiar na luz? Por que tentar entender o motivo por trás do sangue derramando ao invés de manchar ainda mais o chão com o líquido escarlate? Qual é o sentido em ferir, queimar, marcar, renegar alguém só por que essa pessoa mudou? Aliás, por que julgar baseando-se apenas na mudança? O que pode garantir que tal mudança é realmente significativa ou até mesmo existente? Talvez essa pessoa só esteja descobrindo quem ela realmente é.

Mas mudanças assustam. É difícil abrir mão de algo conhecido em prol de algo novo. Da mesma forma, é difícil aceitar que alguém de quem se goste não é mais a pessoa que existe em suas lembranças.

Então sua fraqueza permite que o temor te controle e o faça destruir a fonte de seu medo. Sem se importar com as consequências, você quebra aquele que mudou, reduzindo-o a cinzas que não ocuparão o mínimo espaço em sua memória. O que foi roubado de sua luz é esquecido por suas sombras.

Apesar de odiá-los por isso, não me importa o quanto esses supostos religiosos reneguem Amadeus. Só me importa que ele não me negue.

O fogo dança no interior da capela e meu belo padre se perde em seu próprio temor, seus pensamentos confusos, perdidos em si mesmos. Aproximo-me, ele me ouve, mas me ignora. Abaixo-me e toco a face macia, atraindo sua atenção e fazendo-o relevar as íris negras e profundas.

- Dói, não é? – pergunto baixinho, sem afastar meu toque, deslizando-o pelo corpo imóvel – Ser renegado por aqueles que você considerava seus iguais.

- O que faz aqui? – ele pergunta, observando-me segurar a estaca fincada em seu peito.

- Eu não o transformei no que você é para vê-lo ser destruído pelo medo desses humanos. – respondo, tentando esconder a raiva que sinto do que o medo que os humanos sentem pode causar.

Puxo a madeira e Amadeus grita, o corpo arqueando para trás. Jogo a estaca no fogo e me aproximo, beijando a face branca, sorrindo para o belo ser sob mim.

- O que você fez comigo? – ele pergunta, tentando se levantar.

Ajudo-o e ergo minha mão, tocando a marca sobre o olho esquerdo, delineando o contorno da cruz com a ponta de meus dedos.

– Nada de mais. – respondo – Apenas te dei uma oportunidade de ver o mundo como ele realmente é.

- Transformou-me em um pecador. – Amadeus diz, afastando-se, transtornado com o que fez com um inocente. – Por que fez isso?

- Já te disse que somos todos pecadores. – respondo, aproximando-me e tocando o pescoço coberto – Mas por que somos pecadores? – minha pergunta chama a atenção de Amadeus, fazendo-o voltar a me olhar – Porque alguém nos julga assim.

- Deus. – ele diz, fazendo meu sorriso aumentar. Tão preso aos moldes em que colocaram sua fé!

- Acha mesmo que é Ele quem nos julga? – pergunto, voltando a tocar a marca da cruz sobre o olho de Amadeus, o símbolo da fé cristã – Não seríamos nós que julgamos nós mesmos?

- O que quer dizer? – a confusão é evidente na voz de Amadeus.

Afasto-me um pouco, tocando levemente o fogo que nos ronda. As chamas não me machucam. Na verdade, o toque quente é confortável, uma ameaça que não causa medo.

- Você é um padre. – digo – Quando você ouve alguém se confessar, julga se o que a pessoa fez foi um pecado ou não. Você a julga, não Deus.

- Faço meu julgamento com base nas leis de Deus. – ele diz.

- Leis interpretadas e colocadas em prática por humanos. – falo – Deus deu à humanidade os 10 mandamentos, mas quem decide como eles devem ser postos em prática é a própria humanidade. Se o significado do que Deus escreveu é deturpado, a culpa é dos próprios homens.

- Seguimos o que Deus determinou como Ele determinou. – a firmeza nas palavras de Amadeus me faz rir.

Pego um pouco das chamas e mostro-as a Amadeus.

- Quem queimou sua face foi um humano. – digo, tentando deixar claro meu ponto de vista – Quem enfiou uma estaca em seu peito foi um humano. Quem o jogou ao fogo foi um humano. Deus não o julgou, os humanos, sim.

Aos poucos, o fogo perde a força e desaparece. Abaixo minha mão, esperando que Amadeus se manifeste, o que não demora a acontecer.

- Eu sei o que eles fizeram. – ele diz – Mas também sei que o fizeram porque o que eu fiz é contra as leis de Deus.

- Não importa qual é a lei, mas como e quem a coloca em prática, Amadeus. – digo – Além do mais, não acho justo se prender a uma lei e esquecer outra.

- Como assim?

- Pensei que um dos mais importantes ensinamentos de Jesus fosse acerca do perdão. – respondo – Por que ao invés de julgá-lo e condená-lo, aqueles que você achava que eram seus iguais simplesmente não tentaram entendê-lo e perdoá-lo?

Amadeus permanece em silêncio por alguns segundos, pensando. Volto a me aproximar, tocando a face pálida e observando os olhos escuros nublarem com a confusão que domina a mente de Amadeus.

- O que quer comigo? – ele pergunta.

- Sua fé. – respondo com sinceridade – Sua fé inocente e profunda. Quero que ela me mostre o que você vê sob a perspectiva que eu ofereço. Quero que me mostre como o mundo se parece para você, se a visão que tem é a mesma que a minha, ou melhor. Quero que me mostre a sua luz e com ela ilumine minha escuridão.

Pego as mãos de Amadeus e o puxo em direção à saída da capela. Enquanto caminhamos, ouço os pensamentos que cruzam a mente de Amadeus em alta velocidade. Seus questionamentos são verdadeiros e possuem lógica. E sua última dúvida é o medo que nos ameaça, mas que eu acredito não possuir forças para nos atingir. Mesmo assim, respondo:

- Se isso acontecer, Amadeus, nós estaremos completamente perdidos.


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Notas finais do capítulo

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