Metamorfose escrita por Mia Elle


Capítulo 4
Capítulo III




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Nothing’s Gonna Change My World.”

- Across The Universe – The Beatles

A semana passou mais rápido do que Gerard teria desejado, e logo era sábado outra vez, sem que muita coisa tivesse acontecido desde o último. Era um sábado também frio, porém sem um sol brilhando impotente no céu; nuvens escuras o cobriam por inteiro, indicando que uma forte chuva cairia mais tarde.

A mesma música alta invadiu o mesmo quarto escuro e desarrumado, fazendo com que Gerard – mais uma vez – desejasse não ter espancado Frank daquela maneira. Cerca de quarenta minutos depois o garoto estacionava o carro em frente a St. Martin, agora nem tão nervoso, visto que já tinha uma idéia do que fazer.

Por educação, tocou a campainha. Momentos depois ouviu os passos apressados da Sra. Lee, seguidos de sua imagem peculiar na porta. Hoje estava ainda mais estranha, graças a uma grande flor roxa em meio aos cabelos.

- Pois na- Oh, é você – ela disse, virando-se e deixando a porta aberta. Continuou andando, aumentando o tom de voz à medida que se distanciava – não precisa tocar a campainha. Vá assinar sua folha, está na primeira gaveta da escrivaninha... – por fim, desapareceu pela porta do refeitório, ainda falando coisas que Gerard não pode compreender por causa da distância.

- Bom dia para a senhora também... – Gerard murmurou, as sobrancelhas erguidas, enquanto limpava a sola dos sapatos no capacho da entrada. Passou as mãos pelos cabelos, tirando-os dos olhos e dirigiu-se ao escritório.

Jack, o senhor sem família, cumprimentou-o entusiasticamente, exigindo que este se aproximasse para que ele pudesse apertar sua mão. Relutante, Gerard lembrou-se de que seu trabalho ali era “dar amor” às pessoas, e por isso aproximou-se, deixando-se tocar pelo homem. Teve de admitir que não era tão ruim assim.

Caminhou então a passos curtos até a pequena e abafada salinha da coordenação. Deu a volta na mesa sem conseguir evitar o barulho do arrastar de cadeiras e abriu distraidamente a primeira gaveta, reparando que existia mais de uma pasta amarelada.

- Porra, qual é agora? – resmungou, tentando encontrar a correta. Depois de tirar todas da gaveta, espalhá-las pela mesa e fazer a maior bagunça, ele reparou que todas levavam uma etiqueta. Bufou e logo encontrou aquela que tinha a inscrição “voluntariado”. A da Sra. Lee era a primeira. Beatrice Mary Lee era o seu nome; a data de nascimento constava como trinta e um de dezembro de mil novecentos e quarenta e sete. Gerard tinha conhecimentos suficientes em matemática para saber que ele praticamente acertara a idade da mulher.

A segunda era a de Frank, que já estava quase totalmente preenchida, e levava um pequeno número “sessenta” ao canto da folha. Quando finalmente encontrou a sua, reparou que tinha um número “um”.

- Ual, Frank já preencheu sessenta dessas? – murmurou enquanto assinava a sua folha e a guardava novamente na pasta.

Quando foi colocar a caneta no lugar, ouviu uma voz chamá-lo:

- Gerard, está aí? – a voz de Frank chamou, e a porta abriu-se de repente. O maior encarou o pequeno sem responder – oh, ainda bem! Precisamos de você.

- É mesmo? – Gerard indagou, fingindo surpresa – o que tenho de fazer?

Frank riu.

- Precisamos que alguém limpe os corredores. O material de limpeza está na dispensa – piscou e deixou a sala, esquecendo a porta aberta.

Gerard o amaldiçoou mentalmente. Será que aquela porcaria de bicha não podia deixá-lo em paz? Deu a volta na mesa, batendo os pés infantilmente e arrastando as cadeiras com mais violência do que o necessário.

Dirigiu-se a cozinha para pegar o tal material de limpeza na dispensa. Encarou a prateleira ocupada totalmente por frascos contendo líquidos coloridos que exalavam aquele cheiro forte de lavanda. Ergueu as sobrancelhas e entreabriu os lábios finos. O que, exatamente, ele deveria usar para lavar um corredor? Donna nunca lhe dera a chance de aprender esse tipo de coisa, sendo ela aquela maníaca por limpeza que fazia tudo sozinha já que ninguém, nem mesmo as diaristas, sabiam fazer o serviço melhor do que ela. Engoliu em seco; teria de perguntar a alguém.

Virou-se lentamente para olhar a cozinha; todos estavam ocupados limpando-a para a preparação do almoço. Rapidamente localizou os cabelos vermelho vinho da Sra. Lee em meio às pessoas na cozinha. Respirou fundo e foi em direção a esta, disposto a perguntar o que devia fazer.

- Hm, Sra. Lee? – a mulher murmurou algo ininteligível para indicar que estava ouvindo – eu... Frank me pediu para limpar os corredores, mas só que eu... Não sei muito bem o que fazer e...

A mulher parou de passar pano no balcão, como fazia, e permaneceu um tempo sem se mexer. Por fim largou o pano encardido e pousou as mãos calmamente na superfície do móvel, erguendo a cabeça e encarando Gerard com as sobrancelhas erguidas.

- Você não sabe limpar um corredor?

Gerard sentiu-se envergonhado com a pergunta da mulher. Será que era tão absurdo assim que ele não soubesse fazer serviços domésticos? Isso era coisa de mulher, afinal!

- N-não – sentiu sua voz fraquejar e seu rosto, até então pálido, avermelhar-se por completo.

- Deus, garoto! Tem muito que aprender, não? – ela disse, um sorriso piedoso passando rapidamente por seus lábios – venha, vou te ajudar; mas aprenda rápido, sim? Eu não tenho tempo para ser a sua babá.

Deu a volta no garoto e foi, rindo consigo mesma, até a dispensa. Gerard a seguiu.

- Aqui, veja – disse ela, pegando um balde e um esfregão e entregando a Gerard, que pegou os dois de mal jeito nos braços – depois encha o balde até a metade, mais ou menos, e misture com duas ou três tampas disso aqui – colocou um grande galão com um liquido esbranquiçado nos braços do menino também, fazendo-o resmungar, reclamando do peso – e coloque essas plaquinhas, uma de cada lado do corredor, para evitar acidentes – sobre tudo que Gerard já segurava, ela largou mais duas placas amarelas com a inscrição “cuidado, chão molhado”.

Finalmente olhou para o garoto, que se equilibrava e usava até mesmo o queixo para manter tudo encima de seus braços.

- Esfregar o chão você sabe, não é? – ele murmurou, sem realmente respondê-la. É claro que não sabia, mas estava com vergonha de admitir – ótimo – ela sorriu docemente e virou as costas, voltando ao seu trabalho.

Depois de praguejar um pouco consigo mesmo, o menino foi cuidadosamente até o andar de cima, e a muito custo conseguiu chegar lá sem derrubar nada. Largou tudo em um canto qualquer do primeiro corredor, e parou, respirando ruidosamente e esticando os braços doloridos pelo esforço. Colocou, então, uma plaquinha em cada ponta do corredor, indo depois ao banheiro encher o balde com água. Voltou ao lugar onde largara as coisas, já cansado, e agachou-se, medindo a quantidade de produto que colocaria ali pela tampa, como a Sra. Lee dissera para fazer. Sentiu as narinas arderem pelo forte cheiro e segurou um espirro.

Pegou então o esfregão e, meio sem jeito, o molhou com a água do balde, passando-o no chão logo em seguida. Aos poucos foi pegando o jeito, e, alguns minutos depois já se convencera que não era tão difícil, e passou a cantarolar enquanto fazia o serviço. Como uma empregada doméstica, pensou, agora só falta dançar com o esfregão.

Depois de algum tempo ouviu passos lentos aproximarem-se, e parou de cantarolar abruptamente, erguendo os olhos para avisar quem quer que fosse que o chão estava molhado. Avistou o mesmo homem que encontrara no jardim na semana anterior.

- Hm, o corredor está molhado, não seria melhor voltar mais tarde? – alertou educadamente.

Stefan parou por um momento, lendo com dificuldade as placas amarelas, e depois observando o chão.

- Oh, então... Gerard, não é? – o menino assentiu e o homem prosseguiu – poderia, por favor, buscar o meu livro no quarto?

Gerard respirou fundo. Se as pessoas soubessem o quanto o irritavam quando o tratavam como uma empregada; como se fosse sua obrigação obedecer as suas ordens disfarçadas de pedidos educados, elas não o fariam. Queria responder que não era obrigado, que estava ocupado... Queria mandar tudo para o inferno e voltar para casa dormir. Não o fez.

- Sim – foi o que respondeu.

- É aquela porta ali – o homem explicou, apontando para a terceira porta à esquerda. Gerard assentiu e foi caminhando com cuidado pelo corredor úmido até o quarto.

Era um quarto pequeno, tinha apenas uma penteadeira, um pequeno guardar-roupa, e uma cama com seu criado mudo. Todos os móveis de madeira escura e já um tanto desgastados. Era bem iluminado e arejado graças à janela localizada acima da cama. Logo, Gerard viu o tal livro e os óculos no criado mudo, e foi rapidamente pegá-lo. Queria voltar logo ao trabalho para ver se terminava logo também.

Ao pegar o livro reconheceu Pássaros Feridos, de Colleen McCullough. Um dos poucos livros que tivera de ler para o colégio e gostara da história. Voltou ao corredor distraído, examinando a encadernação daquele exemplar, que parecia ser bem mais clássica que a do seu, e só tirou a sua atenção desta quando quase caiu no corredor.

- Gosta desse livro? – Stefan perguntou quando Gerard o entregou os pertences.

- Um dos poucos de literatura clássica que acho realmente bom – Gerard respondeu, esboçando um sorriso. Puseram-se então a discutir vários aspectos do livro, divertindo-se ao ver que, apesar da grande diferença entre si, eles concordavam em muitas coisas.

- Então, hm, eu preciso acabar com isso aqui – Gerard disse, por fim, percebendo que perdera um tempo precioso batendo papo com o homem. Este assentiu e virou as costas, indo em direção as escadas.

Gerard descobrira na conversa que Stefan tinha apenas quarenta e cinco anos, aparentava bem mais, ele achava. Talvez fosse por causa da doença. O menino teve de admitir que gostara de conversar com o homem; poucas vezes acontecera de encontrar alguém que concordasse em tantas coisas com ele. Pegou-se, então, ao invés de julgando, sentindo pena de Stefan. Sabia que não era uma escolha para ele estar ali, era de certa forma tão jovem ainda. Ou não, afinal, segundo Frank, ele viveria até os sessenta e cinco anos.

Assustou-se ao pensar assim. Devia ser horrível saber que morreria tão cedo, ver a morte se aproximar e estar ali, sozinho, vivendo de favor em uma instituição de caridade. Gerard esquecera-se de perguntar por que o homem vivia ali; e também pensava se não seria indelicado, mas não podia deixar de sentir curiosidade. Era tão horrível da parte da família dessas pessoas, como a de Jack, largar seus parentes assim. Tão preconceituoso.

Quando percebeu o que pensava, chacoalhou a cabeça, voltando a esfregar o chão e cantarolar, pensando agora em outras coisas.

Quando Gerard terminou de limpar todos os corredores da casa já era cerca de uma da tarde. Ele ajudou a lavar e secar a louça do almoço, e depois, não encontrou mais nada a fazer. Frank também estava desocupado, encostado no batente da porta do refeitório olhando para o nada.

- Hm, Frank? – o pequeno chacoalhou levemente a cabeça e demorou alguns segundos para colocar os olhos novamente em foco. Então viu que era Gerard que o chamava e acenou com a cabeça – tem mais alguma coisa que eu precise fazer?

- Não, hm, se quiser pode ir – o menino disse, dando nos ombros.

- Preciso ficar até as três – Gerard comentou olhando para o grande relógio redondo no alto da porta que indicava ser apenas duas e quinze – vou acender um cigarro lá fora – dizendo isso, virou as costas.

- Vou com você – o pequeno afirmou, tateando os bolsos traseiros em busca da sua carteira de cigarros.

O vento soprava forte do lado de fora fazendo com que as muitas árvores da rua se inclinassem, dando a impressão que poderiam tombar a qualquer momento. Gerard checou se nenhuma delas havia caído encima de seu carro antes de sentar-se, encolhido, em um dos bancos da varanda. Prendeu um cigarro entre os lábios e protegeu-o do vento com a mão antes de acendê-lo e dar a primeira tragada. Tombou a cabeça para trás, soltando a fumaça. Seus olhos ardiam de sono, precisava dormir e faria isso o domingo todo.

Baixou os olhos para o jardim, onde uma mulher brincava de tentar pegar uma menininha que aparentava ter dois ou três anos. Seria a criança doente, ou a mãe? A menina corria feliz pela grama, e a mãe ria e tentava pegá-la, dizendo que estava frio e era melhor entrar logo. Enquanto tragava e admirava a cena, ouviu Frank murmurar:

- Estou ferrado.

Gerard soltou a fumaça e virou-se para o lado, erguendo as sobrancelhas para o menino.

- Por quê?

- Por que o mundo vai cair e eu tenho que voltar caminhando para casa – Frank disse, rindo de sua própria desgraça.

- Não seja bobo, Frank, Gerard pode te dar uma carona, não é? – A Sra. Lee saiu sorridente para a varanda, carregando uma bandeja com três xícaras de chocolate-quente.

Gerard iria inventar uma desculpa qualquer, mas Frank falou primeiro.

- Gerard saí agora, eu apenas as cinco.

- Mas isso aqui está um marasmo – ela apontou para a casa – não há nada para fazer agora, pode ir mais cedo. Você leva ele, não é querido?

Gerard grunhiu, amaldiçoando Frank e a Sra. Lee. Agora era obrigado a dar carona a maldita bicha. Isso não constava em sua sentença!


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Notas finais do capítulo

Então, a partir de agora acaba a parte da "introdução" e as coisas vão começar a acontecer, ok? Espero que estejam gostando.