Sobre Metal e Sangue escrita por JojoKaestle, LudMagroski


Capítulo 15
A fome nos torna ladrões




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A cidade se erguia como um monte de metal velho e retorcido entre os rochedos vermelhos. Erguia, não. Amontoava-se. Arras amontoava-se, com seus casebres feitos de pedaços diferentes de metal amassado e edifícios raquíticos roídos pela ferrugem, diferindo em muito pouco do depósito de lixo que a antecedera na estrada. À nossa esquerda a luz do sol refulgia contra as estufas, mas no lugar do esplendor esmeralda que esperávamos, fomos recebidos em sua maior parte por esqueletos de ferro, vidro quebrado e plantas enegrecidas. Uma porção do terreno de plantio, no entanto, ainda cumpria seu dever, brilhando verde contra os tons de marrom e cinza da cidade, cercada por altas cercas eletrificadas e seguranças armados.

- Isso é estranho... – murmurei afastando o binóculo de meus olhos e me virando para Armand – Não vejo sinal de nenhum L.O.P. Não fardado, pelo menos. – assim como um R.E.S., um L.O.P. poderia facilmente passar por humano, se quisesse. Eram os fardamentos que denunciavam sua real natureza, mas não haviam motivos para escondê-la: eram mais fortes, mais ágeis, mais mortais.

- Estamos muito longe da capital, Deidre.

- Sim, mas... São estufas. Um bocado decadentes, mas estufas. Há água aqui, e comida. O Governo é responsável pelo fornecimento de água e comida, por que seus soldados não estariam aqui?

- Porque deve haver lugares melhores pelos quais lutar. Em lugares perdidos como esse não é raro que alguém com dinheiro e poder tome os recursos pra si e passe a explorar o povo.

Concordei com a cabeça, me lembrando. Tinha me esquecido de que agora estávamos no domínio de Quimper, o mais pobre de Rouen, onde as histórias e notícias que ouvíamos na capital tornavam-se sólidas diante de nossos olhos.

- Saber que não terei que enfrentar um L.O.P. ou um R.E.S. essa noite me deixa mais aliviada. – tentei forçar um sorriso e Armand me sorriu de volta, desviando o olhar para o sol que se escondia entre os rochedos no horizonte, banhando tudo de um tom dourado e rosa, mas nem por isso melhorando o aspecto da cidade abaixo de nós.

- Basta não deixar que se aproximem e causam tanto dano quanto uma torradeira. Vão ver como minhas meninas fazem bem esse trabalho. – Aydee tinha as duas pistolas na mão e as girava, ocasionalmente as apontando para a cidade.

- Guarde isso, Han Solo, tem pessoas lá embaixo. – Armand tentou tirar uma das armas da mão da garota, mas ela se esquivou rapidamente.

- Han quem? – franziu o cenho em dúvida se deveria ficar ofendida ou não.

- Vocês não vão. – disse subitamente, antes que Armand pudesse responder. Os dois pararam para me encarar. – Nem ninguém. Só eu e os robôs. – me virei e comecei a descer o morro em direção ao nosso pequeno acampamento antes que pudessem esboçar qualquer expressão.

- Deidre! É sério, isso? – Aydee se apressou para me acompanhar, devolvendo as armas ao coldre envolto no quadril largo. Ao perceber que eu não a respondera, segurou meu ombro com força, virando-me para encará-la – Por que pode confiar nos robôs e em nós não?

- Não é questão de confiança. – suspirei cansada.

- E o que é então? – ergueu as sobrancelhas, pondo as mãos no quadril com imponência - Quer que a gente fique sentado esperando vocês voltarem como nossos heróis? Berthe dizia uma coisa muita certa, Deidre. “Temos que lutar nossas próprias guerras”. Não somos ovelhinhas.

- Bem, nós não estamos lutando guerra alguma aqui, estamos sobrevivendo.  Se queria tanto lutar podia ter seguido com Berthe. – tentei manter o tom neutro.

- Você sabe que eu não podia. – Aydee me acusou, em um tom quase ofendido.

- Não importa a razão, fez sua escolha. – respondi com mais irritação do que pretendia - Alguém pode se machucar... Até morrer. Tenho certeza de que não foi para isso que vieram comigo.

- Não sei onde nem como é essa sua base segura, mas uma coisa posso adiantar: não é segura. Nada mais é seguro. Quanto tempo você acha que vão demorar pra nos achar? Não é muito, posso garantir. Não temos mais onde nos esconder, é lutar ou morrer.

Não pude deixar de notar como suas palavras lembravam as de Erwan no dia em que nos encontramos, enquanto eu escalava aqueles rochedos, ainda tentando lidar com a morte da senhora Adele. Peguei-me imaginando se ele estaria me dizendo as mesmas coisas caso estivesse ali. Aydee me olhava esperando uma resposta.

- É perigoso. Meu trabalho é levá-los em segurança até a base segura. É o que estou tentando fazer. - apertei os lábios e chutei uma pedrinha, a vendo rolar até a base do rochedo onde Ernest ajudava Anselme a montar suas antenas de rádio. Damien brincava com o filho de Cecille enquanto esta acendia uma pequena fogueira e Enzo se recostava em uma cadeira de montar, dirigindo um olhar compenetrado para o livro em suas mãos. 74-S e 63-S faziam sua ronda nas imediações. Tínhamos os sinais de rádio de Anselme e o morro para nos proteger de radares e olhos inimigos, mas cautela nunca tinha sido demais em nossas vidas.  Os robôs não tinham gostado nenhum pouco da idéia de invadir uma estufa, mas as objeções desapareceram depois que argumentei que a decisão deveria caber a quem estava sujeito a passar fome. Pus a questão em votação e apesar de ninguém (com exceção de Aydee) parecer animado com a idéia, todos concordaram.

O cheiro de salsichas assadas já começava a encher nosso pequeno acampamento quando alcancei o chão firme e Aydee chegou aos pulos ao meu lado, com Armand logo atrás dela dizendo que acabaria caindo e quebrando o pescoço se não tomasse cuidado.

- O garoto tem razão, filha. – Ernest lhe estendeu uma lata com salsichas já assadas.

- Ah, por favor! Já me basta Deidre querer me tirar da missão, agora vocês dois? - Aydee revirou os olhos e enfiou uma salsicha na boca, sentando-se sob o toldo improvisado que tínhamos montado para nos proteger do sol escaldante – Achei já ter provado que sei me virar sozinha com uma arma na mão – resmungou mais para si mesma do que para os outros.

- Acho que nem preciso dizer que você não irá, não é, Armand? – Enzo comentou com satisfação do outro lado da fogueira, sem tirar os olhos de seu livro. O filho resmungou com desgosto enquanto limpava a areia de suas botas.

- Não precisa me lembrar da minha falta de jeito com armas, pai.

- Você fala como se fosse algo ruim. – o homem ergueu as sobrancelhas e pôs o livro de lado – Essa perícia de seu pai só me traz aborrecimento e preocupação. Se não fosse Fadwa e sua habilidade com as agulhas, ele teria mais talhos do que uma tábua de tiro ao alvo.

Fadwa, uma jovem imigrante de Almeidna que perdera seu marido roueno no ataque em Nantes, sorriu de sob o toldo, amamentando seu bebê de colo.

- Tem razão, mas nossa família é a que tem o maior número de bocas para alimentar, Enzo. É mais do que justo que um de nós participe disso. – Damien argumentou com um sorriso – Só não entendo, Deidre, por que tirar Aydee da missão.

- Não estou tirando Aydee, vou sozinha. Quer dizer, com os robôs. Apenas. – senti todos os olhares se dirigirem para mim e os devolvi tentando não mostrar hesitação. O crepitar do fogo na fogueira improvisada foi o único som por um longo momento. – É mais seguro.

Ernest se remexeu em seu lugar sobre o toldo.

- Eu compreendo sua preocupação, menina, mas não somos um grupo indefeso. – coçou a barba grisalha com os dedos inchados - Não todos nós. – ele olhou para a filha que mastigava suas salsichas com evidente aborrecimento e riu.

- Não vamos jogar nossa sobrevivência nas suas costas, Deidre. Deixe-nos ajudar da forma que pudermos. – Damien pôs a mão em meu ombro.

- Eu agradeço, mas... vieram comigo por um motivo: para ficarem longe de conflitos. E eu vou fazer com consigam isso. – ergui a cabeça e disse com o máximo de convicção que consegui reunir. Fadwa tentou me encorajar com um sorriso, mas os outros continuaram a me encarar com os mesmos olhares. Olhares que me diziam “Não pode fazer isso sozinha”. Ao perceber que ninguém tinha nada mais a dizer, comecei a me afastar.

- Deidre... – Armand esticou a mão para me deter, mas eu o afastei com delicadeza, entrando no transportador. 21-S estava sentada à mesa redonda de reuniões, com o olhar sobre o que julguei ser mapa holográfico de Arras. Virou-se ao notar minha presença e juntou as mãos no colo, como se esperasse ordens.

- E então, o que você descobriu? – me aproximei do que pareciam ser as estufas flutuando luminosamente sobre a mesa.

- Existem pontos fracos na cerca, úteis para um grupo pequeno. A segurança parece focada em conter ataques desesperados dos cidadãos, é composta por humanos e soldados robóticos velhos.

- Que tipo de soldados?

- Modelos antigos de guerra. O nosso problema é a carga. Vamos ter que achar um meio de transportá-la até aqui.

- Não há mesmo um modo mais... honesto de conseguir essa comida? – apoiei as mãos no queixo.

- Não temos dinheiro. Poderíamos vender parte da munição, se houvesse alguém aqui interessado em comprá-la, mas pouco retorno teríamos. A comida aqui é muito cara e um bem precioso, se encontrássemos alguém a vendendo na cidade seria por um preço tão alto quanto o da estufa, um preço que não podemos pagar.

21-S estava de pé ao lado da mesa, esperando para derramar sobre mim toda a informação que tinha coletado em sua busca pela cidade, duas horas antes. Em vez de lhe fazer mais perguntas, deixei meu olhar se perder pelas ruelas moribundas de Arras.

- O grupo parece não ter gostado da minha decisão. – me peguei murmurando. O que diabos você está fazendo, Deidre? – Eu sei o que quero, mas...

- Você é a comandante. Se alguém se machucar ou morrer você será responsabilizada. Por mais que todos dêem suas opiniões e conselhos é a sua voz que decide o curso a ser tomado.

A olhei sem entender. Era justamente disso que eu estava falando.

- Você está no comando, mas nosso objetivo é claro e iremos cumpri-lo ou morrer tentando. Não podemos perder mais humanos.

Encarei as feições pálidas de 21-S. Parecia tão fácil ser um robô. Ter suas prioridades tão claramente elencadas, sem nada para desviar sua atenção do objetivo final. O objetivo final, levar os humanos para a base em segurança. Era para isso que estavam ali e se me ajudavam era porque de algum modo eu havia me tornado um meio para seus objetivos, porque as coordenadas estavam comigo. Mas e se eu me tornasse um obstáculo? Se por minha causa o grupo sofresse baixas – ou apenas corresse esse risco – a lâmina de 21-S acharia meu pescoço com tanta avidez quanto a de 74-S. De repente os olhos cinzentos da robô me pareceram vazios, como as esferas frias de vidro que realmente eram. Sua pele pela primeira vez me pareceu artificial, o tecido resistente a cortes e calor, feito para acobertar a verdadeira criatura de metal que residia sobre ela. Seus dedos pálidos se flexionaram sobre a mesa e me percebi plenamente consciente da força que tinham, capazes de esmagar um crânio humano sem o menor dos esforços. Era assim que os outros os viam? Então compreendi o rancor nos olhos de Erwan, o temor nos gestos de Cecille, o incômodo disfarçado de Armand.

- Há algo que queira dizer? – 21-S me arrancou de meus devaneios.

- Não! – minha voz saiu rápida e desesperada - Não. – afastei o cabelo do rosto e olhei para o monitor que indicava as horas – Meia hora depois da meia-noite. Lembre-se.

Fechei a porta atrás de mim e me dirigi ao comboio onde ficavam as camas. Fadwa já havia voltado, mas ela se limitou a olhar quem entrara no quarto e tornou a cantarolar baixinho para o bebê que dormia em uma caixa improvisada como berço. Havia em suas mãos uma fotografia que imaginei ser de seu marido, Beni. Eu o conhecera, em Nantes. Era dono de uma livraria e costumava separar livros para mim e Tia Sybil... Se bem me lembro, havíamos ido buscar alguns na mesma semana em que Rhes chegara à cidade. Parecia que haviam passado séculos desde a tarde em que eu deixara Nantes, desacordada, sem poder sequer lhe lançar um último olhar. Pela pequena quantidade de pessoas que nos acompanhara e a perda dos saltadores, pode ter sido bom. Só haveria fumaça, cinzas e morte para olhar. Fumaça, cinzas e morte. Annecy do Norte, Nantes, Auch. Meus pais, Tia Sybil, Rhes. Qual seria a próxima cidade que eu abandonaria às pressas, sentindo o calor do fogo às minhas costas? E quem seria o próximo a se tornar uma memória, uma fotografia, um amuleto em meu pescoço? Ninguém. Vou chegar àquela maldita base em quatro semanas e todos ficarão em segurança. Tirei as botas, pendurei o casaco na cama e me deixei cair no colchão fino, adormecendo ao som doce da canção de Fadwa.

Acordei com o toque de Armand em meu braço.

- Deidre, está na hora. – ele sussurrou, aproximando o rosto. Afastei a colcha que me cobria e tateei as botas no escuro, as calçando sem dificuldade. Armand me ofereceu meu casaco e assim que o vesti me guiou na penumbra entre as camas ocupadas até o lado de fora do transportador. Estava um frio de rachar. Fechei o casaco e puxei o capuz sobre a cabeça, cruzando os braços na esperança de manter o máximo de calor possível no meu corpo sonolento. A fogueira havia se apagado e a cadeira e o toldo postos para dentro. A única luz à sombra do rochedo vinha de uma lanterna velha presa em uma das portas do transportador. Os três robôs estavam do lado de fora com seus uniformes normais, um contraste divertido com Aydee e Damien, que montavam guarda vestindo casacões pesados. Anselme surgiu logo atrás de mim, enrolado em uma colcha com apenas a cabeça enrugada do lado de fora e prendeu um pequeno dispositivo em minha orelha.

- O que é isso?

- Um comunicador. Para você falar com os robôs, menina. Ah, onde estão suas coisas? – o velho remexeu algo dentro do seu casulo acolchoado e eu reprimi um bocejo – Ainda dormindo de pé, não é? – me estendeu a lâmina que Zahra me dera e um pequeno cinto com explosivos – Prenda este na sua perna. A coxa direita. Você é destra, não é?

Afirmei com a cabeça, fazendo o que ele me pedira.

- Obrigada, Anselme. Se algo acontecer, quero que fique com o mapa. Não o entregue aos robôs de modo algum. Se tiver algum problema, peça ajuda a Damien. Ou Enzo. Eles parecem sempre saber o que fazer.

- Os robôs também pareciam e veja só no que deu.

- Eu sei que não os conheço tanto quanto gostaria, mas não posso pedir que faça isso sozinho, você...

- Eu sou só um velho, não é? – Anselme me lançou um olhar malicioso porem brincalhão – Mas olhe só pra você! Mal largou as fraldas e já está fazendo tudo isso sozinha, por que eu não haveria de fazer? Vá embora, menina, que a única coisa que quero ter em minhas mãos pela manhã é comida. – e com isso deu-me um pequeno empurrão, entrando no transportador em seguida. Notei que Armand ainda estava à porta, seus olhos verdes fitando o ponto entre as rochas onde Aydee havia desaparecido para fazer sua ronda.

- Acha que ela está com raiva?

Tive a impressão de ver suas bochechas corarem, mas era difícil ter certeza na escuridão.

- Hã... Não, não. Acho que ela só está aprendendo a lidar com a idéia de ser protegida – ele sorriu – Você sabe que ela não conhece muito bem essa sensação.

- Sei. – murmurei em resposta. Seu pai tinha reumatismo e a fuga através do deserto junto aos antiinflamatórios limitados pelo Novo Governo não melhoravam a sua condição. Por vezes passava dias sem deixar a cama e Aydee era sua enfermeira em tempo integral desde que a mãe os abandonara, quando tinha nove anos.

- Ela vai ficar bem, você vai ver. Principalmente se trouxer as batatas de que ela tanto falou o percurso inteiro. Se esquecer, se prepare para ouvir sobre isso até o final de seus dias.

Sorri para ele e notei os robôs me olhando de onde estavam.

- Acho que é melhor eu ir.

A mão gelada dele envolveu meu pulso com delicadeza, chamando minha atenção.

- Tem certeza de que quer fazer isso assim? - seus olhos verdes me analisavam por trás das lentes quadradas, um discreto vinco na pele entre eles revelando sua preocupação. Seu nariz e bochechas estavam corados, eu não sabia dizer se pelo frio da noite ou pela exposição do sol contra sua pele clara.

- Eu preciso.

Pareceu hesitar por um momento e por fim deixou meu pulso escapar por entre seus dedos finos.

- Então vá. E que a Força esteja com você. – me lançou um sorriso tímido quando eu o olhei sem entender antes de me afastar em direção aos robôs.

As ruas de Arras não eram muito diferentes do deserto onde estavam. Eram feitas de pedra e areia e tão frias e vazias quanto. Pelo menos naquele horário em que nos esgueirávamos entre as construções em ruínas, procurando chegar despercebidos aos limites das estufas. Aqui e ali reconhecia um monte de trapos ressonando, alguém que não tinha sequer um pedaço de metal enferrujado para protegê-lo do frio. E havia ratos, montes de ratos. E baratas. Zanzando ao redor dos fios de líquido fedorento e suspeito que brotava ao pé de algumas construções para ser mais adiante engolido pela terra ou acumular-se em poças escuras. A não ser por um cachorro latindo em uma casa distante, ninguém pareceu nos notar quando alcançamos as altas e roídas grades que circundavam as plantações e os armazéns. Um holofote amarelado iluminava a cerca a cada dez metros e uma sombra caminhava monotonamente de um lado para outro não muito longe do ponto onde estávamos.

- Há uma falha na cerca ali. – 21-S apontou para o ponto onde a sombra havia parado. Afirmei com a cabeça, arrancando um dos explosivos da faixa em minha coxa. A pequena bola metálica se moveu na minha mão, exibindo uma tela quadrada com números brilhando em azul. Selecionei o tempo para explosão, como Edda me ensinara, e fixei a esfera na grade.

- 63-S vem comigo, vocês dois dão cabo do guarda antes que ele mande algum sinal e esperam nosso aviso.

Escondemo-nos em uma viela que dava para a plantação, aproveitando a escuridão, até que ouvimos o som abafado do explosivo deformando parte da cerca e provocando algo parecido com um curto circuito. 21-S e 74-S sumiram à nossa direita assim que os passos apressados do guarda passaram em direção ao estrago. Eu e 63-S avançamos na direção oposta, à procura do rasgo grande o suficiente para podermos passar que 21-S descrevera. O buraco estava lá, envolto pelos dedos esqueléticos e metálicos da cerca, provavelmente efeito de uma bomba rústica, mais potente e barulhenta. Atravessamos a abertura e o pátio de terra batida, nos apoiando contra parede mais próxima, longe das luzes. Pressionei o botão do comunicador e sussurrei:

- Tudo limpo. Venham.

Os dois robôs se juntaram a nós quase que imediatamente e acenaram com a cabeça dando a entender que haviam feito sua parte. Ninguém notaria que aquela parte do terreno estava desprotegida por um bom tempo. 21-S nos guiou até uma edificação grande, fechada por um portão velho de metal e ligada lateralmente a outros prédios maiores. Prendi um explosivo em uma lateral amassada onde o portão se encontrava com a parede e nos afastamos alguns passos. O som abafado pareceu ecoar dentro da construção. O amassado havia se tornado maior, deixando um pequeno espaço suficiente para uma mão pequena entre o portão e a parede. 63-S encaixou sua mão ali e forçou o metal, dobrando-o sob sua força e aumentando gradativamente a abertura. Dava para ver seus membros tremerem com a força exercida contra o grande portão, mas seu rosto permanecia plácido como se estivesse dobrando uma folha de papel. O metal rangeu quando a abertura ficou grande o suficiente para que pudéssemos entrar e quase no mesmo instante um robô dobrou a esquina em minha frente. Era um dos modelos antigos que 21-S comentara. Tinham os mesmos olhos de farol e um dos braços transformado em uma lâmina, mas suas formas eram menos arredondadas e o metal que cobria seu corpo estava riscado em vários pontos. “Fisionomia não reconhecida, apresente sua ID” a voz metálica avisou. Olhei o braço estendido em minha direção. Eu tinha fechado os dedos em volta da lâmina que Zahra me dera, mas ele daria o alarme antes que eu pudesse me aproximar o suficiente para tentar acertá-lo. “Aqui, um momento”. Larguei o bastão e tirei a mão do bolso, destacando uma das pequenas esferas no cinto preso em minha coxa. O robô se aproximou para ver o que eu tinha em mãos e eu ativei o pequeno botão no dispositivo, atirando-o contra seu peito. Não houve tempo para perceber o que estava acontecendo, no momento em que se chocou contra o metal, uma descarga elétrica fluiu da esfera por todo o corpo do robô, soltando faíscas vermelhas e deixando um cheiro de queimado no ar quando ele caiu apagado aos meus pés.

- Tente não ser pega de surpresa da próxima vez. – 74-S havia se aproximado sem que eu percebesse. Cutucou a cabeça do robô caído com o pé. – Espero que isso tenha tornado a memória dele irrecuperável.

63-S terminou de abrir o portão e nós entramos, chegando a um galpão escuro. Desci os óculos de visão noturna para o rosto e dei uma olhada ao redor. Os óculos não estavam em seu melhor estado, revelando uma espécie de penumbra esverdeada, mas o suficiente para ver que ali era uma garagem. Havia três caminhões dispostos lado a lado e duas pequenas caminhonetes estacionadas em um canto. Portas grandes pareciam dar para os prédios que se conectavam com a garagem. Se 21-S tivesse feito a leitura certa do mapa, seriam os armazéns. Observei as caminhonetes por um instante, enquanto 21-S e 74-S avançavam para uma das portas laterais, a abrindo sem grandes dificuldades.

- Acha que consegue aumentar a abertura para uma dessas passar? – apontei.

- Certamente. Mas levará tempo.

- Não importa. – pressionei o comunicador, já me dirigindo para a porta à minha esquerda – Levem a comida para uma das caminhonetes na entrada.

Plantei mais um explosivo na frágil tranca e logo estava dentro de um dos armazéns, apinhado de caixas e mais caixas em estantes que tocavam o teto alto e se estendiam de um lado a outro do prédio. Aproximei-me de uma delas e abri o lacre da caixa, rasgando-o com a lâmina. Continha algum tipo de grãos, mas a falta de luz não me deixava especificar qual. Tampei a caixa, carregando-a com alguma dificuldade para a garagem, onde 63-S ainda lutava com o portão. Sequei o suor das mãos, vendo que os outros robôs já tinham começado a encher a traseira do veículo. Cenouras, rabanetes, ervilhas, caminhei pelas estantes, trazendo ao menos uma caixa de cada variedade que achava e logo 63-S apareceu para me ajudar. A caminhonete estava quase cheia. Voltei mais uma vez ao armazém, deixando desta vez o robô de guarda junto ao veículo. Era sorte nossa que ninguém tivesse aparecido para nos incomodar (ou assim eu preferia pensar) e eu não pretendia jogar a oportunidade fora. Mais uma caixa e poderíamos partir. Caminhei ao longo das estantes, me afastando bastante da porta até encontrar o que procurava. Batatas. Tive a impressão de ouvir um barulho e meu olhar disparou para a porta, mas nada havia ali para ser visto. Olhei ao redor, sentindo cada músculo do meu corpo tencionar, mas apenas o silêncio e a penumbra me receberam. Com a manga do casaco limpei o suor da testa e afastei meus cabelos que insistiam em grudar em minhas bochechas molhadas. O som se repetiu, dessa vez mais claro. Tem alguém aqui. E está me vendo. Pus minha arma em prontidão, me encostei contra a estante e esperei. Quando a sombra finalmente apareceu diante de mim, podia ter lhe acertado em cheio, mas a lâmina apenas vacilou entre meus dedos quando percebi que se tratava de um humano. O homem segurou meu pulso e torceu-o, fazendo com que eu soltasse o bastão, mas aproveitei para lhe acertar um chute na canela. Ele gritou, folgando o aperto e eu saí em disparada na direção da porta, tropeçando nas caixas no caminho. As luzes se acenderam e o alarme soou alto, ecoando dentro e fora do prédio. O homem me alcançou com rapidez e senti quando a lâmina atravessou o couro e o tecido, cortando fundo a carne da minha panturrilha. Cambaleei para frente, mordendo os lábios, e caí. Seus dedos se fecharam sobre o meu casaco, mas me forcei a levantar e puxei com força, deixando parte do tecido para trás enquanto dobrava em uma corrida desajeitada entre duas estantes, saltando sobre caixas caídas numa esperança de atrasar o homem. Colidi contra a porta aberta com um estrondo, sentindo minha perna latejar.

- Vão!

Os robôs me olhavam alarmados.

- O que você fez, garota? – 63-S perguntou, começando a se aproximar. Senti algo pequeno acertar minhas costas com força, como uma bala, mas no lugar de perfurar minha carne, uma onda de choque percorreu meu corpo, me sacudindo contra a porta e fazendo minha perna fraquejar sob meu peso. Algo viscoso pingou do meu nariz quando acertei o chão. Não parei para ver o que era.

- VÃO! – gritei com toda a força que meus pulmões conseguiram reunir e dessa vez eles pareceram entender.


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Notas finais do capítulo

And here we go.

— Lud



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