Mundo dos Sonhos escrita por Trezee


Capítulo 32
Pequeno engano, The History e o Milagre


Notas iniciais do capítulo

=D



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              Congelei literalmente.

              Literalmente por que além do tom assustador com o qual ele puxou o assunto, um frio intenso cortou meu corpo e fez com que me arrepiasse por inteira. Tremi e ele percebeu.

              - Está com frio? – retrucou com uma voz mais calma.

              - Um pouco. – murmurei trincando os dentes.

              - Venha, pegue minha blusa e vamos até a praça. Quero conversar com você em paz.  – o som amargurado voltou.

               Sem que eu conseguisse responder, ele tirou seu moletom e deu para mim. Peguei a blusa e não sabia o que fazer. Antes mesmo de me dar espaço para falar algo, ele já estava a alguns passos de mim. Corri até ele lutando com os braços para fazê-los entrarem nos buracos certos. Agarrei em seu braço e fui seguindo-o até um banco.

                Com um silêncio que só era interrompido pelo barulho do vento repentino, nós nos sentamos e ele fixou os olhos no chão.

                - Não se preocupe com o horário, depois inventamos algo para seu pai. – murmurou sério.

                - Por enquanto isto não é problema para mim.

                - Ótimo.

                Ele deu uma forte suspirada e ajeitou o corpo no banco. Seus olhos azuis saíram do chão e se encontraram com os meus.

                - Mel, você está muito magoada?

              - Magoada? – tentei raciocinar o mais rápido levando em consideração as últimas horas. – Você quer dizer... Magoada por causa d...

              - É exatamente por causa disto. – murmurou me cortando.

              Ele só piorou as coisas para mim. Por causa “disto” o que? Do que ele estava se referindo exatamente? A idéia mais forte que veio na minha cabeça foi a de Natali dando em cima dele. A única coisa na verdade que minha mente conseguia pensar naquele momento era isso. Era um assunto bobo que estava me incomodando e eu queria muito colocá-lo em pauta. Por mais estranho que fosse o fato de Daniel ter puxado o assunto da Natalí repentinamente, fechei os olhos para a razão e segui minhas emoções, crendo veemente que era esse o principal tópico da nossa conversa. Talvez tivesse algo maior que deveria ser lembrado, mas minhas necessidades adolescentes falaram mais alto. Tinha que ser este o motivo.

              - Olha Daniel, sobre o que aconteceu no ensaio, não foi bem sua culpa. E se você resolver tentar, dar uma chance para ver se vai para frente, vou entender, por mais que eu não queira. – murmurei triste e com tom derrotado.

              Não sei se deveria ter falado assim, sem sequer lutar, mas esse é meu jeito. Quero ver feliz quem eu... Quem eu amo.

              - Que? – sussurrou.

              - Que o que? – indaguei confusa.

              - Do que você está falando?

              - Acho que da mesma coisa que você... – respondi sem saber.

              Ele ficou um segundo me fitando com um ar sério.

              - Não sei se o que você falou foi muito coerente com o que eu tinha em mente, mas vou avaliar sua opinião, pode deixar. No momento estou aberto a ouvir tudo, até mesmo as queixas e perguntas.

              Para mim aquela conversa estava o cúmulo da confusão. Não estava entendendo mais nada, embora quisesse continuar participando dela, principalmente pelo fato de que eu não precisaria medir minhas perguntas. Ele havia acabado de me dar essa liberdade.

               - Está bem então Daniel. Vou começar. – respirei fundo. – O que você achou disto? Você vai dar uma chance? Vai entrar nesta onda? Vocês vão... marcar?

               Pela segunda vez o resto dele se retorceu confuso.

               - Mel, se você não fizer as perguntas com nexo, nunca poderei respondê-las! Tenta ser mais objetiva no assunto, tenho certeza que você se incomodou bastante com o que aconteceu. Fiquei reparando no seu jeito durante o ensaio e vi o quanto isto estava te incomodando.

               O que? O QUE?

               Gritei tão alto nos meus pensamentos que até doeu. Como assim? Ele percebeu que eu estava extremamente incomodada com a situação e ficou lá, como se nada estivesse acontecendo, curtindo uma com o meu papel de boba. Como ele pode fazer isto? Tirar proveito do meu ciúme por ele e dizer isso na minha cara sem ao menos estremecer. Essa foi a gota d’água.

               - Como pode ser tão baixo Daniel Floukin!

               - Baixo? – fez uma cara de inocente. – Por quê?

               - Oras, por ter coragem de dizer isto na minha cara!

               - Mas o que eu disse de errado?

               - Ainda pergunta? – eu devia estar quase gritando, enquanto ele sussurrava.

               Mordi meus lábios enquanto encarava seu lindo rosto todo inconformado. Estava fingindo muito bem, tentando arrancar piedade de mim, mas eu não cederia. Pelo menos não depois do que ele me dissera.

                - Mel... Você está lidando com esse assunto de uma forma tão estranha, falando coisas que eu realmente não esperava. Está tudo bem?

                Revirei os olhos e soltei um riso irônico.

                - Rá, claro que está, não consegue ver meu sorriso de satisfação? Puxa Deni, achei que pelo menos você me considerasse um pouquinho. – desabafei tristonha.

                - Melinda... Não estou entendendo metade do que você está tentando me dizer, mas uma coisa que eu quero que você saiba, é que eu te considero de mais. Você é que não percebe...

                - Então por que... – tentei terminar de falar, mas ele me cortou novamente.

                - Sem mais porquês. Sinceramente, não esperava que o assunto da minha repetência fosse te deixar tão confusa assim! – lamentou levando a mão no meu ombro.

                Meu queixo caiu por um instante. RE-PE-TÊN-CIA, soletrei mentalmente.

                Burra, egoísta, ciumenta! Como pode se esquecer do principal dos assuntos, aquele que realmente tinha importância, que deveria te deixar intrigada e confusa? É quase impossível conseguir se esquecer de algo tão importante e polêmico. Quase. Porque uma cabecinha tão oca igual a minha conseguiu esquecer facilmente.

                Fiquei torturando meu cérebro por uns instantes, fazendo as piores caras e bocas que se possa imaginar. Eu estava tão indignada com minha capacidade de esquecimento, que resolvi tirar todo o mérito que dava a minha mente infalível no quesito esquecimento. Agora eu a julgava com saldo negativo.

                - Mel, está tudo bem? – Daniel deu um empurrão de leve no meu ombro. – Ainda está aí?

                Custei a voltar, mas dei uma forte piscada e murmurei envergonhada.

                - Acho que sim...

                - Você se desligou por um segundo. Sentiu algo de estranho? – seu tom estava preocupado e isso me deixou mais constrangida.

                - Não, estou bem... – cuspi as palavras procurando um buraco para me esconder.

                - Esse assunto te abalou de verdade. Droga, não deveria ter deixado escapar. – ele parecia sentir uma raiva anormal do fato dele ter repetido.

                - Não Deni, não se preocupe com isto! Se tiver alguém que deve se lamentar aqui, sou eu. Não se culpe pelo modo que agi, fui eu quem errei.

                A feição dele ficou confusa, mas não deixei espaço para que conseguisse me interromper.

                - Esqueça tudo, vamos começar a conversa do zero.

                - Zero?

                - Sim. Podemos começar com você me explicando certinho qual o motivo da sua repetência. Não se preocupe com nada, vou entender perfeitamente se você teve dificuldades com uma matéria ou então foi muito arteiro em algum ano da sua vida. – fiz um tom compreensivo. Era o mínimo que eu podia fazer para tampar meu erro e enterrar minha vergonha.

                O breve sorriso que estava aberto no rosto dele se fechou em um instante. As sobrancelhas se franziram e o amargor voltou. Era bem difícil entender o porquê de tudo isso. Claro que ninguém ficaria feliz em ter repetido o ano, mas creio que depois de um tempo seja necessário encarar os fatos de cabeça erguida, e não ficar remoendo o passado que nem Daniel estava fazendo. Tudo estava muito estranho.

                - Sabe Mel, nem sempre as coisas acontecem da maneira mais simples e tradicional. – suspirou. – Eu daria tudo para ter repetido aquele ano por um simples desleixo meu com uma matéria, ou então por mau comportamento. Daria qualquer coisa. – sua voz baixou e ele olhou fixamente nos meus olhos. - Eu não fui retido por esses motivos. Com certeza foi algo muito mais doloroso.

                Minha cabeça se comprimiu de tal forma que comecei a me sentir mais culpada ainda de ter esquecido que este era o assunto principal. Não era só uma simples conversa que ele queria ter comigo, era um desabafo, uma história que doía dentro dele e que eu não soube perceber que estava ali. Engoli em seco e sentei direito no banco. Balancei a cabeça e tentei esquecer de tudo, para poder entregar minha atenção somente a Daniel e sua história.

               - Estou aqui Deni, pronta para te ouvir.

               O frio bateu mais forte e minha nuca se arrepiou. Apertei com força minhas mãos dentro do bolso enorme da blusa de Daniel. Perguntei-me por um instante se ele não estava com frio, mas minha resposta logo foi dada quando ele começou a falar sem mover um músculo, sério, firme e concentrado. A mim, restou apenas encará-lo e compreender suas palavras.  

               - Foi na 6ª série. Na verdade, foi na última semana de aula da 6ª série. Meu pai havia discutido feio com minha avó, tão feio que ela resolveu mudar de cidade. E eu adorava ela, como se fosse minha segunda mãe. Mas o pior foi que nos proibiram de visitá-la e isso doeu muito.

               Foquei minha atenção no “nos proibiram” e fiz uma cara de confusa.

              - É exatamente isto Mel, não se surpreenda tanto, mas eu tenho uma irmã. Sofia...

               Fiquei boquiaberta com suas palavras, mas não fiz pergunta alguma e deixei que ele continuasse.

               - Sofia ia todas as noites no meu quarto e falava que estava com saudades da vovó. Ela deitava na minha cama e as vezes chorava. Eu queria chorar também, mas era o irmão mais velho e não podia demonstrar fraqueza. Era uma tolice minha, mas sempre achei que a tolice maior era a dos meus pais que nos proibiam de ver a nossa avó.

               “Um dia, meus pais foram viajar e nos deixaram com uma babá. Eu tinha doze anos e Sofia seis. Já me sentia adulto o suficiente para não precisar de babá e tomar conta da minha irmã sozinho. Adulto o suficiente para fazer o maior erro da minha vida. Não agüentava mais ver minha irmã chorando de saudades e sofrendo por um problema que não era nosso. Então, depois da escola, procurei por todo o dinheiro que eu estava juntando e consegui uma quantia aceitável. Eu era espertinho e falei para a babá que ia na casa do meu vizinho jogar vídeo game. Na verdade fui e ela mesmo me levou até a casa dele, só que quando ela foi embora, fugi com a ajuda do meu amigo e fui para a rodoviária.

                “Eu, com doze anos, passava por mais velho fácil. Fui então, até uma Cia. de viação e observei com cautela qual poderia ser o vendedor menos exigente. Decidi que era uma moça que mascava chiclete e estava mexendo no celular, com um ar de estar saturada e enjoada do trabalho. Escolhi minha vítima e agi. Fui até ela e pedi duas passagens para a cidade da minha avó. O certo era ela ter perguntado minha idade ou então no mínimo meu nome, mas não foi isso que ela fez. Somente me perguntou o dia e o horário que eu desejava efetuar a viagem e imprimiu dois papeizinhos. Só.”

                “Hoje, analisando a situação, daria tudo para ela ter me barrado, dado uma de chata e perguntado a minha idade, mas como ela errou, eu também errei e infelizmente tenho que conviver com isso.”

                 “Dois dias depois da minha compra e um dia antes da volta programada dos meus pais, era o dia da minha viagem com Sofia. Eu já tinha tudo esquematizado. Era um plano perfeito que começaria de manhã, no horário da entrada da escola e terminaria de noite, quando o ônibus voltasse para Bráscuba. Ah! Nessa época eu ainda morava em Bráscuba.”

                  Daniel sorriu para si e admirou o nada. Fixou os olhos em um ponto inexistente a meu ver e continuou.

                  - Você deve estar me achando uma peste, mas eu até que era bonzinho. Iria ligar para a babá quando chegasse na casa da minha avó. Não sou tão desleixado ao ponto de deixar a pobre moça se descabelando. Foi como eu disse, era um plano todo pensado, nada ficaria para trás para atrapalhar.               

                 “Eu e Sofia fomos para a escola, ou melhor, fomos até o portão da escola, pois de lá, não sei nem como conseguimos fugir e pegar um ônibus para a rodoviária.

 Chegamos lá um tanto que cedo, já que nosso ônibus partia às 8h30. Ainda tínhamos uma hora de descanso. Sofia se comportou muito bem durante a nossa espera. Não reclamou, não me encheu o saco, só ficou lá comigo, de mãozinhas dadas e sorrindo para tudo o que via de diferente. Acho que ela nunca havia entrado em uma rodoviária. A filhinha caçula tinha um mimo em especial, nunca precisou andar de ônibus. Mas é claro que sempre tem um irmão mais velho para estragar a redoma de vidro que os pais criaram com tanto carinho. Eu estava a fazendo viver uma aventura em plenos seis anos de idade. Ela estava me achando um máximo, principalmente por eu ser seu herói, já que a levaria para ver a vovó.”

                 “Essa foi a imagem que ela teve de mim.”

                  Ele engoliu seco e duro. Suas mãos se fecharam em punho e ele espremeu com força se dedão. Fiquei com medo de ele quebrar um dedo sem querer, mas julgando pelo tom da historio e por sua concentração inabalável, ele nem sentiria esse detalhe.

                  - O horário chegou e nosso ônibus já estava na plataforma. Expliquei certinho o que Sofia deveria fazer e ela me obedeceu, seguindo tudo o que eu fizera. Esperei até um adulto que tinha cara de pai ou de mãe embarcar. Avistei logo uma mulher de olhos azuis que serviria perfeitamente. Ela foi caminhando até a porta e eu me coloquei ao lado dela. Puxei Sofia junto de mim e fui seguindo a sombra da mulher dos olhos azuis por todo o caminho, como se estivesse junto a ela. Na hora de entregar o passe ao cobrador, ainda fiz uma cena, como se estivesse conversando com a mulher. Falei qualquer coisa para ela e ela me olhou curiosa. Soltei uma gargalhada imensa e grunhi algumas palavras a mais. Foi o suficiente para o cobrador nem notar nossa presença e nos deixar entrar no ônibus sem fazer uma perguntinha sequer. Pronto, estávamos dentro e nada poderia mudar isto.

                 “Os acentos eram 23 e 24, os dois juntos. Pelo que havia entendido, seria mais ou menos uma hora de viagem. Sofia teimou tanto que queria ir na janelinha que acabei por ceder a esse capricho. Eu ainda estava desligado, imaginando como consegui ser esperto o suficiente para driblar todos os obstáculos que poderiam impedir a minha façanha. Soava engraçado para mim o fato de ninguém ter me barrado, ninguém ter perguntado meu nome ou minha idade. Ninguém ter me impedido e ter sido tão fácil fazer a coisa errada. Até hoje me pergunto o por que.”

                 Eu escutava suas palavras com atenção, a maior que eu poderia aplicar ao assunto. Observava ao mesmo tempo cada gesto, cada compressão do seu corpo, cada frase que parecia doer.

                  - Na metade do caminho, Sofia já estava debruçada na janela, com os olhinhos fechados e tranqüilos. O ônibus inteiro estava quieto e até mesmo eu que estava ansioso, não conseguia segurar por muito tempo as pálpebras. Era uma manhã calma e gostosa. Estava bem ensolarado, um dia claro e brilhante. Poderia se dizer que tudo estava quase perfeito. Mas lembro-me bem de como o claro da luz foi ficando intenso como se a luz do Sol já não bastasse. E aquela luz forte aumentou e junto a ela um barulho tão alto soou que fez todos do ônibus darem um pulo dos seus cochilos. Minha reação ao abrir os olhos foi de abraçar Sofia com meus braços, mas já era tarde e nada mais iria adiantar. A buzina soou forte até a hora em que eu não sentia mais nada além de uma dor insuportável que me esmagava e comprimia todas as minhas tentativas de respirar. O ônibus havia batido...”

                    Murmurou por final. A voz de Daniel falhou bruscamente e da sua testa vi escorrer uma gotinha de suor. Calor naquele frio seria praticamente impossível de se sentir. Aquilo era puro nervosismo. Eu queria intervir, mas não sabia como.

                     Penso que ele esperou pela minha intervenção, mas fiquei com tanto medo de piorar a situação que fiquei calada, muda e pasma. Não esperava ouvir aquilo de Daniel. Nunca pude imaginar que ele também já havia passado por uma situação assim.

                    Ele não estava muito preso na minha surpresa. Todo seu eu estava focado na história em que contava. Na vida em que narrava. A apreensão continuava em seu corpo e ele não perdeu o foco por um segundo. A dor também ainda estava presente e agora bem mais intensa. Doeu até em mim.

                    - O acidente foi seriíssimo. Um outro ônibus que vinha na outra mão bateu no nosso. Os dois motoristas disseram que viram um vulto preto passando na frente dos ônibus, mas na época isso foi considerado detalhe. – ele sorriu ironicamente com os olhos vermelhos. Sinceramente não entendi o motivo.

                    “O outro ônibus bateu no nosso bem do lado onde eu e Sofia estávamos sentados. Não consegui ter tempo de raciocinar nada. Sabe aquela idéia típica que todos possuem, sempre achando que nunca as coisas acontecem consigo mesmo, só com os outros? Pois então, eu tinha essa idéia. Para mim, eu nunca iria sofrer um acidente, eu nunca iria ficar gravemente doente ou ferido. ‘Nunca’ era a palavra mais legal que eu tinha em mente. Mas como pode ver, o nunca não dura para sempre. O nunca sempre acaba.”

                     Ele sorriu amargamente, ao mesmo tempo em que uma lágrima escorreu pelo seu rosto.  

                      - Eu sei que era idiota pensar assim, mas eu só tinha 12 anos e era assim que pessoas de 12 anos pensavam. Mas no momento em que eu vi aquele ônibus se aproximando do nosso sem possibilidades de parar, senti medo e pensei que iria morrer. O ‘nunca’ com aquele sentido que eu sempre imaginava fugiu da minha mente e voltou com mais força e com um sentido novo. Eu poderia nunca mais ver minha família, nunca mais brincar com meus amigos, nunca mais ter um futuro. Foi nessa fração de segundos que eu mais temi pensar na palavra ‘nunca’. E foi assim que aconteceu. Não deu tempo de pensar muito, na verdade não deu praticamente tempo de pensar em nada. Mal pisquei e a lateral do ônibus já estava sendo rasgada pela frente do outro, bem ali onde estávamos sentados. Tentei gritar, mas um ferro prensou meu corpo com força e eu senti meu tórax ser esmagado. Foi a pior sensação do mundo. Tentei fazer o ar entrar pelo meu nariz, mas era impossível. Doía de mais. Estava tudo escuro, mas creio que era porque meus olhos estavam fechados. Não durou mais do que poucos segundos todo o barulho e a agitação. Também se durou, eu não ouvi, já que não levou muito tempo para a dor se tornar extremamente insuportável ao ponto de eu não agüentar mais.”

                    Eu estava pasma com cada palavra que rasgava meus ouvidos. Estava perplexa, sem palavras, sem reação. Meu olho começou a encher de lágrimas também e ele percebeu. Foi a primeira vez em toda a conversa que eu acho que ele saiu do transe em que se encontrava. Segurou minha mão com força e me lançou um sorriso doido. Retribui igualmente mordendo os lábios e tentando ser forte para não chorar.

              - Quer que eu pare? – murmurou com uma voz rouca que se arrastou.

              - Só se isso te fizer melhor...

              - Então não. – suspirou. - Preciso falar com alguém. Esse é um assunto que guardo comigo desde quando aconteceu. Nunca falei para ninguém e acho que chegou a hora de dizer adeus para esse ‘nunca’ também. – ele apertou minha mão com força.

              - Estou aqui... – confirmei.

              Ele sorriu com mais cautela e voltou novamente para sua postura séria e dolorida.

               - Depois de a dor me consumir, achei que havia morrido. Sei que é estranho falar assim e que a maioria das pessoas normais não lembraria de mais nada a partir deste ponto, mas eu lembrava e lembro de tudo até hoje. Nitidamente. Acho que essa é a pior parte. Acho não, tenho certeza. Absolutamente essa foi a pior parte de tudo o que me aconteceu. Ficar inconsciente e lembrar do que se passa na inconsciência é tortuoso de mais. – seus olhos se fixaram novamente no nada. Parecia que um filme rodava em sua mente. - Acho que não é o momento certo para falar disso. – suspirou. - Desculpa Mel, mas tente entender que não posso te falar sobre isso. – ele roçou o polegar no dorso da minha mão. – Sei que é horrível começar um assunto e cortá-lo no meio, mas achei que seria injusto não comentar nada sobre essa parte, já que a julgo como a mais importante.

               Pisquei confusa e sem entender o que poderia ter de mais nesta parte da história. De fato ele só me deixou mais curiosa. Seria cruel da minha parte perguntar sobre esse assunto, principalmente agora, que ele havia acabado de falar que achava o assunto horrível. Mas não pensei nisto na hora em que lancei minha pergunta.

              - Mas por que Deni, não confia em mim? – fiquei péssima após ouvir minhas próprias palavras. Não queria e não devia dizer isso, mas não deu tempo de morder minha língua.

              - Não Mel, por favor, não leve para esse lado. Não quero que pense isso, confio de mais em você. Tanto que estou te contando tudo isso. Só lhe peço... Não, não, lhe imploro que me entenda. Não vamos falar desse assunto, ele está na lista dos proibidos! – disse bem claro.

             Ouvi a bronca de cabeça baixa, já esperando por ela. Foi ridícula a minha atitude. Senti-me pior ainda ao ter de ouvi-lo implorando pela minha compreensão. Ainda estava um pouco perdida nesse meu julgamento quando percebi que a cabeça dele havia voltado a se baixar e novamente os olhos haviam ficado vermelhos. Só então me dei conta que a história estava longe de acabar e que a parte ruim ainda nem começara.

             - Sabe, foi difícil encarar tudo o que eu passei. Diria que foi insuportável. Você não vai me entender, eu sei. Pode achar ridículas e exageradas minhas frases e minhas palavras, isso é normal para qualquer um que me ouça falar assim de um acidente. Ora, eles ocorrem a toda hora. Mas duvido que muita gente tenha passado pelo o que eu passei.

            Percebi que não estava tudo normal, nem de longe ele havia passado por alguma situação comum. Pois eu sabia muito bem como era o resultado de uma situação comum e não era extremamente tortuoso assim.

            - Como já disse, o acidente aconteceu no final da 6ª série. Depois que eu fechei os olhos quando não suportei a dor, só voltei a abri-los muito tempo depois. Fiquei em coma por cinco meses e meio. Foi horrível, já que eu sentia, lembrava e sabia da minha inconsciência, mas não podia fazer nada. – ele torceu os punhos. Estava com raiva e eu não sabia o motivo. Era um assunto proibido.

                 “Quando acordei, as estimativas eram de muitas seqüelas, tanto físicas como cerebrais. Eu havia quebrado várias partes do corpo, mas minha recuperação no coma havia sido inacreditável e visivelmente não havia ficado nenhuma cicatriz que assustasse. Mas ainda havia o medo de como meu corpo reagiria aos traumas e as pancadas. Meu cérebro então era o que mais preocupava. Eu havia batido a cabeça, mas como estava inconsciente, não dava para se saber no que isso afetaria. A certeza era quase que absoluta de que alguma seqüela no mínimo eu teria. Mas eles se enganaram”

                “Abri meus olhos e não sentia nada. Era como seu eu estivesse dormindo e acordasse, foi uma sensação inesquecível. Várias pessoas que eu não fazia a mínima de quem fossem, vieram me examinar, fazer perguntas, tirar curiosidades. Meu caso pareceu curioso para o hospital, já que eu havia saído ileso do acidente. Na verdade eu havia, estava bem, não sentia dor, meu cérebro funcionava. Tudo estava perfeito, mas eu nunca mais seria o mesmo.”

                 Ele deu um logo suspiro e baixou a cabeça.

                 - Por quê? – murmurei.

                 - É difícil de explicar, nem sei se consigo. Mas em suma, posso dizer que muitas coisas aconteceram na mina cabeça nestes cinco meses e meios. Coisas que ninguém pode imaginar, embora tenham me afetado de mais.

                 Fiz uma cara de confusa. Talvez nem tenha mudado o rosto que já me acompanhava por toda a história. Tudo estava tão confuso que eu tinha sede por explicações, então deixei que ele continuasse.

                 - Mel, eu fiquei louco... – murmurou por fim.

                 Meus olhos se arregalaram ao máximo. Ele estava sendo irônico no meio de toda essa situação tensa?

                 - Sim. Eu já estava tonto, atordoado com tudo o que passara durante e após o acidente, mas o que me levou ao estopim da minha doidice foi a notícia que algum infeliz me deu horas depois de eu ter acordado. – soluçou as palavras com tom amargurado.

                 Ele começou a ranger os dentes, apertar uma mão contra a outra e balançar a cabeça. Parecia que essa lembrança o doía muito, mas que ele teria que conviver com ela para sempre. As lágrimas começaram a pingar e eu comecei a ficar mais preocupada ainda.

                - Ela não... havia resistido... – cuspiu palavra por palavra, como se elas rasgassem sua boca.

                Agora foi minha vez de deixar que a lágrima escorresse.

                Ficamos em silêncio por um segundo. Já estava escuro e não dava para ver muita coisa ao nosso redor. Também mesmo se desse para ver, eu não conseguiria raciocinar mais nada.

                 - Deni...

                 - E foi minha culpa...

                 - Não, não pense assim. – murmurei.

                 - Foi... Ela morreu por minha culpa, tudo isso aconteceu comigo por minha culpa e agora eu tenho que continuar arcando com essas consequências por minha culpa! Bem feito para mim. Deve ser castigo mesmo. – explodiu falando consigo mesmo.

                 - Continuar arcando com o quê Deni? Está ficando louco? – falei sem entender nada.

                 Mas minha pergunta parece que o calou. Ele fez uma cara espantada e mordeu o lábio. Ergueu as sobrancelhas e procurou por uma expressão, mas o melhor que conseguiu fazer foi soltar uns gaguejos.

                - Com nada Mel, nada...

                Era o momento perfeito para pegá-lo com uma nova pergunta, mas dessa vez minha cabeça raciocinou e se tocou que poderia ser o momento perfeito, porém não a hora certa. Seria cruel torturá-lo com mais perguntas. Pelo menos agora.

                - Está bem. – falei observando seu estado de choque. – Mas, por favor, tente não se culpar. Você só queria fazer algo bom.

                - Algo bom que só trouxe resultados ruins...

                “Além de Sofia e da minha sanidade, esse acidente também me custou três anos de vida. O primeiro foi porque eu havia ficado praticamente um semestre no hospital e não poderia retomar a escola. No outro semestre fiquei ainda de observação, já que ninguém acreditava que eu havia saído ileso. Eles pareciam procurar algum defeito em mim, sabe? O segundo e o terceiro ano foram praticamente iguais. Eu não conseguia raciocinar, eu estava louco, como já te disse. Era impossível se acostumar com o que havia me acontecido. Às vezes eu preferia ter morrido...”.

               Dei um tapa no seu ombro quando o ouvi dizer isso, fiquei inconformada.

               - Está louco Daniel, você recebeu uma benção saindo bem do acidente e teve a coragem de pensar nisto?

               - Benção? A palavra melhor que eu poderia encontrar era fardo. Exatamente isso que eu sentia, que tudo não se passava de um fardo. Eu só conseguia ir à escola e ficar lá, ouvindo o professor, mas nada entrava na minha cabeça. As notas que tirei foram as mais básicas e nem sei como conseguia tirá-las. Passei pela sétima série e pela oitava como se fosse um zumbi. Acho que não abri minha boca uma vez sequer. Meus amigos estavam preocupados e tentavam me ajudar, mas eu não correspondia à ajuda alguma. Meus pais piraram e tentaram me socorrer por todos os lados. Acho que passei por uns dez psicólogos e psiquiatras. Mas nada adiantou. Eu estava louco, confuso, querendo explodir por dentro, só que todo esse sentimento não se transparecia, ficava incubado dentro de mim. E ninguém conseguia ou então poderia me entender...

                 Ele baixou os olhos vazios e inexpressíveis. Fiquei encarando-o por um instante sem palavras. Era realmente inacreditável tudo o que eu ouvira naquele instante. Jamais imaginaria coisa assim. Ou talvez até imaginasse. Uma lembrança correu até minha mente, tão depressa que não consegui contê-la.

                 - Eu já passei por um acidente também. – murmurei tentando me lembrar daquele dia.

                 Ele me olhou espantado.

                 - Acidente, você?

                 Tentei disfarçar meu rosto confuso e continuei a falar.

                 - Foi um acidente de ônibus também, no final da minha quinta série. Só que não chegou a ser tão horrível para mim, quanto o seu acidente foi para você. Na verdade eu não me lembro de praticamente nada. Tudo o que sei foi porque minha mãe me contou...

                 As sobrancelhas de Deni se franziram e as minhas se curvaram. Ele pareceu dar uma aprumada e isso me deixou mais aliviada.

                 - Você se importa em me contar a sua história? – perguntou com o tom de voz que sempre tivera, calmo.

                 - Claro que não me importo, até porque pelo que sei não aconteceu muita coisa.

                 “Eu e minha mãe estávamos voltando de uma cidade que eu não me lembro o nome – franzi a testa tentando lembrar, mas foi inútil. – e ainda era de manhã. Lembro que eu entrei no ônibus e minha mãe me colocou sentada em um acento, mas ela teve que se sentar em outro lugar. Disse-me que eu já estava grandinha e que teria que me comportar bem sozinha. Durante a viagem, não consigo lembrar dos detalhes, só sei que uma hora eu vi uma luz bem forte e tive que fechar os olhos para protegê-los. Depois disso não vi e não senti mais nada.”

                   Ergui meus olhos para ver a reação de Deni, mas seu rosto estava indecifrável. Esperei um segundo para ver se ele iria falar alguma coisa, mas não falou nada. Então suspirei fundo e resolvi concluir.

                   - Acordei no hospital, como você. Só que eu só havia estado ali por dois dias. Fiquei mais um dia para completar o período de observação e já recebi alta. Nenhum médico me falou exatamente o que havia se passado, na verdade eu não perguntei. Tudo que eles precisavam falar eles iam direto a minha mãe e eu só ficava os observando sob a penumbra da cortina que dividia meu quarto com o vizinho. – falei sem respirar.

                    Só então ele me encarou realmente. Seus olhos estavam ardidos e um pouco confusos.

                    - E você nunca perguntou a sua mãe o que aconteceu? – indagou não tão confuso, mas sim um pouco indignado.

                    - Perguntei. E ela me falou que eu não tinha sofrido graves contusões. O único problema era que eu havia ficado inconsciente por um bom tempo e isso precisava de observação. Mas que em resumo eu havia saído bem do acidente. – comentei tão rápido quanto da outra vez. – Mas o que realmente me deixou curiosa no meio disso tudo, é que minha mãe fala desse assunto sempre com um nervosismo anormal na voz. Não falamos muito sobre isso, na verdade, raramente comentamos o que se passou, só que ela parece ficar tão perturbada quando ouso retomar algumas perguntas que desisti de fazê-las por causa disto. – mirei meu olhar no nada e franzi os cenhos.

                    - Estranho... – murmurou Deni.

                    - Pois é.

                    Penso que iria falar alguma outra coisa, só que meus pensamentos foram interrompidos quando algo no meu bolso começou a tremar e uma musiquinha irritante cortou meu ouvido.      

                    - Meu celular. – sussurrei procurando-o no meu bolso.

                    - Claro.

                    Peguei o aparelhinho prata e olhei no visor. “Pai”. Atendi curiosa.

                    - Pai?

                    - Mel, onde você está? – perguntou com voz um pouco rouca do outro da linha.

                    Custei um pouco a responder, mas evitei demorar mais para não levantar suspeitas.

                    - No ensaio da banda do Daniel.

                    - Ainda?

                    - É pai, ainda.

                    - O que eles tanto tocam? – perguntou com voz implicante.

                    - Oras pai, pare de ser tão resmungão. – ri tentando descontraí-lo um pouquinho. – Estou bem, não é isso que importa? Até porque daqui a pouco já vou estar em casa, não vai demorar muito, okay?

                     - Certo Melinda, mas não demore, hein? – resmungou novamente.

                     - Claro, te amo pai.

                   - Fica com Deus, até daqui a pouco. – falou por fim e desligou.

                   Fechei meu celular que fez um “clap” no ar. Antes de voltá-lo ao bolso olhei para ver que horas eram e realmente já estava bem tarde.

                   - Deni, meu pai não estava sendo implicante, já está tarde mesmo! – exclamei boba.      

                   Ele sorriu e passou a mão no meu cabelo. Eu gelei.

                   - Calma sua bobinha, eu te acompanho até sua casa. Logo vai estar entregue.

                   - Uhun... – foi o melhor que consegui fazer.

                   Ele ficou de pé e eu o acompanhei. Fomos caminhando devagar e sem muitas palavras. Eu estava perdida nos meus pensamentos, como sempre. Ele não deveria estar muito longe disto. Realmente havia muita coisa a ser pensada, coisas que eu nunca imaginaria que teria de pensar. Foi muito doloroso ouvir as palavras de Deni, tudo o que ele passou ainda tão jovem e o que aconteceu com a pequena Sofia. Foi então que resolvi matar minha curiosidade.

                   - Deni – cortei o silêncio. – Espero que isso não o machuque, mas você teria uma foto de Sofia para me mostrar?

                   Ele hesitou um pouco e eu fiquei com medo, mas logo sorriu para mim e assentiu.

                   - Não me dói lembrar dela, na verdade até gosto de lembrar do seu rostinho, dos seus olhos e do seu jeito. O que me dói é saber como tudo isso acabou, você me entende?

                   - Entendo...

                   - Gosto de encarar como se ela não tivesse... ido, sabe? Talvez por isso eu não fale muito dela, porque se eu falar vão me perguntar onde ela está, vão querer conhecê-la e eu terei que falar que ela não está mais aqui. – suspirou.  – O pior de tudo é que as perguntas nunca param por aí, sempre querem saber o que aconteceu e esse assunto, como já te disse, me irrita de mais.             

                   Fiquei em silêncio por um momento. Ainda faltavam alguns quarteirões para chegarmos. Nossas casas são perto entre aspas. De carro demora uns cinco minutos, já de a pé um pouco mais.

                   - Deni, e depois? Você me falou que ficou louco... Isso foi só modo de dizer, não é?

                   Ele sorriu com um tom sarcástico e demorou um pouco para falar. Fiquei encarando seus olhos azuis, um tanto que ansiosa.

                   - Não foi só modo de dizer. Lembra, eu perdi dois anos da minha vida em psicólogos e psiquiatras...

                   - Eu-u sei, mas – recuperei a voz um pouco gaga. – mas, isso não quer dizer que você estava louco de fato.

                   - É, e foi exatamente isso que os médicos falaram. Meu cérebro estava perfeito, eu ainda conseguia aprender e me comunicar de certa forma, mas era como se um robô agisse por mim. Não considero que aqueles dois anos valeram como dois anos de vida.

                   Ele suspirou fundo, custou um pouco a continuar, mas continuou.

                   - Eu não sentia nada, minha vontade era de não estar ali, na minha casa, no meu mundo. Eu era um zumbi que ninguém conseguia curar. Todos falavam que era trauma, mas não era um simples trauma. Era um acontecimento muito maior, a mudança da minha vida.

                   “Acabei minha oitava série assim. Não fui a minha viagem e nem a minha festa de formatura. Às vezes via minha mãe chorando no quarto e rezando para eu voltar a ser... eu. Só que eu pretendia não voltar a ter uma vida, já que não sabia se poderia vivê-la como queria.”

           Achei as palavras de Deni muito fortes. Ele falava sempre com tom ríspido e amargurado. Era estranho...

           - Nas férias, antes do primeiro colegial, meu pai entrou no meu quarto e me encontrou deitado, com as janelas fechadas, de moleton e gorro, sendo que era verão e todos meus amigos estavam jogando futebol. É, até isso eu havia largado.

           “Bem, acho que esse dia ele não agüentou mais. Eu nunca havia visto meu pai derramar uma gota de lágrima, mas naquele dia ele chorou. Sentou na beira da minha cama e chorou muito. Foi impressionante e extremamente marcante. Penso que o que mais marcou, foi que ele fez tudo isso mudo. Não falou uma palavra sequer desde a hora em que havia entrado no meu quarto. Ele deve ter ficado quase que uma hora assim e eu nem havia me movido, simplesmente não sentia nada, era insensível de mais.”

            “Depois de um tempo, ele ficou de pé e se colocou ao meu lado. Enxugou as lágrimas e falou as palavras que mais me doeram ouvir: ‘Filho, há três anos, aquele acidente levou embora um de meus tesouros, minha princesinha linda. E eu sei que a grande culpa disso foi minha e da minha ignorância. Dói muito pensar nisso, chega a me matar um pouco a cada dia. Agora, o que vai me matar de vez, é ver a vida do meu outro tesouro indo embora sem sentido... Não vou aguentar mais te ver assim, respirando e com o coração batendo, mas sem viver, sem ter gosto por essa dádiva. E filho, me ouça bem, sua mãe também não vai aguentar, mas eu sei que você agüenta. Então eu te suplico, viva a sua vida por nós. Esqueça seja lá o que for que te atormenta, faça esse esforço, por nos amar. Eu sei que é sua vida e você que escolhe o que faz dela, mas pense nisso, todos estamos aqui te esperando de volta, seja humano o suficiente para reagir...’”.

              Daniel arregalou os olhos e parou no meio do caminho. Fechou a mão em punhos e baixou a cabeça. A rua não estava tão movimentada, então acho que ninguém percebeu quando seu corpo começou a tremer e ele a chorar do nada.

              - Deni... – murmurei, parando ao seu lado confusa.

              Eu fiquei sem reação, mas pensei rápido o suficiente para chegar mais perto dele e lhe dar um forte abraço. Não esperava por isso, mas Daniel rapidamente passou os braços dele por detrás das minhas costas e abraçou forte, chorando nesta mesma intensidade.

               - E-le, man-dou eu ser ma-is... – custou para as palavras quebradas e entre soluços de Deni saírem da sua boca. – Mais Humano... – desabou no choro novamente.

               Era um choro forte, diferente. Tinha raiva, angustia e muita dor. Não era daqueles choros desesperados ou até mesmo com uma emoção de lembranças. Era duro e preso, vinha de soluços em soluços, como se Deni não quisesse estar chorando, e sim tentando reprimir esse choro. Mas creio que tudo o que ele comprimia dentro dele, encontrou naquele momento a hora certa para sair. E eu senti que devia estar do seu lado para socorrê-lo dele mesmo.                  

              Ficamos uns segundos plantados no meio da rua, abraçados. Se alguém reparou ou achou estranho, que se dane. Eu não estava apta para me preocupar com esses detalhes. O abraço de urso estava apertando minhas costelas ao ponto de machucá-las, mas eu não ia me render, não iria sair dali até que ele estivesse pronto.

              O choro freneticamente estranho foi melhorando e cessando. Aos poucos os braços dele foram afrouxando até que eu já conseguisse respirar melhor. Não demorou muito para ele já estar de pé ao meu lado, roxo.

              - Desculpe... – murmurou sem ritmo.

              - Desculpe por quê?

            - Por quase ter te esmagado e ter te deixado preocupada...

            Balancei a cabeça e sorri.

            - Às vezes a gente precisa ter nossos cinco minutos de loucura pra conseguir encarar a vida. – tentei descontrair.

            O canto de sua boca se ergueu um pouco. Poderia ser um sorriso, mas vi que não era no momento em que ele tornou a falar.

            - É, acho que isso é verdade. Depois que meu pai falou comigo, me mandou ser... mais humano, fiz o que ele me pediu. Fui mais humano, coisa que eu achava que não poderia mais acontecer...

            Eu franzi os cenhos. Minha cabeça estava um pouco lerda para captar todas as metáforas que Daniel estava usando nas nossas conversas. ‘Ser mais humano’, era uma delas.

             - Então depois dessa conversa você voltou a ser o Daniel Floukin que eu conheço?

             Novamente o canto de sua boca ergueu, só que desta vez era de fato um sorriso.

             - Em partes. Garanto que não sou mais o Daniel que era antes. Estou muito mais fechado e isso não é difícil de reparar. – ele me encarou com os olhos azuis, com um pouco mais de vida. – Mas estou tentando de alguma forma aproveitar o que me restou...

             Sua última frase fez com que meus tornozelos tremessem. Era como se um desastre houvesse acontecido e estivesse preste a voltar. Daniel parecia viver sabendo o que aconteceria devido ao que já aconteceu e isso realmente me dava medo. Tentei esconder meu espanto ao máximo, mas sou péssima nisso.

              - Eu sei que às vezes eu te assusto, faço você ficar intrigada e morta de curiosidade, mas só peço que você me entenda e tenha paciência. Não se esqueça do nosso trato, ele ainda existe.

              Olhei assustada para ele.

              - Sim Mel, sei muito bem que você não se esqueceu. Se eu te magoar novamente, não vou me perdoar. Olhe só para nós dois. Será muita ingratidão da minha parte se eu a fizer chorar novamente. Então se isso acontecer, não vou pensar duas vezes antes de fazer o melhor para você.

              - E o melhor para mim vai ser nos afastarmos...?

              - Infelizmente.

              - Está bem, porque não vamos deixar que isso aconteça, okay?

              - Fechado. – ele sorriu e isso me deixou feliz.


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Notas finais do capítulo

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