Mundo dos Sonhos escrita por Trezee


Capítulo 29
Vez da Joana e promessas sem desculpas


Notas iniciais do capítulo

Uhhhhhh



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        Entrei em casa e corri para meu quarto. Não queria nem saber se havia alguém em casa, isso não me importava mais. Lancei-me a cama, como sempre, e vaguei em minha mente. Se ele não se lembrasse da promessa que me fizera um dia, eu me lembrava muito bem. Disse que nunca mais ia se exaltar comigo, me fazer chorar novamente. Mas ele quebrou a promessa, já que eu estava chorando. Era incrível minha sensibilidade com as palavras ditas por Floukin. Se fosse qualquer outra pessoa eu não estaria chorando igual um bebê, imagine! Eu estaria naquele ônibus ainda retrucando com boas palavras qualquer ofensa. Mas com ele tudo era diferente, eu me sentia insignificante perto de seus atos. 

        Como pode uma pessoa mudar assim, da água para o vinho de repente? Ele, incrivelmente, conseguia. Sempre comigo, uma pessoa que está pronta para ajudá-lo para o que der e vier, uma pessoa que gosta tanto dele. Mas ele não. Ele não deveria gostar de mim, se não, nunca iria me magoar de tal forma. Não iria me fazer chorar, sentir essa dor, esse aperto no peito. Ele já disse que gostava de mim, mas umas palavras anulam outras e é isso que ele está conseguindo fazer, ser anulado.

         Eu não consegui me concentrar em outra coisa a não ser nesses pensamentos que me perseguiam. Não conseguia responder nem as perguntas mais fáceis que vinham na minha mente. Eu estou com bronca de Daniel? Vou dar uma segunda chance para ele? Eu ainda gosto dele?

         “Infelizmente sim”, respondi a última pergunta. Era por isso que eu me torturava mais e mais. Independente do que ele me fizesse, da dor que me causasse, eu ainda gostava dele e não conseguia parar. E isso me deixava com raiva, vem daí a parte do “infelizmente”. Eu não conseguia me controlar, sentia que eu era pequena, insignificante perto dos meus pensamentos. A tempestade em copo d’água que sempre se formava quando eu ficava triste com Floukin era um tremendo de um exagero, embora essa sensação ruim que subia não fosse simplesmente uma rebeldia adolescente, e sim um sentimento inexplicável, que naquele momento eu julgava besta, idiota e mau, muito mau por me fazer sofrer. A solução mais rápida então que encontrei para resolver essa minha frustração, pelo menos por hora, era de caçar alguém para me distrair.

         Gritei para ver se minha mãe estava em casa, mas quem respondeu foi meu pai.

         - Pai? O que você está fazendo em casa? – perguntei assustada.

       - Oras, você já se esqueceu deste pequeno detalhe? – disse apontando para a perna.

       - Mas você trabalha sentado... Não é?

       - Sim, mas recebi uma semana de licença. Sabe como é, acham que eu preciso me recuperar dos machucados, do trauma. Não há quem não se espante com o fato de que eu fui parar na UTI... Isso deve sensibilizar as pessoas! – riu.

       - Pai, não brinque com uma coisa dessas, você teve muita sorte! Poderia muito bem estar naquele hospital ainda...

       - Mas não estou. Estou em casa curtindo minha primeira licença desde que... – ele parou subitamente.

       - Desde que...?

       - Bem... – ele se começou a se levantar da cama. – Desde... Ai minha perna! Ai, ai! – ele tentou se apoiar na muleta, mas escorregou caiu da cama.

       - Pai! – saltei ao seu lado e tentei levantá-lo. – Tudo bem? – apalpei seu gesso para ver se estava no lugar.

       - Esta sim, mas não é essa perna que está doendo, é a outra! Corre na cozinha e traga a bolsa de gelo! – disse gemendo.

       Fiz o que ele pediu. Desci as escadas, abri o frízer e desinformei uma fôrma de gelo. Procurei pela tal bolsa de gelo que meu pai falou, mas não encontrei, então joguei todas as pedrinhas em uma sacola mesmo e embrulhei em uma toalha.

        - Pronto pai, pode colocar! – dei para ele os gelos e ele os colocou no joelho.

        - Acho que bati na quina da cama quando cai. – disse olhando para a perna.

        - Realmente está um pouco inchado. Ai pai, só faltava essa! Você ficar com as duas pernas imobilizadas!

        - Que nada, foi uma batida de leve, eu que sou escandaloso! E você, não tem nada de bom para fazer não? Chame uma amiga para vir em casa, se divirta um pouco! Essa semana foi muito tensa, você precisa relaxar.

        - Estou bem pai, não se preocupe. E outra, não dá para eu chamar uma amiga aqui em casa de repente, elas não moram aqui do lado. Bráscuba... Bráscuba... – murmurei.

        - Isso é chato, não é? Na minha época todos moravam bem perto, vivíamos brincando um nas casas dos outros. Era um bom tempo. – ele se calou por uns instantes. Na certa estava tendo várias lembranças. – Mas, não há ninguém que more aqui em Paineiras?

         Por que ele precisava fazer essa pergunta, tudo estava indo tão bem, eu já havia conseguido esquecer bons assuntos, mas meu pai cutucou a ferida entre aberta.

        - Então Mel, há alguém?

        - Bem pai, na verdade há um... Um colega. – lancei qualquer palavra.

        - Quem?

        Por que ele não parava de fazer perguntas. Teve tanto tempo para fazê-las, mas precisou escolher justo hoje, bem no dia que eu não conseguia sequer ouvir o nome de Daniel Floukin.

        - Não sei se você conhece... Ah! Ou melhor, conhece sim... Daniel...

        - Ah! O garoto que veio aqui em casa ontem. Mas se ele é só um colega, por que veio te visitar?

        Por que pai, por quê? Por favor, vai curtir sua dor, dormir um pouco, mas para de fazer perguntas sobre ele!

        - Ele veio passar a matéria, já que é a pessoa que mora mais perto de mim. – murmurei sem ânimo. – E falando nisso, acho melhor ir fazer minhas lições. – foi a melhor desculpa que encontrei para fugir das perguntas incessantes.

        - Pode ir. – disse acenando com a não e ajeitando o gelo em seu joelho.

        Parecia brincadeira. Até meu pai me fazia pensar nele. Mas que praga! O único modo restante que encontrei para me livrar destes pensamentos foi assistir a televisão. Deitei no sofá e comecei a olhar todos os canais. Estava passando um seriado legalzinho no vinte e três, mas não tão empolgante para prender minha atenção. Meu olho foi ficando pesado e fiquei até feliz em ver que o sono estava chegando.

         A cena que se passou no ônibus voltou para minha cabeça como se fosse um filme-sonho. Esse neologismo explica bem o que minha mente projetou. Era um verdadeiro filme-sonho, pois, como nos filmes, há uma intriga típica, e como nos sonhos, eu estava dormindo obviamente. Nós, Daniel e eu, estávamos naquela mesma discussão, naquele mesmo clima tenso. Falei minhas últimas palavras idênticas e comecei a descer do ônibus. Na vida real, eu desci, o ônibus se foi e eu fique com aquela cara de paisagem, indignadíssima. Mas no sonho, no sonho é tudo diferente. No momento em que pisei para fora do ônibus, levei um tremendo susto, pois Daniel havia descido logo atrás de mim. É um pouco difícil traduzir o que aconteceu, mas em síntese ele pediu aquelas desculpas que eu tanto ouço e nunca me canso, olhou-me com aqueles olhos que me fascinam, segurou firme no meu braço – um firme incrivelmente delicado- e começou a me trazer para perto e mais perto até que estávamos perto de mais. Sua mão saiu do meu braço e subiu para meu rosto. Em um gesto calmo, mas rápido para minha percepção, já conseguia sentir sua respiração, não tão mais ofegante que a minha, aproximando-se. Era inevitável, desta vez voz nenhuma iria me desconcentrar. E não desconcentrou.

      Acordei, mas não queria abrir os olhos, não queria perder a cena que eu tanto quis que se tornasse no real, mas que insiste em ficar apenas nos meus sonhos. Por um momento nem me lembrava que ainda estava brava com Daniel, porém logo me lembrei. A realidade não é um conto de fadas como os sonhos, quando estes são sonhos e não pesadelos. É tão bom tudo dar certo, tudo ser exatamente da maneira que você quer. Ser perfeito. No final do conto de fadas, o mocinho e a mocinha sempre se dão bem. A Cinderela fica com o príncipe, a Branca de Neve fica com o príncipe, até a Bela Adormecida, que não faz nada na história além de dormir, adivinha, fica com o príncipe também. Esses contos nos acostumam mal, fazem com que a gente acredite nessa perfeição mágica, que não necessariamente é impossível de acontecer, mas que a probabilidade que aconteça com você é de uma em um milhão. Exatamente por isso que eu nunca acreditei em contos de fadas. Pelo menos, não até esse ano.

       Infelizmente ou felizmente, já nem sei mais, fui induzida a pensar, a acreditar que essas histórias perfeitas poderiam acontecer comigo. Eu, uma garota comum, que não tem nada de especial, que sempre se passou como mais uma das muitas da sala. É, devo ter sonhado de mais.

       Depois de um bom tempo vagando entre o real, o sonho e a minha realidade, dei conta que já estava de noite e minha mãe ainda não havia chegado.

       - Pai! Estou começando a ficar preocupada, mamãe não chegou até agora!

       - Calma, a Lorena já deve estar chegando. Ela disse que talvez fosse passar o dia com a Marlene. Deve ser isso.

       Realmente esperei que fosse. Os últimos dias em casa estavam bagunçados e eu estava cada vez mais aflita com as diversas possibilidades que poderiam causar um mero atraso. Ainda bem que minha inquietação não durou muito. Logo ouvi a fechadura e corri para a porta.

       - Mãe, já estava ficando preocupada!

       - Perdi um ônibus Mel e sabe como é, fiquei um bom tempo esperando outro.

       - Que bom que foi só isso. – suspirei aliviada.

       Ela deu um beijo na minha testa e subiu para ver meu pai. Fui para cozinha correndo, quando vi que já estava na hora do jantar. Preparei um macarrão básico e comecei a comer, já que minha mãe não descia mesmo depois de eu tê-la chamado várias vezes.

        Terminei rápido e subi para tomar um banho. A água quente que caia no meu rosto ardia, mas eu não me importava. Acho muito estranho essas “dores” prazerosas. Não sei se isso é normal ou se sou a única esquisita ao ponto de gostar de algumas dores. Não sei explicar muito bem, mas há algumas sensações que meu corpo sebe que está doendo, que está incomodando, porém a mente quer mais, quer continuar sentindo o arrepio que sobe até a nuca, a inquietação e o conflito que se gera bem ali, dentro de si mesmo. Soa um pouco masoquista falando assim, mas não é. É estranhamente bom.  

        Isso não significa nem um pouco que eu gosto de sofrer ou de sentir dor, não! Na maior parte das vezes sou normal, tão normal ao ponto de sentir que dor realmente dói, mesmo eu não querendo sentir. Foi pensando nisto que me embolei toda na minha coberta macia e tentei embalar em um sono que custou a chegar, mas sem que eu percebesse quando, chegou.

        A manhã que nasceu foi tão embolada quanto a anterior. Corri ajeitando tudo em casa e tive que ser mais rápida ainda para dar tempo de pegar os dois ônibus até a escola.

        Quando cheguei, encontrei a mesma escola deserta. Fui para a sala e quando entrei, ao invés de deparar-me com Francisco, como ontem, foi Joana que estava sentada encostada na parede.

        - Jô? – disse espantada.

        - Mel, ainda bem que você chegou!

        - O que foi? Mas espera aí, por que você já chegou?

        - Fiz um esforço extra para acordar mais cedo hoje justamente para conversar com você! – exclamou já de pé ao meu lado, puxando-me pelo braço. – Senta aí.

        Sentei, mas ainda não estava entendendo nada.

        - Seguinte Mel. Conversei com a Sara ontem e você não vai acreditar! – seus olhos se arregalaram, pareciam estar prestes a falarem antes do que a boca.

        - O que aconteceu?

        - Ela me contou o ridículo motivo pelo qual resolveu “colocar um ponto final” no rolo com o Francisco.

        - Ah é? – fiquei intrigada com a parte do “ridículo” – E qual foi?

        - Eu!

        - Você?

        - É Mel, ela teve a coragem de falar na minha cara que “não se permitiu ir além” – Joana imitou a voz de Sara tão bem quanto Francisco no dia anterior. – Porque ela acha que ele ainda gosta de mim!

        - Ele... Francisco? – tentei organizar as ideias.

        - Não. – sua voz, mesmo iônica, estava irritada. – Mas é claro que é o Francisco! Antes não fosse... – suspirou. – Ai Mel, por que tinha que acontecer isso? Por que ela está com essa desconfiança idiota!

        - Mas Jô, você explicou para a Sara que ele não gosta mais de você?

        - Eu tentei, mas ela acha que não é só isso. Sara já afirmou para si mesma que eu gosto dele também, mas que mantive isso em segredo justamente para não magoá-la, pode um negócio desses?

       Minha cabeça deu uma volta e voltou.

       - Espera um pouco Joana. Você está me dizendo que a Sara está achando que além do Francisco ainda gostar de você, você também gosta dele secretamente, mas não demonstra, pois vocês são amigas e, justamente por isso, você prefere guardar isto ao invés de magoá-la? – filosofei tão fundo que nem me dei conta.

       - Exatamente isso! Mel, você pensou até melhor do que eu.

       - Mas isso é loucura! – agora eu é que alterei um pouco a voz. – Jô, é obvio que você não gosta dele, se não teriam ficado juntos naquela vez em que ele se declarou para você!

        - Isso mesmo que eu falei para a Sara, mas ela não acreditou! – vi os olhos de Joana ficarem vermelhos.

        - Calma... – suspirei, nem eu sabia o que falar. – Olha, a Sara deve estar gostando de verdade do Francisco. Esse sentimento parece ser novo para ela, sei lá! Vai ver ela não sabe como lidar com ele e na menor das situações já está encontrando o ciúme como uma fuga.

         - Eu só queria que ela acreditasse no que eu digo, a final só quero o bem dela. – seus olhos então comprovaram a vermelhidão derramando uma lágrima.

         - Não fica assim, eu vou conversar com ela, vou fazê-la entender que você só quer ver ela e o Francisco felizes.

         Senti então uma mão repousar sobre meu ombro. Pedi com todas minhas forças que não fosse a mão de Daniel. Eu não estava preparada para conversar com ele naquele momento.

         - Está tudo bem aqui?

        Virei rápido a cabeça e deparei-me com o rosto de Roberto fixo nos olhos chorosos de Joana. Só então reparei que a sala já estava ficando movimentada.

         - Ah Rô, é você! – meu coração suspirou de alívio. – Bem, não é nada de mais, depois eu te explico. Fica tranquilo. – suspirei.

         - Quer ajuda com algo?

         - Uhn, nem precisa, só vou com a Joana no banheiro e já voltamos.

         - Está bem. – consentiu ele com uma cara intrigada. – Depois a gente conversa.

         - Ok.

         Puxei Joana pelo braço. Ela não estava mais chorando, mas seu rosto de choro ainda estava ali. Fomos para o banheiro e ela se acalmou por completo. Arrumou a feição e então voltamos para a sala como se nada houvesse acontecido.

         Já estavam todos lá, inclusive Sara e Francisco. Roberto não parou de me encarar por um segundo, mas eu, na maior parte das vezes, tentei desviar o olhar. Durante as aulas, Francisco e Joana conversaram normalmente. Fiquei extremamente curiosa para saber se Francisco tinha alguma noção do que Sara pensava. Esse com certeza era um assunto que eu precisava falar com ele.

         No intervalo, não percebi nada de estranho no grupo, talvez porque Joana praticamente não ficou conosco. Ela ficou conversando com alguns colegas do terceiro colegial, espero que por bons motivos e não simplesmente por querer se afastar de Sara. Acho que não.

         As aulas foram passando e eu evitava Daniel a qualquer hora. Estava tão preocupada com os problemas dos meus amigos, mas mesmo assim, em momento algum consegui esquecer dos meus problemas. Percebi algumas vezes que Deni estava vindo na minha direção no intervalo e não pensei duas vezes: fugi para o banheiro. Estavam parecendo infantil e idiota essas minhas atitudes para ficar evitando o inevitável, mas naquele momento, quanto mais eu pudesse adiar a nossa conversa, mas eu evitaria.

         Consegui fugir até o final das aulas, mas daí para frente, só sendo um pássaro para voar. Pena que eu não sou. No meio do caminho para o ponto, eu, mesmo que com passos largos e apressados, fui alcançada por Daniel.

         - Hey Mel, espera! – disse ele puxando-me pelo braço.

         - Espera aí você, Floukin... Eu vou para o ponto e você, se puder, me deixa em paz! – olhei bem nos olhos dele. E que olhos me encaravam, mas fui forte e rejeitei-os dando uma de difícil.

         - Exatamente sobre isso que eu quero conversar com você, mas não aqui, de pé e no meio do caminho. Vamos, conversamos no ponto. – ele puxou novamente meu braço.

          Estranhei por completo suas últimas palavras. Floukin não estava com cara de quem iria fazer um pedido de desculpas. Caminhamos até o ponto e sentamos no banco de cimento. Até aí, silêncio.

          - E...? – comecei depois de uns minutos calada. Não aguentava mais o suspense.

          - Bem, na certa você já deve imaginar o que eu vou falar, não é?

          - Sei sim. Você não sabe como se desculpar, mas espera que eu entenda que não era daquela forma que queria falar, que se expressou mal e que não conseguiu se controlar. E eu, boba como sempre, vou olhar para você dizendo que não deveria, mas que iria te desculpar esperando que fosse a última vez. – não respirei um segundo nas minhas pausas.

           - Exatamente isso que eu falaria, até mesmo como já falei nas outras vezes que te magoei. E é exatamente por isso que desta vez minhas palavras serão outras! – seus olhos azuis me encararam profundamente. – Agora Mel, não vou e não quero mais te magoar de forma alguma.

           Meu rosto sorriu por impulso. Eu já havia ouvido essa promessa que não se cumpriu uma vez.

            - Você me falou isso da última vez... – murmurei.

            - Mas desta vez vai ser diferente. – seu rosto murchou de repente. - Eu não vou mais te magoar e nem quebrar promessas porque eu não vou ter chances de fazer isto!

            Parei por um segundo e tentei processar o que Daniel havia acabado de me falar. Não consegui sozinha e também não me poupei em pedir ajuda.

            - Co...Como assim?

            - Mel, - ele segurou em minhas mãos. – Por mais que eu tente, por mais que eu prometa, não posso e provavelmente nunca vou conseguir ter a... A vida – sua voz falhou bruscamente. – que eu quero... – suspirou. - Se não consigo me sentir feliz, como posso prometer a alguém a felicidade?

            - Deni...

            - Não Mel, é sério, nossas vidas – novamente sua voz falhou - são tão diferentes e eu não consigo explicar o porquê! Eu queria, queria muito que você conseguisse me entender, compreender o que eu sinto, mas não é justo eu cobrar isto de você. Mais injusto ainda é você, além de não saber os meus motivos, sair machucada dessa história.

            Parei novamente com os olhos perdidos e pensativos. A onde será que aquela conversa iria parar?

            - E é por isso, - continuou. – que depois de pensar muito e passar a noite de ontem em claro, que eu encontrei a melhor solução para não te magoar mais! - disse com uma voz marota.

             - Qual... solução? – temi perguntar.

             - Vamos ter que nos desligar Mel. – concluiu por fim.

             - Desligar? – perguntei confusa.

             - Sim, evitar encontros, evitar conversas. Quanto mais nós nos... Como posso dizer... Ah! Quanto mais nos interagirmos, mais você se machucará! – sua voz soava um desânimo.

              Antes que eu pudesse reagir ou falar qualquer coisa, Deni deu um pulo do banco de cimento. Meu coração disparou, achei que ele estava começando a colocar em prática seu plano e indo embora de perto de mim. Mas um alívio súbito veio quando percebi que era só o ônibus que se aproximava. Entramos e eu sentei, ficando Daniel de pé ao meu lado.

              - Não! – murmurei.

              - O que você disse? – respondeu abaixando o ouvido para entender meu sussurro.

              - Eu disse que não. Não quero romper seja lá o que for com você!

              - Mas Mel, eu achei que você não queria continuar se magoando!

              - Realmente não quero... – suspirei. - Mas também não quero que você suma da minha vida! – olhei nos seus olhos que me encaravam de cima.

              - Você não está extremamente brava comigo? Pensei que depois de ontem, nunca mais conseguiria falar com você novamente...

              - Bem, ontem eu estava muito... Não é brava... E sim, magoada com você! Mas descobri, depois de muito pensar, que as pessoas erram e não é por um erro que vou quebrar toda uma história.

              - Mas não foi somente um erro... – concluiu.

              - Eu sei...

              Eu sabia que era para uma pessoa em seu perfeito juízo mental estar com raiva, não perdoar nada e ainda se fazer de difícil. Na verdade, eu mesma faria isso nas outras vezes. Mas não nesta. Sentia uma tensão em cada palavra, em cada segundo. Não era apenas um joguinho de conquista ou de desfeitas, e sim algo muito além do que podia aparentar. Só me restava descobrir o que era.

               - Mel, ouça bem, é necessário que nos desliguemos. Estamos passando muito tempo juntos, estamos nos envolvendo de mais e isso não é bom.

               - Por que não é bom? – fiz uma cara de inconformada.

               - Por que você sofre...

               - Eu sofro, mas vou sofrer mais ainda se não for mais sua amiga.

               - Mas Mel... Entenda que a questão não é o agora, não é nossa amizade que está em jogo. É tudo tão mais complexo que vai muito além disso.

               - Vai além? – não estava entendendo.

               - Sim, Mel... É tão ruim confiar em uma pessoa e não poder falar tudo para ela. Querer cuidar, proteger, viver várias coisas, mas não ser capaz, não se permitir. É disto que eu estou falando.

               Meu rosto virou um ponto de interrogação.

               - Como posso te explicar... Bem, para mim as coisas não são tão fáceis. E quando tento torná-las fáceis, torná-las normais, acabo te machucando. Sempre aconteceu isso e infelizmente vai continuar acontecendo.

               - Somente se você quiser. Eu confio em você Daniel, confio na sua capacidade e no seu controle. Sejam lá quais forem os seus motivos, os quais eu ainda continuo sem entender, não deixe que eles o tomem. Seja forte e encare os desafios. Não fuja deles, não fuja de mim. – meu olho brilhou.

               Naquele exato momento eu acabei de entender o que eu era para Daniel: um desafio.

               Ele ficou quieto por um tempo, seu olhar se fixou na paisagem que corria e eu comecei a me preocupar. Nunca que imaginei que chegaria a esse ponto. Deni continuou perdido nos seus pensamentos, até que em um estalar retomou a palavra.

              - Bem, então fazemos assim. Como eu também não quero quebrar nenhuma relação entre nós... Não quero mesmo, vou tentar mais uma vez. – falou sem olhar nos meus olhos. – Não basta só você ignorar minhas burradas. Eu me sinto tão mal a cada palavra ríspida que sai da minha boca quanto você!

                - Mas então, o que você propõe? – perguntei curiosa.

                - Vou me dar uma terceira chance. Tentarei ao máximo me controlar. Evitarei qualquer situação que possa me tirar do sério e magoá-la. Sim, vou me esforçar de verdade... Por nós.

                 Minha bochecha corou levemente, mas cuidei para que isso não tirasse o propósito de nossa conversa.

                 - Deni... Ficaria mais fácil se eu soubesse quais são essas situações, que, como disse, tiram você do sério... – propus.

                 - Não! Mel, esse é um exemplo de assunto proibido: As perguntas. Evite-as ao máximo, por favor.

                 - Evitarei enquanto puder. – estremeci com a ordem.

                 Sorrimos um para o outro. Agora ele já estava acomodado no banco atrás de mim, com o braço e a cabeça apoiados na poltrona da frente, onde eu estava sentada. O caminho correu rápido e meu ponto já estava chegando. Arrumei a bolsa no ombro e fiquei de pé.

                 - Recapitulando: Eu deveria, mas não estou extremamente brava com você. Nós vamos nos dar uma terceira chance e evitar as situações que te irritam e que eu desconheço. E por fim, bem, por fim eu não sei... O que você acrescenta? – o ônibus já estava parando.

                 - Se ocorrer uma quarta vez, nós tomaremos uma medida drástica. – respondeu.

                 Eu já estava me afastando e indo a direção da porta quando resolvi fazer a última pergunta.

                 - Você quer dizer que... – parei de falar.

                 - Sim, é exatamente isto que eu quero dizer.


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Notas finais do capítulo

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