Pesadelo do Real escrita por Metal_Will


Capítulo 10
Capítulo 10 - Poço




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"Há mais perigo em teus olhos do que em vinte espadas!"

~ William Shakespeare

Capítulo 10 - Poço

 Sem muita pressa, Monalisa apenas caminha lentamente na direção de sua casa após descer do ônibus. O olhar de todos ao redor ainda era incômodo, mas ela parecia estar se adaptando às regras do Labirinto pouco a pouco. Após sua conversa com Cheshire, pode, ao menos, ter certeza de que tudo que ouvira até agora sobre sua condição era verdadeiro. Gatos não costumam sair tagarelando e muito menos sorrindo por aí, não é? Se ela precisava de uma prova mais forte, certamente era aquela. Agora, não havia mais com o que perder tempo: deveria achar a próxima pista o quanto antes.

 Enquanto caminhava, a lorinha tentava se lembrar das palavras do gato: a direita leva ao Mestre dos Relógios e a esquerda ao Mestre das Chaves. Tudo indicava que era necessário fazer uma escolha entre dois caminhos distintos e opostos. O problema era como reconhecer esses caminhos. Esquerda e direita...poderia ter algo a ver por onde ela andava, assim como a decisão que iniciou tudo aquilo de mudar o caminho da escola? Ou poderia ser algo totalmente diferente? Como iria saber? Jogando o cabelo para trás, a garota tenta pensar em possibilidades que teriam a ver com seu próximo passo, ao mesmo tempo que tenta imaginar como seriam os próximos personagens com quem iria se encontrar. Mestre dos Relógios e Mestre das Chaves...se eram mestres, deviam ser importantes e talvez soubesse, ou melhor, tivessem permissão para contar algo mais. Mas antes era preciso chegar até eles.

 Não demora muito para que Monalisa chegasse em casa, abrisse o portão e entrasse em sua casa vazia, como o esperado. Seus pais estavam trabalhando, ou pelo menos era o que ela achava. Será que seus pais realmente trabalhavam enquanto estivesse fora ou apenas diziam isso? Nunca poderia provar, mas com certeza se ela resolvesse visitar seus pais no trabalho não veria nada de anormal. A ideia do Labirinto é mantê-la em uma vida absolutamente sem suspeitas e era o que acontecia antes de descobrir tudo: levava uma vida sem nenhuma preocupação. Agora estava envolvida demais e não podia mais voltar atrás. Certo. Precisava continuar perambulando pelo Labirinto, explorando a toca do Coelho Branco o máximo que podia.

 Monalisa deixa sua mochila no quarto e suspira. Com preguiça de trocar o uniforme, apenas tira os tênis e segue para a cozinha. Não havia almoçado, mas não estava com vontade de comer. Pega apenas uma colher e um potinho de iogurte na geladeira, vai para a sala, senta-se no sofá e liga a TV. Com a colher na boca, iogurte em uma mão e o controle remoto em outra, ela passa pelos canais, tentando achar algo de interessante na péssima programação da tarde, que por sinal também deveria ser proveniente do Labirinto. Até mesmo aqueles programas horríveis eram parte da conspiração e ela tentava imaginar o motivo por trás de tudo. Lembrou-se da conversa que teve com Cheshire sobre até mesmo as histórias que ouvia serem feitas para aliená-la. A televisão, certamente, era algo parecido. "O Labirinto é cheio de metáforas", pensa a garota, "Penso quais outras metáforas estão espalhadas por aí". 

 Ela tenta imaginar o que poderia estar sendo trransmitido de modo subliminar no meio daqueles programas de TV. Sem dúvida, alguma coisa. O apresentador poderia estar distorcendo as palavras para, no fundo, querer dizer: "tem uma idiota nos assistindo..e mal sabe que é ela a assistida". Pensa também em todos os reality-shows que a mídia insiste em empurrar, pessoas presas em uma casa ou pré-selecionadas para participar de algum tipo de competição. Antes de conhecer o Labirinto já achava que tudo era feito de forma armada e de realidade não tinha nada. Agora podia ter certeza absoluta disso. E todas aquelas novelas? As histórias só eram feitas para mergulhá-la cada vez mais na mentira.

 "No que posso confiar?", ela pensa novamente, "Nem esse iogurte que estou tomando deve ser real. O Labirinto é que me faz pensar que ele tem gosto de morango". Sua jornada estava só no começo, mas já se sentia cansada. Não seria melhor mesmo ter escolhido o café? É o que ela se questiona, não pela última vez.

 Após alguns devaneios, ela se deita no sofá e olha para o teto, muito mais concentrada em seus próprios pensamentos do que na televisão, que continuava ligada, dizia. No meio do merchandising de alguma câmera fotográfica que a apresentadora fazia, Monalisa sente seus olhos pesarem e adormece. É levada por um sono pesado até o início de mais um sonho.

 Estava em algum tipo de vilarejo. Parecia uma aldeia tradicional da Europa, dessas que vemos em filmes, com casinhas bem pintadas e uma arquitetura humilde, mas muito graciosa. Agora Monalisa usava uma saia verde, um tipo de lenço vermelho na cabeça e uma espécie de avental branco. Nas mãos, segurava um balde de madeira, de modelo bem antigo e caminhava por uma estrada de pedras, ouvindo crianças jogando bola e vendedores de leite no caminho. Um deles a cumprimenta docilmente, enquanto levava sua carroça. O cenário era extremamente bucólico em um clima bastante feudal.

 Após alguns instantes caminhando pela estrada de pedra, Monalisa chega próximo a um poço de água, onde uma menina que devia ter lá pelos seus nove anos, de longos cabelos castanhos, usando um pequeno vestido marrom e com a rara característica de ter dois olhos de cores diferentes (o direito era verde e o esquerdo vermelho), estava encostada no parapeito do poço, olhando para o horizonte.

 - Bom dia - cumprimenta Monalisa - Posso...tirar água?

 - Certamente - responde a menina, em um tom até maduro para a idade. A criança dá espaço, Monalisa sorri timidamente em agradecimento. Era um poço tradicional, onde se deveria colocar o balde em um gancho preso em uma corda enrolada em uma polia logo acima da boca, para que o recipiente descesse e chegasse até a água. No entanto, mesmo descendo o balde a uma grande profundidade, Monalisa não percebe nenhum sinal de água.

- Ué? - estranha Monalisa, voltando-se para a menina - Não tem água?

- Huhuhu - a garota ri - Claro que tem. Mas você precisa pagar o preço primeiro.

- Que preço?

- Esse é um poço mágico conhecido como Poço dos Olhos - explica a criança - Se quiser retirar água dele...terá que pagar um olho.

- Olho? - ela sente o coração bater mais apertado - Do que está falando?

- É fácil...escolha um olho...esquerdo ou direito?

- Como?

- Escolha - a menina arregala seus olhos de cores distintas, fazendo com que Monalisa recuasse. A loirinha queria sair logo dali, mas se sentia paralisada - Vai..qualquer um serve - continua a garotinha.

- Espere...eu...

- Se quiser..eu mesma tiro para você - a criança sorri ainda mais insanamente. Monalisa queria gritar, fugir dali, mas a garota se aproximava mais, estendendo a mão e lançando um golpe certeiro em seu olho direito.

- Aaaaaaah..meu olho! - grita a loira, colocando a mão no local em que foi golpeada. Aquela menina havia mesmo arrancado seu olho direito? Pelo que parecia sim. A criança olhava sorridente para Monalisa.

- Você tem lindos olhos verdes - comenta a garotinha - Será uma ótima oferenda ao poço

- Meu olho...o que fez com ele? - Monalisa parecia desesperada, mas a garotinha não parecia fazer caso disso. Ela se aproxima e entrega o olho recém-arrancado na mão esquerda da moça.

- Jogue o olho no poço

- O que disse?

- Confie em mim. Jogue o olho no poço. Só você pode fazer isso.

 A situação não parecia fazer o mínimo sentido, mas Monalisa, por alguma razão, acaba obedecendo. Assim que o faz, sente seu sangramento parar. Lentamente, ela retira a mão direita do olho e enxerga tudo claramente, como se nada tivesse acontecido.

- Eu falei para confiar em mim, não falei?

- Como? Mas meu olho...

- Retire a água do poço agora

- Hã?

- Vai. Tira logo - ordena a criança. Monalisa, por alguma outra razão misteriosa, obedece e percebe que agora o poço parecia ter água. Ela gira a manivela e recolhe um balde cheio. Sem saber o que aconteceu, ela apenas olha para a criança que só retribui com um sorriso e mais uma ordem.

- Agora...olhe para a água.

 Cuidadosamente, ela lança seu olhar para o reflexo na água e se vê com um olho direito avermelhado. Agora ela também tinha olhos com duas cores diferentes.

- Meu olho...mudou de cor - balbucia Monalisa.

- Não é que ele mudou. Você recebeu um olho novo - explica a garota - Agora você tem a marca do poço e pode retirar água dele quantas vezes desejar. Assim como eu.

- Então. Um pagamento é o suficiente? - questiona Monalisa.

- Você acha pouco? - retruca a menina - Hihi....você nunca mais terá aquele olho novamente.

- Mas ainda tenho um olho

- Mas ele não é seu. Nunca será.

 Nisso, a imagem se dissipa e Monalisa é acordada por alguém.

- Filha, filha? - era a mãe dela, chacoalhando a garota adormecida no sofá.

- Hmm? Mãe? - ela ainda estava sonolenta. Parece que ficou um bom tempo dormindo pesado antes de sonhar.

- Dormindo com a televisão ligada e nem trocou de roupa ainda? Você não tem jeito - fala a mãe, com uma cara de reprovação e, logo depois, lançando os olhos no potinho de iogurte em cima da mesinha da sala - Não está com fome?

 A garota sente seu estômago roncar. Agora sim estava com fome.

- É, um pouco...acho que dormi demais - diz a garota - Tem alguma coisa para jantar?

- Vou preparar alguma coisa - fala a mãe - Você almoçou?

 Monalisa diz que almoçou na escola. A mãe não acredita muito, mas resolve deixar para lá. Na verdade, a mãe de Monalisa não ligava muito para isso, já que seus hábitos alimentares também não eram melhores que os da filha.

- Bom, vai tomar um banho que eu já vou preparar alguma coisa - diz a mãe.

"Como se ela não soubesse que eu não almocei. Deve saber até do meu sonho", pensa a garota, já indo para o quarto pegar a toalha. Sua relação com a mãe nunca foi das melhores e agora que ela sabia a verdade, não iria melhorar tão cedo. Afinal, não podia sequer afirmar que aquela mulher era sua mãe de verdade. Mesmo assim, a trama do Labirinto parece ter dado um papel importante para a mãe de Monalisa.

- Aliás, filha - chama a mãe - Antes que eu me esqueça...entregaram umas lembrancinhas no meu trabalho hoje e recebi esses enfeites esquisitos.

- Como? - a garota se volta e recebe da mãe duas esferas de cristal. Uma vermelha e outra azul. Dentro de cada uma havia uma outra pequena esfera preta, o que lembrava...exatamente..olhos.

- Dizem que são símbolos de boa sorte, mas eu não acredito nessas coisas. Uma moça meio esotérica que trabalha comigo me deu de aniversário atrasado, mas acho que você vai aproveitar mais do que eu.

- Parecem...olhos - balbucia Monalisa, quase deixando os presentes caírem.

- Olhos? Bem, se você acha... - a mãe parecia indiferente - Vai tomar banho logo, vai.

- Obrigada, mãe. Acho que isso vai me ajudar.

- Ajudar? Em quê?

- Hmm...para umas coisinhas que estou fazendo

 A mãe apenas dá de ombros. É claro que ela sabia. Todos sabiam. Mas, ao que parece, Monalisa estava indo nos trilhos certos. Ao chegar no quarto, imediatamente, pega seu caderno de sonhos e anota o sonho do poço, antes que ele sumisse de sua memória.

"Essas esferas de cristal devem ter alguma coisa a ver com o sonho, que deve ter alguma coisa a ver com a próxima pista", pensa ela, "Só preciso de mais algumas peças. Tudo bem. Acho que estou indo no caminho certo...está mais fácil do que eu pensei!".


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Notas finais do capítulo

Será? Veremos nos próximos capítulos...