Contos Escarlates escrita por JojoKaestle


Capítulo 2
Capítulo 2




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O rei sabia que estaria morto em poucos segundos e pela primeira vez desejou poder mudar o passado. Seus olhos deitaram sobre a relva da enorme clareira e sobre os corpos de seus guardas, seus homens, leais aos seus postos até que uma espada bárbara perfurasse suas entranhas e cortasse suas vidas em pedaços. Espada que também o tinha acertado no flanco esquerdo, sentia o sangue quente empapar o couro e cobrir a grama rala abaixo de seu corpo. Uma faca de caça estava enterrada profundamente em seu torso, tão fundo que o rei pensava sentir sua ponta aguda encostando-se aos ossos que formavam sua coluna. O vento trazia folhas laranja e douradas da floresta e o soberano pensou por um instante que seriam um belo adorno funerário quando aqueles fora-da-lei finalmente dessem o golpe final. A imagem dos filhos povoou sua mente enquanto a respiração tornava-se mais pesada, deveriam estar longe, pensou, movendo suas companhias de caça de norte a sul em busca dos lobos que em breve seriam predadores vorazes no rígido inverno, importunando pequenos vilarejos, rasgando os rebanhos e raptando crianças pequenas de seus berços. Não viveria para vê-los retornando, talvez com boas peles para serem transformadas em casacos quentes ou cobertores para ajudar a passar pelas noites frias. Jamais iria encontrar conforto nos braços de Aileen novamente, ou ouvir os risos de Malika, sua doce princesa, na ante-sala enquanto sentava em um banco e tinha seus longos e brilhantes cabelos trançados por uma serviçal que lhe contava histórias sobre tudo que lhe interessava. O céu outonal ficou borrado por um instante. Passos abafados por pilhas de folhas secas fizeram o rei reunir suas energias e virar o rosto em direção a origem do som. Esperava ver ali qualquer um dos homens que haviam armado a emboscada e que se ocupavam de pilhar o corpo dos guardas mortos, esperava até reconhecer o rosto de um dos seus conhecidos e ardilosos opositores, mas a figura que se erguia contra a luz do sol e o observava seu rosto do alto fez com que o rei não confiasse em seus olhos, sua boca abriu-se de puro espanto e incredulidade.

Aramis estudou a figura caída do pai aos seus pés, a vitória abraçando seu coração e o enchendo de alívio. De alguma forma o semblante aterrorizado do velho o agradava, o que seus olhos esmeralda mostravam? Medo? Arrependimento? Descrença, certamente. O rei não encarava a verdade nem quando estava prestes a morrer. Deu um suspiro e agachou-se ao seu lado, seus dedos passaram rapidamente pelos cabelos vastos do moribundo e retiraram uma folha dos fios grisalhos.

–O dourado ainda lhe cai bem. – observou suavemente, sorrindo quando o homem tentou afastar-se de seu toque.

–Por que Aramis? – grasnou o rei, o sangue jorrando pelos lábios tremulantes. A mágoa em sua voz mostrava que ter o filho ali o havia ferido de uma forma que nenhuma espada poderia. O rapaz a captou no ar e por um momento vacilou, os cabelos cor de trigo caindo no rosto quase afilado demais para um homem. Olhou para o Arlequim que fazia um odre de vinho passar pelas mãos dos mercenários, oferta que os homens aceitaram de bom grado para aquecer seus corpos e animar seus espíritos depois da matança. Havia sido ridiculamente fácil, percebeu o jovem quase pesaroso. Um pouco de ouro e o palco estava montado para um regicídio.

–O senhor forçou minha mão. – acusou, seus olhos verdes como os do homem que morria brilhando de ódio.

–E ainda assim não é a sua faca enterrada em minhas entranhas, covarde.

Aramis segurou o punho da arma entre o polegar e o indicador e a fez girar lentamente dentro do corpo do pai. Os punhos do homem se fecharam e bateram no chão com força, mas nenhum grito escapou de sua boca contorcida, esse prazer ele não teria.

–Uma faca funciona nas mãos de diversas pessoas, basta saber moldá-la à sua vontade – deitou os lábios sobre o ouvido do rei – o mesmo se aplica aos homens. Tão frágil é a lealdade construída através da força, tão rapidamente desaparece diante do tilintar de ouro.

–Você é um maldito traidor Aramis, nada mais que isso! – descontrolou-se o rei, tão alto que o mercenário cuja vez de beber do odre havia chegado baixou a bolsa de couro e olhou na direção dos dois, acompanhado pelo restante dos homens, o Arlequim franziu o cenho – Meu sangue corre em suas veias e que lá queime para sempre quando eu deixar de existir. Que os Deuses o perdoem, que eles perdoem este reino porque você está condenado enquanto respirar, assassinar o próprio pai, seu rei, como ousa? Kenneth te perseguirá e te arrastará para a lama onde você nasceu e de onde nunca deveria ter te tirado. Você não nasceu para governar, nasceu para ser montado pelos outros como montei em sua mãe! – cuspia entre as palavras e seus olhos tornavam-se cada vez mais arregalados.

A faca foi empurrada com tanta força que sentiu as vísceras do pai envolver a mão direita acompanhado por um gorgolejar quente e molhado. Continuou golpeando o interior úmido até que a faca não acertasse mais o alvo, estava cego pelas lágrimas que desciam suas bochechas e pingavam sobre o corpo do pai sobre o qual se apoiava. Mãos o seguraram pelos ombros e levantaram para longe da relva vermelha.

–Já está feito senhor. – falou Fingal buscando confortá-lo. Aramis ainda encarava o pai, como se estivesse paralisado.

–Fingal, por que me acompanharam? – perguntou finalmente. Era um homem robusto que havia sido nomeado a poucas primaveras e desde então colecionava cicatrizes pelo corpo oriundas de batalhas e duelos conquistados reino afora. Uma delas atravessava os lábios num fio escurecido que se sobressaía na pele amendoada e através dela seus destinos haviam se entrecruzado.

–Para ajudá-lo senhor, porque o apoiamos até que a vida nos seja tirada ou o senhor nos mande para longe.

–E iria embora? – perguntou o jovem, desviando seus olhos para o rosto do honesto cavaleiro.

–Com todo respeito, creio que seja a única ordem que não cumpriríamos senhor.

Deu um pequeno sorriso desajeitado e o príncipe pousou mão limpa em seu ombro.

–Alegra-me ouvi-lo. – voltou a cabeça para o grupo que se inquietava atrás de si - Agora teremos que nos apressar, cruze os dedos bom amigo.

O líder dos mercenários avançava em sua direção com semblante duro, um dos guardas do rei lhe havia acertado um golpe fundo na coxa, forçando-o a mancar o mais rápido que podia.

–Queremos o restante do nosso pagamento, vossa majestade – zombou Cadmor ensaiando uma reverência torta. Estava vestindo peles imundas que fediam de uma forma que faziam Aramis pensar se não eram uma estratégia para amedrontar seus inimigos. Sentiu Fingal ao seu lado colocar a mão no punho de sua espada e o dissuadiu com um aceno de cabeça, deu um passo à frente, sorrindo.

–Será devidamente recompensado, o garanto caro senhor. – procurou o Arlequim que se afastara do grupo e fechava com desinteresse o odre de vinho, quando captou o olhar do príncipe anuiu e virou a cabeça ruiva na direção do bando, esperando.

Por um momento terrível nada aconteceu. O vento lhes jogava as folhas contra as capas e vestes de caça e brincava com seus cabelos. Cadmor afastou os cabelos ensebados rudemente para trás, o olhar ameaçador fixo no príncipe.

–E então? Teremos que abrir sua barriga real para conseguir o nosso ouro?

Não conseguiu impedir o cavaleiro dessa vez. Com a espada em riste Fingal avançou, mas qualquer coisa que saiu de sua boca foi encoberto pelo grito angustiante que cortou o ar. O mercenário do qual partira caiu de joelhos, ambas as mãos fechando-se sobre a garganta, os olhos esbugalhados em puro pânico. Por alguns segundos tentou em desespero puxar o ar para dentro do corpo, grasnando e estrebuchando até que tombou sobre a relva com um baque surdo, a língua preta estendida para fora da boca.

–Filho de uma porca! – vociferou o líder dos mercenários vendo seus homens entrando em pânico e um atrás do outro levando as mãos ao pescoço, como se fantasmas os estrangulassem. O Arlequim apanhara uma aljava de um homem agonizante e acertava aqueles que debandavam para o interior das árvores buscando refúgio, um a um eles foram morrendo, todos os trinta, com setas transpassando seus corpos ou simplesmente porque o ar já não enchia seus pulmões.

Aramis senti-se mais sujo ao ver aquela cena do que quando enfiara uma lâmina em seu próprio pai e desviou os olhos, enojado. Por isso não percebeu quando Cadmor investiu, rugindo como um animal que sabia que seria abatido e que reunia toda a força que lhe restava em um único ataque desesperado. Sua espada foi rebatida a poucos centímetros do rosto do príncipe por Fingal que num único movimento fez a espada do mercenário voar de suas mãos e antes que este pudesse mover-se para recuperá-la acertou um golpe rápido na parte de trás de suas panturrilhas. Com um urro de dor o mercenário caiu de joelhos, Fingal pisou de lado abrindo espaço para Aramis.

–Minhas condolências. Espero que o vinho tenha lhe caído bem na barriga. – falou o príncipe quando o cavaleiro embainhou a espada e se pôs ao seu lado. Empurrou o homem para o chão num movimento leve e atravessou a chacina ao encontro da figura vestida de negro que trocara aljava e arco por armas dos guardas e mercenários que jaziam estendidos pela clareira. Passava furtivamente de um para o outro, agachava-se e desferia alguns golpes contra seus corpos, depois se abaixava ao lado de outro e lhe colocava a arma nas mãos. Devolvia a espada de um dos guardas do rei cujos golpes agora marcavam o corpo de cinco jovens mercenários quando Aramis parou ao seu lado.

–Acho que bastará. – anunciou o Arlequim fechando as mãos do homem ao redor do punho da arma, nada indicava que havia percebido a agitação – Só teremos que torcer para que não achem nada demasiadamente esquisito, o veneno não deixará marcas, isso posso garantir. Acenou para que Fingal se aproximasse enquanto escolhia com atenção uma das adagas que recolhera dos mortos.

–Não vá acertar nada importante Morris. – lembrou-lhe Aramis. O Arlequim assentiu, finalmente tomando sua decisão e levantando-se. Olhou para o jovem cavaleiro, parecendo estudá-lo por alguns momentos. Então lhe acertou o cabo da adaga na cabeça com força, seguido por um soco no rosto e por último a lâmina fria enterrou-se em seu abdômen. Fingal deixou escapar um espasmo quando a adaga foi puxada para fora do corpo. Aramis o apoiou antes que caísse e lançou um olhar enfurecido em direção ao Arlequim.

–Disse para não machucá-lo!

–Muito. – retrucou este com pouca emoção, massageando os dedos - Sabemos que sua lealdade descabida o levaria a protegê-lo com o corpo, qualquer coisa menos que isso levantaria suspeitas.

Fingal deu um sorriso fracassado e depois se limitou a assentir, com uma leve careta. O príncipe o ajudou a acomodar-se na relva o mais confortável possível e depois levantou a manga de sua camisa até o cotovelo, estendendo o braço desnudo ainda manchado de sangue em direção ao Alequim.

–Faça. – ordenou e quando viu a hesitação no rosto do homem o repetiu incisivamente.

–É sua mão de espada. – ponderou.

–E me liga para sempre a ele. – retrucou Aramis indicando o corpo do rei estendido na campina atrás deles.

–Assim como seu sangue. – o Arlequim deu-lhe as costas e se abaixou ao lado de Fingal, desprendeu um pequeno saco de couro de seu cinto e despejou o conteúdo pulverulento na ferida do cavaleiro, murmurando instruções.

Foi tão rápido que não conseguiram reagir. Aramis desembainhou sua espada e o golpe cortou o ar frio de encontro à carne. Com pouca resistência sentiu a lâmina talhar carne e osso, sentiu peso desprender-se de seu lado direito e o membro caiu aos seus pés numa visão que por um longo momento lhe pareceu absurda. Sentiu o sangue quente entranhar em suas vestes e o vento frio adentrar sua carne. Cambaleou e quase caiu quando a dor explodiu dentro de si. Por pouco não se arrependeu. Fingal olhava de seu braço ensangüentado para o rosto de Aramis e tentou se levantar, sem sucesso. No lugar disso o Arlequim levantou-se de sobressalto e três passos depois chutava a massa de carne e osso para longe.

–Seu idiota com absolutamente nada na cabeça! – ralhou quando parou em sua frente rasgando tiras de suas vestes e as amarrando com força uma palma acima da amputação.

–Da próxima vez que sentir o ímpeto de dar fim a sua vida – murmurou com tecido entre os dentes – recomendo fazê-lo quando estivermos mais próximos do castelo. Isso caso sobreviva a hoje, claro.

Aramis tentou parecer firme, mas sentia-se enjoado e como se milhares de formigas se banqueteassem com a carne de seu braço. O Arlequim balançou a cabeça negativamente e o deitou na grama dourada.

–Não é exatamente inteligente deixar sua vida nas mãos de um assassino, tá ai nosso amado rei que não me deixa mentir. – avisou, olhando ao redor.

Fingal havia desmaiado a poucos metros de distância, mas o sobe e desce ritmado de seu tronco denunciava que seu estado não era grave. O som de uma trombeta encheu a relva, agudo e claro contra o silêncio dos mortos.

–Kenneth. Pela primeira vez agradavelmente atrasado – zombou o Arlequim. O príncipe viu os familiares estandartes azuis erguerem-se contra o céu que se tingia de dourado, o barulho de cascos veio acompanhado pelo leve tremor do chão. Quando os primeiros cavaleiros tornaram-se visíveis entre as árvores do outro lado da campina os olhos de Aramis começaram a vacilar. Imaginou ter visto uma mancha ruiva sorrir em sua direção lá do alto, depois o lampejo de uma lâmina contra o sol de encontro ao pescoço fino do Arlequim antes de tudo cair na escuridão.



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Notas finais do capítulo

Todos morre. Brincs, nem é.
Cadê Mira e os outros personagens? Pois é, decidi que a história vai se dividir entre esses dois personagens principais. Percebam que por principais não quero dizer que eles se encontrarão numa ida casual a padaria e vão se apaixonar, não. Eles tem tramas próprias e garanto que no futuro se encontrarão sim, mas tenham certeza que não será nada romântico. O que também não quer dizer que pra ser principal tem que ser bonzinho, negativo. Essa fic é justamente para tentar algo diferente, quanto mais loucura melhor. Ainda assim os dois tem pontos parecidos e aposto que isso vocês perceberam. Acho que perceberam também que o Arlequim não é denominado assim porque gosta de pular carnaval e seguir blocos de folia, certo? Pois bem, tudo será explicado. Espero que não tenha ficado muito tedioso etc etc, porque tá sendo divertido escrever e queria que um pouco disso transparecesse também. Comentários são essenciais e me ajudam a perceber o que tá dando certo e o que tem que melhor muito ainda, portanto não se sintam tímidos, pode chutar minha bunda mesmo se não estiver agradando. Noffa como isso ficou grande, té a próxima. (:



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