I

Era noite.

II

Volte, dizia a voz agonizada. Gemia dolorosamente em seu ouvido e tentava arranhar sua face, mas descobria que não tinha mãos para fazê-lo.

Por favor.

III

Era só uma lembrança. Uma lembrança que se torçia e se martirizava na sua frente, apenas para comovê-lo. Uma lembrança que o encarava com piedade enquanto tentava se materializar. Uma lembrança tão intensa que parecia ferir-lhe com fogo.

Mas, oh, ele jamais se deixava atingir por uma mera lembrança.

IV

Ele caminhava ao seu lado, não importava para onde. Apenas caminhava, feito um cão de guarda.

Esperando para atacá-lo em distração.

V

Lembre-se, lembre-se! Estou a agonizar. Você não sente pena?

Ele não sente.

Não há nada que o faça sentir algo. Ou talvez até… Não, não há. Ele sente vontades, tem desejos. Até sonhos – apesar deles sempre virarem pesadelos.

VI

Voltar.

Ah, mas como ele queria voltar! Se livrar do frio que o envolvia durante a noite – que não era tão noite assim – para sentir o calor que o envolvia em todas as horas do dia em que sua pele de cobra esfriasse demais.

Mas, ah, ele sabia.

Jamais poderia sair do inferno.

VII

Então, aquele era o Oasis do Hueco Mundo? Ah, mas como era traiçoeiro aquele lugar!

Mas ele apenas riu. Era uma ilusão! Era tudo uma ilusão! Distorçendo sua mente para matá-lo aos poucos.

Não havia noite – tampouco havia dia – havia o vazio.

Não havia Lua – tampouco havia Sol – havia a escuridão.

Mas, ah, de que isso realmente importava?

VIII

Era noite.

IX

A Lua estava escondida no céu poluído por nuvens cinzas e estrelas irritantes. Provavelmente estava sendo privada de sua função principal, se é que tinha uma. E, mesmo que tivesse, isso não lhe importava. Afinal, era só a Lua.

A maldita Lua que criava aquela maldita saudade em si. Não havia motivos para senti-la ainda, mas logo haveria. No dia seguinte haveria.

Mas isso não importava. A única coisa que importava era o jovem de cabelos loiros que dormia em seus braços.

X

A luz do dia cegou seus olhos. Ele os abriu, doloridamente. Preferia mantê-los fechados.

Mas viu aqueles olhos fortes na sua frente, e teve esperança. Se alegrou por ser dia. Ele sabia que tinha falhado, mas não totalmente. Se alegrou. Sabia que ele sobreviveria.

Assim como sabia que aquela era sua morte.

E que nunca mais poderia vê-lo.