Batendo nas Portas do Inferno escrita por KAlexander


Capítulo 4
Capítulo 1 - Atravesse para o Outro Lado (Parte 3)




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–... E eu estava cercado pelos três, Cloud! Afinal aquela era uma área dominada por eles, aqueles vampiros senis e antiquados de Viena, bem, isto é o que eles acreditavam até... Cloud? CLOUD!

Ergui os olhos quando o grito de Christian me trouxe à realidade. Sentado no sofá de couro, as pernas esticadas sobre o assento, ele me fitava com as sobrancelhas erguidas em exasperação. Suspirei, cansado, e desviei o olhar, apoiando o cotovelo no braço alto da poltrona antes de descansar meu queixo na mão.

– Me desculpe... – Murmurei em voz baixa. Meu olhar se dirigia ao chão, mas o que eu realmente via era algo completamente alheio ao ambiente.

Quase duas semanas haviam se passado desde a malfadada caçada que eu promovera. E, a cada dia que se passava eu me amaldiçoava mais e mais por tê-la sugerido. E, compreendam, me culpar, especialmente por algo como uma caçada, não é uma característica evidente em mim. Mas não era o que estava se passando daquela vez... E Christian estava notando.

Eu saíra para caminhar no início da noite, sem encontrá-lo em casa. Passara algum tempo tentando organizar os pensamentos, mas, ao perceber que isto não estava sendo nem minimante eficiente, decidi retornar. Quando cheguei em casa, encontrei Christian em meu sofá, zapeando pelos canais da TV. Ele parecia estar com um ótimo humor e achei que conversar seria de grande ajuda para distrair minha mente inquieta.

Eu lhe perguntara sobre o que tinha aprontado enquanto estava só. Christian me contou que viajara para a Europa e para a Ásia, e, naquele momento, estava narrando uma de suas aventuras com uma empolgação que não era correspondida por mim. Meus olhos vagavam e minha mente viajava pela noite eterna até uma certa criatura que deveria ser insignificante para mim.

Mas não era. Ele podia ser tudo para mim, menos insignificante. Aquele garoto... Aqueles olhos infantis não me abandonavam nem por um segundo... Eu lembrava de sua entrega, lembrava de como, mesmo invadido pelo medo que eu lhe causara, ele me permitira violá-lo sem nem ao menos reagir. Aquilo estava tão completamente errado! Tão errado que eu não conseguia retirar as dúvidas que surgiam aleatoriamente em minha mente. Por que ele havia se entregado com tanta facilidade em meus braços? E, por que, mesmo amedrontado, ele me encarava tão intensamente, como se me desafiasse a avançar até sua figura pequena e matá-lo, como o monstro que eu deveria aparentar ser?

Aquilo me intrigava profundamente e, sem descansar refletindo sobre aquilo, eu estava ali, ignorando Christian inconscientemente. Mesmo sem encará-lo percebi que se movimentava no sofá. Ergui os olhos e o encarei. E me assustei, pois o que encontrei em seu rosto não foi reprovação ou deboche, o que seria típico, mas sim uma preocupação sincera e franca. Ele havia se acomodado no braço do sofá, se aproximando de mim. A luz prateada vinda da janela incidia na lateral de seu corpo, mantendo o resto nas sombras acolhedoras. Foi a sua vez de suspirar, vendo que eu pretendia continuar calado.

– Cloud, o que está acontecendo? – Perguntou-me, as sobrancelhas unidas em preocupação. – E não adianta dizer que não é nada. Eu conheço você o suficiente para saber quando algo o está incomodando.

Mordi o interior de minha bochecha, um gesto que geralmente demonstra que estou incomodado. Naquele momento dizia que eu estava em dúvida sobre compartilhar o que estava sentindo com aquele Christian que não me era muito conhecido. Mas o que poderia acontecer de pior se eu lhe contasse? Afinal, manter aquilo para mim estava apenas tornando a situação de minha mente pior. Resolvi lhe contar de uma vez.

Contei sobre como, naquela noite em que em que ele fora se livrar do corpo, eu estava demasiadamente sedento e que encontrar alguém digno de ser morto levaria mais tempo do que eu estava disposto a suportar em estado de inanição. Contei-lhe que por fim havia me decidido por atacar a primeira criatura que encontrasse pela frente, e como eu me abominei por isto, mas ainda assim prossegui com minha decisão. Descrevi como encontrei o garoto por acaso e tudo o que se passou em seguida, desde o momento em que comecei a segui-lo até o momento em que o hipnotizei, vendo-o se afastar antes de ir embora.

Durante todo o tempo em que estava falando, Christian não me interrompeu nem mesmo uma vez. Somente ouvia atentamente, os olhos tranquilos focados em mim, apenas assentindo de vez em vez. E, quando terminei minha narrativa, cruzou os braços e alisou o queixo lentamente num silêncio pensativo. Então, voltou a me olhar antes de perguntar naturalmente:

– Cloud... Por que não matou o garoto?

Bem, aquela pergunta me pegou completamente despreparado, mas a resposta era simples... era o que eu achava.

– Ora, ele era só uma criança assustada! Sabe bem que assassinar inocentes não é do meu feitio. – Respondi, defensivamente, embora não soubesse muito bem o porquê.

– Sim, eu sei – assentiu ele com um sorrisinho. – E sei também o que a fome excessiva causa até mesmo nos mais fortes. No momento em que estamos nos alimentando não nos importamos muito com quem ou o quê a vítima é. Para ter parado antes de matar o garoto você deve ter tido algum motivo.

Sim. Ele estava certo e, o que era pior, eu sabia disso. E o motivo? Eu não queria acreditar nele. Eu deveria estar enlouquecendo...

– Cloud, pode parecer estranho vindo de mim, mas... eu compreendo você.

Ao ouvir aquelas palavras, observei-o com desconfiança. Entretanto, por mais que eu tentasse encontrar um vestígio de ironia ou escárnio seu semblante permanecia calmo e inalterado. Vendo que eu não iria contraria-lo ele prosseguiu.

– Você se afeiçoou ao garoto. – Afirmou ele com um riso que lembrava muito mais o Christian que eu conhecia. – Simples. Neste tempo em que estive longe, acredite ou não, eu encontrei alguém que me proporcionou este mesmo sentimento. E, por meses, eu permaneci ao lado daquela mesma humana. Mas eu não podia continuar levando aquela situação adiante. Eu não podia continuar me prendendo à sua fragilidade, à suas necessidades mortais. Portanto, percebi que tinha três escolhas. A primeira era, de longe, a mais fácil, a que não me traria nenhum tipo de complicações futuras; eu poderia ir embora e abandoná-la. Mas nem sempre a decisão mais fácil é a decisão correta, não?

“A segunda era... digamos que era digna da criatura que sou; mata-la o quanto antes possível. Mas eu me arrependeria, mais cedo ou mais tarde. No fundo eu sabia que não queria machuca-la de modo algum e que mata-la seria terrivelmente injusto.”

Christian se interrompeu, como se estivesse refletindo sobre suas atitudes, ou talvez simplesmente relembrando os momentos do passado em que estivera com a humana de quem me contara. Um sorriso suave se formou em seus lábios enquanto ele fitava o nada, perdido em pensamentos. Me senti subitamente tomado por um sentimento de satisfação ao ver aquele sorriso tranquilo; soube que ele aprendera muito com suas experiências longe de mim. E tê-lo ali ao meu lado, compartilhando aqueles momentos em que ele esteve só e ainda assim continuou sua jornada sem nenhuma ajuda, era gratificante de um modo que nem eu mesmo podia compreender. Éramos dois filhos da noite que nos encontrávamos novamente após décadas, dois velhos amigos conversando como se oceanos e continentes nunca houvessem se interposto entre nós desde o momento em que nos separamos. Na realidade, nossas histórias nos uniam de uma forma sombria que só outros como nós, alheios ao tempo e a morte, podem compreender.

Mas eu precisava saber o final de sua história.

– E a terceira escolha? – Perguntei, tentando trazê-lo de volta ao presente, incitando-o a continuar.

Ele piscou ao ouvir minha voz, abandonando seu devaneio momentâneo. Voltou a me olhar.

– Naquela época acreditei que seria a melhor decisão, a terceira escolha. – Continuou. – Eu a transformaria em uma de nós. Seria extremamente fácil para mim fazê-lo, mas... eu não podia. Poucas vezes desde que você me deu seu sangue, Cloud, conheci alguém tão apaixonado pela vida como aquela humana. Ela conseguia ver beleza e amor em todos à sua volta, até mesmo em mim! E como sofria com a dor dos outros; era quase inacreditável como era altruísta a sua alma. Quase ingênua em sua própria bondade. Ajudar aqueles que necessitavam era o objetivo e o sonho de sua vida, e, por isto, ela faria qualquer coisa. Diga-me Cloud, como eu poderia arrastar alguém tão puro para o nosso mundo banhado em sangue? Ela não sobreviveria e eu não suportaria ver sua dor. Seria o pior erro, o crime mais hediondo que eu poderia cometer em toda a minha existência. Portanto, escolhi a decisão mais sensata e menos egoísta. Aquela que traria menos dor a ambos os lados.

Respirou fundo e deu um sorriso amargo antes de prosseguir.

– Eu parti. Parti sem avisos e sem hesitar. Palavras piegas nunca foram algo que eu apreciei. Mas eu a amei o suficiente para realizar seu sonho. Sempre no anonimato passei a enviar-lhe grandes quantias de dinheiro para que o usasse como bem entendesse. Mas eu sabia exatamente o que ela faria. Observando-a à distância soube que todo o dinheiro que lhe mandava era revertido para instituições que se preocupavam com o mesmo objetivo que ela tinha em mente.

“Ela nunca tentou se comunicar com este ser anônimo que lhe ajudara ininterruptamente, porque, em seu íntimo, sempre soube que era eu, assim como sempre soube que eu não era humano e que não poderia ficar ao seu lado para sempre. Mas ainda assim se contentou. Ela estava feliz. Isto era o suficiente para mim.”

Quando Christian terminou eu estava, para dizer o mínimo, abismado. Eu o conhecia. Eu o transformara. Eu passara anos de minha existência ao seu lado, contudo, em todo este tempo, nunca presenciara um momento em que ele pudesse meramente ter se importado ou, muito menos, se apaixonado por um humano. A seu ver mortais eram criaturas mesquinhas e desonestas, selvagens como animais e deveriam ser ignorados como tais. Mas aquela revelação... Christian apaixonado! Eu não podia acreditar, ou melhor, não conseguia acreditar.

Eu jamais vira aquele seu lado, capaz de abandonar suas próprias ambições egocêntricas para não interromper a vida de um mortal. E, com certa tristeza, cogitei que então eu talvez não o conhecesse tão bem como imaginava e, sobretudo, gostaria.

– Você não se arrepende? – Quis saber de repente. – De tê-la deixado?

– Sinceramente? Não – negou prontamente. – Eu tive momentos felizes com ela. O que poderia ser apenas uma simples humana tinha tanto para oferecer, para me proporcionar... Durante todo o tempo que estivemos juntos eu fui mais feliz do que julgava merecer. Eu aproveitei enquanto pude ao extremo, por isso arrependimento não é algo que eu já tenha sentido. Eu levarei as boas lembranças que tive com aquela jovem comigo para sempre... Mas acabou.

Aos poucos uma frustração se instalou em mim. Eu esperava que a história de Christian me trouxesse alívio e respostas, entretanto mais perguntas estavam surgindo em minha mente; creio que elas deveriam estar estampadas em meu rosto, pois neste exato momento Christian deu um risinho baixo e se dirigiu até mim. Parou diante de mim e agachou-se até seus olhos estarem à altura dos meus àquela mínima distância. Sua expressão era plácida, porém determinada; seus olhos escuros cintilavam na luz indireta, penetrantes, límpidos como a superfície do mar à noite.

– Assim como eu, você tem a escolha. – Disse num tom baixo, mas claro o suficiente para que eu o ouvisse com perfeição. - Pode esquecer tudo isto e continuar como estava antes de conhecer o garoto. Talvez você esteja apenas inquieto por não tê-lo matado. Talvez seja isto o que você deseja. Não posso saber ao certo. Mas, independentemente do que for fazer não se esqueça do futuro. Sei que você nunca se importa muito com o depois, com as consequências, mas, uma vez em sua morte, faça isto, Cloud. Não se esqueça que o erro de um imortal também é imortal, e nem sempre pode ser reparado.

Não fui capaz de pensar sobre todos aqueles avisos. Apenas sorri; definitivamente aquele não era mais o jovem vampiro inconsequente que eu conhecera um dia. Eu costumava acreditar que nós apenas deixávamos aflorar ainda mais o que éramos, o que havia em nosso âmago com o passar dos anos. Naquela noite Christian me provou do modo mais sutil possível que eu estava enganado. Na realidade somos mais semelhantes aos humanos do que podemos imaginar. Nós continuamos evoluindo, nos aperfeiçoando, – ou não – afinal, tempo é o que nós sempre teremos.

Toquei seu rosto, acariciando levemente sua pele gélida e macia. Ele sorriu, permitindo o gesto. Ficamos assim, em silêncio por algum tempo, apenas sentindo a ligação entre criador e pupilo. Insubstituível e inigualável. Eu fechei os olhos e me concentrei no som de sua respiração. Pude ouvir com clareza o ar entrando em seu corpo, enchendo seus pulmões e sendo expelido, devolvido ao ambiente. Hum... Aquela ação possuía um efeito tranquilizante e eu senti a tempestade em minha mente ser afastada por uma brisa tranquila, cálida e afável. Abri meus olhos e encontrei os de Christian fechados. Ele estava estranhamente plácido aquela noite, sua guarda baixa como nunca antes eu o encontrara. Vê-lo ali, diante de mim, à minha total mercê, foi desafiar o meu autocontrole.

Curvei-me lentamente, deslizei minha mão de seu rosto para seu queixo e o ergui delicadamente antes de amparar sua nuca com a outra, meus dedos se prendendo em seu cabelo claro. Minha lentidão era a deixa para que ele deliberasse sobre recusar ou não. Porém, mais uma vez, ele admitiu e aceitou meu avanço. Senti o sangue correndo com mais velocidade em suas veias quando inclinei meu rosto até a lateral de seu pescoço. Perfurei sua pele apenas superficialmente; ainda assim senti o tremor momentâneo se espalhar por seu corpo quando o fiz. Sorvi seu sangue com calma, apenas uma pequena e insignificante dose em relação ao que retirava de mortais. Não era quente ou extasiante como o de humanos, mas sangue nunca deixa de ser sangue, especialmente vindo de um pupilo meu. Isto era o que realmente tornava aquele líquido único. O laço que ele simbolizava.

Quando me afastei, passando a língua pelos lábios, ele soltou o ar com força e se levantou pouco depois. Andou alguns passos pela sala enquanto me olhava com desdém.

– Acho que tenho de caçar de novo, não é? – Indagou ele com um sorrisinho maldoso ao passar os dedos sobre as pequenas marcas em sua pele. – E a culpa é sua, Cloud, seu bastardo.

Eu ri alto ao lembrar do refrão de meu pai há tantos anos atrás, pronunciado daquela mesma forma. Ele me olhou como se eu tivesse enlouquecido momentaneamente, o que apenas me fez rir mais ainda e mais alto. Aquele sim era Christian! Podia não ser sempre tão polido comigo, mas a distração que me proporcionava era mais que suficiente.

– Cloud? Você está me ouvindo? Mas o que diabos vo... CLOUD SEU IDIOTA, EU ESTOU FALANDO COM VOCÊ!


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Notas finais do capítulo

Bem, este é o final do primeiro capítulo. Espero que tenham gostado e que continuem acompanhando. ^^
Ah, apenas para esclarecer devido a um dos comentários: sim, há um conteúdo com insinuação de homossexualidade. Durante a história é provável que mais situações assim ocorram. Portanto, se não aprovam, não leiam.



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