Saga Sillentya: Espelho do Destino escrita por Sunshine girl


Capítulo 13
XII - Encruzilhada


Notas iniciais do capítulo

Pois é, voltei de novo...

Mas... ainda estou muito chateada viu! Mas não são todos...

Enfim, mega capítulo com uma grande reviravolta!

Boa leitura!



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Capítulo XII – Encruzilhada

“No meio da noite,

Não entendo o que está acontecendo

É isso? Um fluxo incessante de agonia?

No meio da noite,

Eu posso deixá-lo ir?

Então eu posso procurar pelas sombras intermináveis? 

Elas fazem parte da sua vida?

Você nunca temerá nada

No meio da noite”.

(Within Temptation – In The Middle of The Night)

Depositei a escova em cima da penteadeira, meus cabelos estavam devidamente escovados e escorrendo por meus ombros. Abotoei o último botão de meu casaquinho azul-claro.

Meu reflexo no espelho mostrava que eu estava perfeitamente arrumada, com tudo em seu devido lugar, completa, inteira.

Mesmo assim, sentia como se algo faltasse em mim. Algo importante, algo crucial. Algo que me completava...

Baixei o olhar, fitando as palmas de minhas mãos pousadas em meu colo e suspirei.

Fazia pouco mais de vinte e quatro horas que Christian e Lucius haviam partido para Florença, indo ao encontro de Solomon. E também, faziam quase vinte e quatro horas que Aidan partira para nunca mais retornar.

Levei uma das mãos até a garganta, tentando atenuar aquela sensação sufocante, como se tivesse algo ali, impedindo-me de respirar corretamente, drenando-me pouco a pouco a vida.

Minha pele ainda formigava com as lembranças dolorosas e longínquas de seu toque apaixonado. Suas mãos fortes, nas quais um dia eu pousei todo o meu destino, trazendo-me para perto de si, apertando-me contra ele mais e mais forte, prendendo-me ao seu corpo quente e vigoroso.

O gosto de seus lábios, de seu hálito, de sua língua ávida e atrevida travando uma batalha com a minha.

E embora aquelas lembranças somente me machucassem ainda mais, eu as remoia sem cessar. Relembrava-as como se minha vida dependesse disso.

A partida e a distância de Christian já não me incomodava tanto. Mas a partida de Aidan, esta era como arame farpado em torno de meu coração, já ferido.

Suas palavras ainda rodopiavam em meus pensamentos, palavras de adeus, de consolo, de arrependimento e acima de tudo, de amor.

Levantei-me, ainda entorpecida, desligada, mergulhada no mais profundo e negro abismo.

Caminhei até a porta, abrindo-a e deixando meu quarto. Talvez um pouco de ar fresco me fizesse bem. Estava uma noite tão bela.

A mansão estava tão vazia e silenciosa quanto eu naquela noite. Sem Christian parecia que as coisas só obscureciam ainda mais para mim, e sem Aidan, bem, era muito mais do que eu era capaz de suportar.

Desci as escadas, encontrando uma Madelina um tanto melancólica. Então, acho que nossa amizade terminara muito antes de ter começado, já que Aidan partiu por minha causa.

Ela parecia imersa demais em suas próprias especulações, porque nem ao menos notou minha figura.

Também não vi Ramon nem Giuseppe, então julguei que eles devessem estar ocupados em algum canto da espaçosa mansão.

Porém, antes mesmo que pudesse respirar um pouco de ar fresco, Stella interrompeu-me, chamando-me, enquanto eu me virava um pouco receosa, principalmente por nossa conversa no dia anterior, quando ela inutilmente tentara me advertir sobre as conseqüências de meus atos.

Pena que eu não lhe dei ouvidos...

- Agatha, você viu o Damien? – perguntou ela, abaixando-se para procurá-lo atrás do sofá.

Estreitei os olhos, Damien também estava sumido?

- Não, eu não o vi. Por quê?

Ela soltou um longo suspiro, parecendo-me muito exausta e cansada, como se o procurasse por horas e horas sem obter sucesso.

- Porque não o vejo desde à tarde, e sinceramente estou começando a ficar preocupada.

- Posso te ajudar a procurá-lo. – ofereci-me gentilmente, esperançando que ela aceitasse minha ajuda e perdoasse meu comportamento grosseiro do dia anterior.

Stella sorriu e assentiu. Pelo menos alguém havia me perdoado.

Respirei fundo e decidi ajudá-la. Separamo-nos, Stella decidiu vasculhar o jardim e eu segui para o escritório de Lucius. Se ele tivesse saudades do pai, com certeza estaria lá, remoendo o fato de que ele não o levou consigo.

Abri a porta do gabinete vazio, e estivera errada. Damien não estava lá. Passei para a outra sala, arrependendo-me de entrar lá. A bagunça de dias atrás ainda estava um pouco presente, o caos causado pela luta entre Christian e Aidan, mas mesmo assim, as lembranças de nosso reencontro traziam alento e consolo para o meu coração.

Fechei a porta atrás de mim, disposta a reviver cada momento, a repassá-lo em minha mente até que ela ficasse gravada em meu cérebro.

Como a mobília ainda estava aos pedaços, encostei minhas costas à parede e escorreguei, sentando-me no chão, a tarefa de encontrar Damien esquecida por enquanto.

Cerrei os olhos e deixe que as lembranças invadissem meus pensamentos. No momento em que o reencontrei, pensei que nada mais seria capaz de nos separar, que ficaríamos juntos de verdade dessa vez, mas me enganei... Iludi-me com as fantasias de um futuro que nunca esteve nos planos do destino.

Abri os olhos, sentindo que meu coração se espatifava em um milhão de caquinhos, caquinhos que jamais poderiam ser fixados de volta.

Estava prestes a me levantar e ir embora dali a fim de evitar uma possível crise de choro, quando um objeto chamou  minha atenção.

Era possível?

Engatinhei até o que sobrara da estrutura da mesa, soterrada por escombros e restos do que um dia fora uma luxuosa mobília.

Estiquei o braço, apalpando o carpete até encontrar o que queria e puxei de lá o livro que lera há algum tempo para Damien. O livro do Rei Arthur!

Não havia dúvida, era ele mesmo, e quando o abri, vários papéis cuidadosamente dobrados e ocultados caíram de dentro, pousando no carpete.

Depositei o livro no chão e peguei as folhas dobradas. Desdobrei uma a uma; muitos eram desenhos de Damien, e que retratavam ele e o pai, e uma mulher alada protegendo-os com sua aura de luz. Deduzi que devia ser Helena na visão dele, um anjo protegendo o filho e o marido.

Sorri, abobalhada, para os desenhos, eu também tinha o hábito de retratar a figura de meu pai quando mais nova.

Apenas na última folha, foi que eu realmente me surpreendi. Não era um desenho, mas um bilhete.

Passei os olhos pelas letras grotescas e garranchosas, tentando entender cada sílaba, e conforme lia, meus olhos esbugalhavam e meu coração sofria um violento e cruel solavanco. O som de meu desespero:

Papai,

Por favor, não fique zangado comigo...

Mas eu sei o que aconteceu a mamãe e ao irmãozinho.

Quero ver eles, e me contaram onde encontrá-los.

Fui até o cemitério de Campo Verano, prometo que volto logo.

Com amor, Damien.

- Não! – sussurrei, aflita, os olhos embaçados pelas lágrimas. Damien havia descoberto sobre a morte da mãe! Mas... como? Quem contou a ele, pelo amor de Deus!

Logo abaixo, em letras muito mais caprichosas e elegantes, estava escrito:

Estou com Damien, Agatha.

Se quiser vê-lo vivo novamente, venha até o cemitério à meia-noite, sozinha.

Se trouxer alguém com você, Damien pagará o preço.

Levei uma das mãos à testa, sufocando. A ideia de Damien estar fora da mansão era inconcebível para mim, se Ducian o encontrasse e colocasse as mãos nele...

Levantei-me com um pulo do chão, o bilhete de Damien era amassado por minhas mãos trêmulas e pegajosas.

Desci as escadas em um rompante, saindo para a noite estrelada e dirigindo-me até um dos carros que estava estacionado ali. Daisuke, que estava por perto e viu meu desespero, veio atrás de mim, visivelmente preocupado e confuso. Abri os portões de grades de ferro e tornei até a garagem. Durante todo o trajeto, ele me seguiu.

- Agatha, onde você está indo? Por que está pegando um dos carros? Agatha... espere!

Ignorei-o e entrei no carro, girando a chave e dando a partida. O motor roncou de leve, e eu preparava-me para escapulir dali, quando me lembrei de um fato crucial, eu não conhecia nada de Roma!

Daisuke ainda estava com as mãos sobre as minhas no volante, a face tombada na minha direção, tentando entender minhas atitudes. Respirei fundo e contei mentalmente até dez, não deu certo, ainda estava em pânico.

- Agatha, conte-me o que está havendo, pelo amor de Deus! – suplicou ele, tão ou até mais desesperado do que eu.

Olhei para ele, as lágrimas correndo pelos olhos, o coração espremendo-se pela ideia de Damien estar vagando por uma cidade tão populosa e grande completamente sozinho.

- Deixe-me ir! – berrei para ele, tentando tirá-lo de meu caminho, ele não via que estava me atrapalhando?

Ele franziu o rosto, tentando entender minha tentativa desesperada de sair dali, e então seus olhos pequenos arregalaram-se na medida do possível e seus lábios escancaram.

- Agatha?

- Saia daqui! – gritei, mais alto, mais desesperada, louca para sair logo dali.

Seus olhos pequenos ponderaram por alguns segundos, as mãos hesitando em deixarem as minhas.

Ele não entendeu meu desespero, não compreendeu minhas inúteis tentativas de deixar logo a mansão, mas mesmo assim, suas mãos recuaram e permitiram que eu seguisse meu caminho, então girei a chave na ignição, dando a partida no carro preto e lustroso.

Em seguida, eu já deixava a mansão a toda velocidade, uma trilha de fumaça restara para trás. Daisuke ainda me acompanhava com seus olhos, confuso e atônito. Costurei o trânsito engarrafado com agilidade, tomando rotas desconhecidas, enquanto meus dedos cravavam-se no volante com força.

Pedi ajuda e instruções a maior parte do caminho – como já tinha uma medíocre noção de italiano, não encontrei muitas dificuldades para encontrar o cemitério de Campo Verano.

Retirei a chave da ignição, observei meu rosto no espelho retrovisor, ele estava cauteloso em demonstrar suas emoções, mas no fundo, eu sabia, estava tão assustada e apavorada quanto um rato encurralado em um beco escuro e pútrido por uma ave de rapina.

Engoli em seco, eu sabia perfeitamente o que estava havendo ali. Era uma armadilha, Damien era uma isca para me atrair para longe da mansão. Isso significava que tinha um traidor em Ephemera, se Lucius soubesse que colocaram a vida do filho em perigo para porem as mãos em mim...

Respirei fundo, tentando acalmar meus nervos, enxugando os olhos úmidos, ouvindo o canto estridente das cigarras, o sibilar do vento frio, e mais nada.

Conforme os segundos passavam, meu desespero crescia dentro de mim, alimentando uma fera impulsiva e inconseqüente. Eu sabia que tinha que ir até lá e encontrar Damien. Sabia que teria que me sacrificar pelo bem dele. Sabia que não haveria volta para mim. Mas então me lembrei de algo: o que eu tinha a perder?

Então, não hesitei mais. Deixei a segurança do carro e adentrei ao cemitério, passando primeiramente pelas grades altas de ferro, afastando-as o suficiente para que eu pudesse me esgueirar pela fresta aberta, depois vendo a passarela de pedra desenrolar-se a minha frente.

Estaquei, o coração na boca, arfando, meus pensamentos colidiam, causando uma verdadeira catástrofe em minha cabeça, e sentia que ela podia explodir a qualquer momento.

Abri o bilhete amassado de Damien mais uma vez, só agora notando o modesto desenho que havia logo abaixo das letras garranchosas. Era um grande túmulo de mármore, com uma estátua de querubim elevando-se dele.

Então, eu devia procurar por um túmulo com um querubim. Ótimo, devia haver milhares de túmulos como aquele ali.

Mas decidi não perder mais tempo, com eficiência costurei os túmulos menores, meus olhos varriam a escuridão infinita atrás de algo parecido com o desenho de Damien.

De alguma forma, sentia-me responsável por ele. Damien era membro da minha família, do que restara da família de meu pai para ser franca. Sentia-me no dever de salvá-lo e protegê-lo.

Então, corri para a escuridão, sendo engolfada e suprimida pelo silêncio amedrontador e por meu pânico monstruoso.

A noite já não me parecia mais tão bela e iluminada. Os poucos raios prateados, provindos da lua, penetravam o cemitério, iluminando os túmulos e mausoléus, mas enegrecendo meu trajeto.

Sabia que se gritasse por Damien, revelaria minha posição, então tive que confiar em meus instintos e em minha visão limitada.

E minutos depois, eu já arfava, o coração já sendo esmagado por meu maior temor naquele momento: perder mais uma pessoa de minha família.

Concentrei-me em ouvir qualquer ruído, qualquer farfalhar de folhas nas majestosas árvores que circulavam os muros do cemitério eram captados por meus ouvidos. O cheiro de terra úmida e grama ardiam em meu nariz sensível.

Corri até que meus pés não suportassem mais, e ofegante, sem fôlego algum, estaquei no meio de um espaço aberto, sendo rodeada por todos os lados pelas estátuas de anjos e querubins, todos com as palmas frias e marmóreas voltadas para cima, as asas estendidas, na face sem vida um olhar de compaixão.

Respirei devagar, tentando encontrar uma saída para aquela situação desesperadora. Se eu ao menos soubesse onde Damien estava...

O vento tornou-se mais ríspido de repente, vergastando meus cabelos em meu rosto atordoado. Por apenas um milésimo de segundo, vislumbrei algo diferente, algo pequeno, recurvado sobre um grande túmulo de granito com a figura de um anjo brotando de cima.

Depois, ouvi um gemido... Um gemido infantil!

E não pude mais me conter, lancei-me em sua direção, o coração sentindo o alívio por ver Damien bem e salvo.

- Damien! – berrei, chamando sua atenção, demovendo-o do túmulo, os olhos chorosos, os lábios trêmulos e então, ele também correu para meus braços.

Recebi-o como uma mãe receberia seu filho depois de uma peraltice. Afaguei seus cabelos caramelos, apertando-o em meus braços, ouvindo seu choro agoniado, sua voz manhosa:

- Ela não está aqui... – reclamou ele, fungando – Disse que ela estaria aqui... Mas... ela não está...

- Shhhhh... Está tudo bem agora... Tudo bem... Estou aqui, Damien... – tentei acalmá-lo de alguma forma, suavizar seu sofrimento. Por Deus, ele era apenas um menino e já precisava lidar com a dor da perda.

Abaixei-me, ainda com ele enroscado em meu corpo, como um filhote de gatinho assustado.

Damien afastou seu rosto de meu ombro, os olhos eram como duas piscinas claras e cintilantes.

- Mentiu para mim... Papai mentiu para mim... Mamãe está...

Silenciei seus lábios com meu dedo indicador, recebendo dele um biquinho em troca. Mais uma vez, eu entendia sua dor, seu sofrimento.

- Eu sei o que está passando, acredite em mim. Mas seu pai queria apenas lhe proteger, evitar que você sofresse. Não o culpe por amá-lo tanto.

Damien baixou os olhinhos, visivelmente tristonho e franziu os lábios trêmulos, mas depois limpou as lágrimas da face. Mas não havia mais ninguém ali. Só então me dei conta de algo...

- Damien, precisa me dizer, quem te contou isso? Quem te disse que sua mãe estaria aqui? Quem te trouxe até aqui?

Eu sabia que agora isso não me serviria de nada, afinal, quem era eu para julgar? Lucius era o único que poderia fazer isso, e ainda assim ele estava viajando, mas mesmo assim, sentia uma enorme repulsa por usar um menino tão doce e inocente para me atrair para fora da mansão.

Seja quem for, essa pessoa sabia de minha afeição por Damien, sabia que eu viria atrás dele de qualquer forma, então é muito provável que essa pessoa tenha tramado esse plano há muito tempo, e com a viagem de Lucius, viu a oportunidade perfeita de pô-lo em prática.

Damien não entendeu aonde exatamente eu queria chegar, seus olhos arregalaram-se de confusão e ele entreabriu os lábios.

- Foi... Foi...

- Ora, ora, ora, o que nós temos aqui?

Arregalei os olhos, espantada, congelada, lívida como um fantasma, tão sem expressão ou vida quanto as estátuas de anjos que nos cercavam.

Da negritude interminável, recuando das sombras elegantemente, saiu alguém...

A primeira coisa que meus olhos puderam notar foi o manto sedoso vermelho escarlate, sobrepondo roupas tão negras quanto a noite.

O cabelo era castanho-escuro e ondulado, combinando com os olhos igualmente castanhos e tão irônicos, que quando pousaram em meu rosto, olharam-me tão profunda e intimamente que meu coração sofreu um violento solavanco.

A pele era pálida, e o corpo um tanto esguio. No todo, era um homem muito bonito, e aparentava não ter mais do que vinte anos, mas eu sabia que era apenas impressão minha.

Seus lábios cheios curvaram-se em um sorriso malicioso, enquanto eu escondia Damien atrás de meu corpo, cogitando seriamente a possibilidade de pegá-lo e correr com ele em meus braços. Quantos metros eu conseguiria antes de ser derrubada cruelmente?

Engoli em seco com a resposta estalando em minha mente; não muitos.

O garoto tombou a face de lado, observando-me de todos os ângulos possíveis, seus olhos percorriam todo o meu corpo, deixando-me ainda mais apavorada, cercando-me como duas serpentes peçonhentas.

Ele cruzou os braços sobre o peito um tanto musculoso, enquanto Damien abraçava minhas pernas, escondendo a face temerosa. Minha respiração era dificultosa, como se o ar pesasse naquele lugar mórbido e lúgubre.

- Mas que cena mais linda e comovente... – murmurou ele, alargando seu sorriso ainda mais, como se meu pânico fosse uma boa piada para ele, talvez e fato fosse – Tão... tocante!

Escancarei os lábios, tentando inutilmente estabilizar minha respiração, mas meus pulmões estavam comprimidos, e meu coração batia dolorido em meu peito.

- Concentre-se na missão, Benjamin. – murmurou outra pessoa, recuando da negritude infindável, deixando seu esconderijo, detrás dos mausoléus mais ornamentados, e postando-se a uns cinco metros do garoto.

Era uma garota. Trajava-se nas mesmas roupas negras e elegantes e envolvia-se no mesmo manto sedoso e vermelho sangue.

Seus cabelos eram lisos e de um castanho chocolate tão intenso que praticamente tremeluzia na escuridão. Uma espessa franja, cortada a navalha, emoldurava os olhos também castanhos, porém tão severos e intimadores, que instintivamente, depois de tê-los fixados em meu rosto por apenas alguns segundos, eu recuei, receosa, levando Damien comigo.

Sua pele era tão pálida quanto à do garoto, e os lábios avermelhados estavam comprimidos, traçando uma linha rígida, enquanto seu rosto era uma máscara inflexível, não demonstrava emoção alguma.

O garoto tombou sua face irônica para ela, erguendo as sobrancelhas escuras como sinal de reprovação.

- Não estrague minha diversão, Crystal. Estou apenas brincando.

A garota não disse ou expressou absolutamente nada, seu rosto continuava indecifrável. Mas eu havia estacado depois de ouvi-lo dizer seu nome. Crystal? Então ela era Crystal Sherwood?

Tornei a fitá-la, observando cada traço seu. E engoli em seco.

Ela era dona de uma beleza tão estonteante, tão exótica, que eu senti ser apunhalada dolorosamente no peito. Diante de mim, estava a ex-namorada de Aidan. Mesmo que a história tenha acontecido a muitos anos atrás, e não tenha significado nada para ele – já que naquela época ele não se apegava a nada –, surpreendi-me pelo fato da simples e mera presença dela conseguir me incomodar.

- Esse é o seu problema, Benjamin, nunca leva nada a sério. – retrucou ela, a expressão ainda vazia e distante, como uma boneca sem feições.

O garoto riu em resposta, então tornou a nos fitar, suas duas presas frágeis e acuadas, como dois pássaros diante de dois felinos, letais e graciosos. Então, o garoto, Benjamin, soltou um longo suspiro, parecendo-me extremamente entediado.

- E agora? O que faremos com esses dois? – questionou, sacudindo a cabeça e estalando a língua – Quanto desperdício, afinal, a garota não é de se jogar fora... – e passou a ponta da língua nos lábios, abrindo seu já familiar sorriso malicioso para mim.

A garota não esboçou nada, mas seu movimento gracioso e ágil, silencioso como o vento, já falou por si só.

Ela retirou uma pequena adaga de dentro de seu manto vermelho e a atirou em minha direção. O objeto rasgou o ar com graça e velocidade, cintilando na escuridão, até se chocar contra mim, mais precisamente contra meu braço, a ponta afiada cortando o tecido de minha blusa e minha pele, abrindo um rasgo profundo, enquanto a adaga cravava-se no granito de um dos mausoléus atrás de mim e Damien, abrindo uma fenda na pedra.

Arfei, abaixando-me, levando os dedos até a ferida latejante, vi um filete de sangue escorrer pela minha blusa e pingar no chão. Damien olhou para mim, assustado, chorando novamente, enquanto eu mesma tentava não ceder às lágrimas ou gemer pela dor.

O garoto Benjamin conteve as mãos de Crystal, que já se preparavam para atirar outra adaga na minha direção, desaprovando sua atitude.

- Você está louca? As ordens de Lorde Ducian foram bem claras para mim, a garota tem que ser levada viva!

Ela puxou as mãos abruptamente, como se o simples toque das mãos dele em sua pele a enojasse, então me fuzilou com seus olhos castanhos e intensos.

- Ele disse que ela tinha que ser levada viva, não inteira!

As palavras dela causaram uma crise de riso em Benjamin, que atirou a cabeça para trás a fim de rir com muito mais vontade e gosto. Seu riso ecoava através das lápides, doendo em meus tímpanos.

- Crystal, Crystal, você está levando isso para o lado pessoal... Só porque seu amado Aidan está apaixonado por ela! – e riu novamente, divertindo-se com a minha desgraça e com o ciúme da menina.

- Cale a boca, Benjamin! – ladrou ela, visivelmente irritada, fazendo o garoto recuar diante da fúria e amargura em seus olhos.

- Tudo bem, não está mais aqui quem falou.

- Pelo menos, o trato foi comprido conforme o planejado. – murmurou Crystal distraidamente, enquanto eu tentava decifrar suas palavras – Essa raça pode der traiçoeira, mas quando ameaçada honra seus juramentos.

- Não tenho como argumentar contra isso. – retrucou Benjamin tornando a cruzar os braços sobre o peito.

Ao lado dele, Crystal assumiu uma posição ofensiva, preparando-se para atacar tanto a mim quanto a Damien. Os olhos castanhos encheram-se de uma hostilidade alarmante, uma fúria palpável e tangível.

- Agora, só nos resta cumprir a última parte do acordo.

Então, ela se moveu. Seu corpo magro e gracioso elevou-se do chão, ganhando velocidade e altura, o manto escarlate agitou-se enquanto ela rodopiava no ar, esticando uma das longas pernas em nossa direção, o salto agulha pronto para acertar meu rosto em cheio e nocautear-me.

Meu único instinto foi fechar os olhos e esperar pela dor do golpe. Mas ao invés disso, uma muralha de terra foi erguida, criando uma proteção intransponível ao meu redor, uma parede.

A terra elevou-se por conta própria, e Crystal acertou o golpe na rocha dura, ao invés do meu rosto. Ela arregalou os olhos castanhos, apoiou ambas as mãos no chão, recuando com uma série de graciosas piruetas. Ela era uma guerreira nata, isso eu precisava admitir.

Mas...

Quem havia me salvado?

Damien que continuava agarrado às minhas pernas, não parecia ter feito aquilo, muito menos poderia, eu e ele éramos alvos indefesos devido aos nossos selos.

A parede de rocha desmoronou diante de mim – tão rápido quanto surgiu – e ao meu lado, pousou uma figura esguia e graciosa. Tombei a face para o lado a fim de ver o rosto de meu salvador.

- Daisuke! – Damien berrou, tão espantado quanto eu, bom, talvez nem tanto, afinal ele me viu sair da mansão em disparada, é natural que tenha me seguido e agora esteja bem aqui, disposto a nos defender com sua própria vida, arriscando sua existência por mim e Damien.

A pouco mais de quinze metros de nós três, Benjamin sorriu:

- Ora se não é o oriental, servo fiel de Lucius! Mas que surpresa! Faz quantos anos mesmo? – Benjamin estreitou os olhos, esforçando-se para se lembrar – Ah, sim! Quase dez anos!

- Você continua sendo o capacho de Lorde Ducian pelo que vejo, Benjamin. – murmurou Daisuke a nossa frente, os ombros tensos, os punhos cerrados, o rosto um mistério para mim.

- Ah, você ainda guarda ressentimentos de nossa última luta? Por que não estou surpreso com isso? Afinal, se não me engano, eu lhe dei uma bela surra...

- Não se gabe muito, Benjamin, eu evoluí muito nesses anos!

Benjamin ignorou a ameaça presente em sua voz, fingiu uma expressão de tédio, como se nada pudesse abalá-lo.

- Tanto faz para mim, um perdedor sempre será um perdedor.

E então, Crystal e Benjamin assumiram suas posições de batalha, o clima tornava-se cada vez mais tenso e pesado, a batalha iminente espreitava.

- Não estrague tudo, Benjamin. – murmurou a garota, enquanto uma fúria ameaçadora emoldurava suas feições belas, causando o riso no outro menino.

- Como se eu já não tivesse escutado essa!

Abracei Damien por instinto, testemunhando quando Daisuke tombou sua face receosa para trás, os olhos sem brilho algum, sem vida alguma, desesperançados. Então eu soube que naquela batalha só sairia apenas um vencedor, e o perdedor perderia a vida. Assim era a guerra.

- Agatha, eu quero que se esconda e quando eu disser, pegue Damien e corra o mais rápido que puder!

Assenti, engolindo em seco, a garganta de repente era obstruída por um bolo insolúvel, o medo de perder alguém importante para mim, alguém de minha nova família era aterrador e sufocante.

Antes de pegar Damien nos braços e correr atrás de um dos grandes e ornamentados mausoléus, ouvi a voz irônica de Benjamin murmurar:

- Isso não irá salvá-los.

Escondi-me atrás de uma das lápides, observando as três figuras imóveis e tensas preparar-se para a luta de vida e morte.

Meu coração acelerava em meu peito, desolado, por saber que não havia outra escolha, por perceber que a guerra para a qual eu caminhava era assim. Impiedosa. Cruel. E acima de tudo, perigosa.

Daisuke preparou-se, estalando as juntas de seus dedos, e então, de repente, no meio da noite, naquele lúgubre e tenebroso cemitério, a batalha deu-se inicio.

Os primeiros a se moverem foram Crystal e Benjamin, agindo em conjunto, os movimentos perfeitamente sincronizados, enquanto eles lançavam-se na direção de Daisuke, cada um de um lado, tentando cercá-lo.

O primeiro golpe veio tão gracioso letal quando o bote certeiro de uma serpente, ou de um leão majestoso. Ambos atacaram simultaneamente, a organização da dupla era algo impressionante, quase como se eles partilhassem da mesma mente, dos mesmos pensamentos, do mesmo instinto assassino.

Os punhos de ambos foram direcionados para a figura imóvel de Daisuke, que nem mesmo respirava, arregalei os olhos, a garganta seca e arranhada impedia-me de berrar, mas não foi preciso, pois no instante seguinte, movendo-se tão rápido e silencioso quanto o vento, Daisuke juntou ambos os braços na frente de seu corpo, unindo as palmas das mãos e então, elevou do nada, com um domínio e uma destreza perfeita, um amontoado de rochas e terra, formando uma densa parede ao redor de todo o seu corpo.

Os punhos furiosos de Benjamin e Crystal atingiram a muralha pedregosa, e então, ambos, não me parecendo nem um pouco surpresos, recuaram, movimentando-se quase simultaneamente novamente.

Tornei meus olhos para Daisuke, e então me surpreendi quando a muralha de terra e pedra cedeu, desfazendo-se com a mesma velocidade que surgiu, porém  a figura dele não se encontrava mais lá. Ele havia sumido!

Percebi, fascinada e deslumbrada, que ele estava abaixo do solo, utilizando sua perfeita manipulação para se locomover no subsolo.

Crystal e Benjamin estacaram, um de frente para o outro, os olhos estreitados, procurando por Daisuke. E quando ele finalmente reapareceu, lançou um punhado de terra sob os pés de Crystal, tentando puxá-la para baixo e imobilizá-la em sua camada pegajosa de terra úmida.

Porém, como nada era tão simples, Crystal escapou de sua emboscada, suspendendo seu corpo magro e gracioso no ar, saltando vários metros para trás, e pousando com delicadeza no solo novamente.

Daisuke finalmente se revelou, deixando seu esconderijo no subsolo, elevando-se com graça do chão, juntamente com uma densa camada de pó.

Benjamin que estava mais próximo tentou acertá-lo, um sorriso cruel e vitorioso emoldurou seus lábios quando ele achou que poderia levar a melhor, mas mais uma vez, Daisuke surpreendeu seus adversários, repelindo o corpo de Benjamin com uma poderosa rajada de vento, que chegou até mim e Damien também, fazendo-me esconder meu corpo na estrutura da lápide, agarrada ao corpo do menino.

Meus cabelos foram violentamente vergastados, mas no instante seguinte, a rajada já se fora, não restando nada em seu lugar.

Tornei a observar o desenrolar da batalha, com o coração na boca. Àquela altura, a dupla Benjamin e Crystal já atacava novamente, os dois movendo-se com muita precisão e cautela, enquanto Daisuke fazia o que podia para se defender e desviar dos golpes.

Crystal então tomou a dianteira, girando graciosamente sobre os próprios pés, tão rápida quanto um funil e vento, ela venceu a defesa de Daisuke, encontrando a brecha perfeita em sua defesa e não hesitou, acertou um forte chute com a ponta de suas botas na face de Daisuke, que gemeu, atordoado, e cambaleou, um tanto tonto, mas recuperou-se a tempo de se defender do golpe de Benjamin que vinha logo atrás.

Como era possível que duas pessoas se movimentassem com tamanha disciplina e perfeição? No mínimo eles deviam ter sido rigidamente treinados para lutar daquela maneira assombrosa.

Principalmente a garota. Crystal parecia a definição exata das palavras graça e ferocidade.

Observei enquanto ela, mais uma vez, investia contra Daisuke, usando um mausoléu de granito como apoio para seus pés, ganhando impulso e força, como uma catapulta, e então conseguindo acertar um segundo golpe, desta vez na cabeça de Daisuke, conseguindo retirar-lhe um pouco da concentração na batalha.

Ele reagiu em resposta ao golpe, deteve um segundo golpe bem a tempo, bloqueando-o com os braços, usando-os como uma sólida proteção para o rosto, e então, segurando em seus tornozelos para lançá-la para trás.

Crystal recuou, cambaleando um pouco a fim de recuperar o equilíbrio, e foi a vez de Benjamin atacar. Cruel e veloz, com um instinto assassino no olhar, ele investiu, não com a mesma graça de Crystal, mas com a mesma perfeição e cautela.

Talvez seus movimentos só não se equiparem aos de Aidan e Christian. Pois eu vi do que eles eram capazes quando entravam em uma luta dessa magnitude.

Cercando-o como um predador cerca a sua presa, Benjamin atacava, e se falhava em furar a defesa de Daisuke em determinado ponto, ele tentava pelo outro, sempre fracassando, mas eu não podia contar vitória por conta disso.

Daisuke na maioria das vezes utilizava as barreiras de terra para se proteger dos golpes, em outras invocava sua poderosa rajada de ventos para fazê-los recuar, e em outras poucas, recebia a violência do impacto dos golpes violentos.

E pensar que ele se metera nisso por minha causa... Bem, e de Damien também.

Parece que nós três fomos vítimas de uma emboscada, e muito bem arquitetada pelo visto.

Tornei minha atenção para a batalha quando um brilho alaranjado entrou em meu campo de visão, Daisuke agora usava das labaredas intensas do fogo para tentar afastá-los, seu último recurso, ao que pude notar, e desesperado.

Observei, chocada e sem qualquer reação, ele revestir o próprio corpo pelas chamas, impedindo a dupla de se aproximar, e sorri, nem mesmo os Mediadores podiam contra aquele seu trunfo.

No instante seguinte, ele disparava um funil de fogo na direção de Crystal e Benjamin que faziam de tudo para manter distância do fogaréu.

Eles o circularam, buscando a proteção das lápides contra as chamas algumas vezes, mas paralisei ao ver Benjamin retirar um tubo cilíndrico de dentro de seu manto, um sorriso cruel estampava sua face sádica.

Ele buscou um melhor ângulo, aproveitando-se enquanto Daisuke cuidava de perseguir Crystal, levou o pequeno tubo aos lábios e então o soprou.

Algo cintilante e com uma ponta afiada voou em direção a Daisuke, atingindo seu pescoço em cheio, fazendo-o recuar pelo impacto no mesmo instante, levando a mão até o pescoço, as chamas desaparecendo de seu corpo no mesmo instante.

Eu tremi, apertando Damien em meu corpo, escondendo sua face, não permitindo que ele visse nada. Eu suava frio, vendo Daisuke apoiar-se em uma das mãos, ajoelhando-se no chão e gemendo de dor. O que raios eles fizeram com ele?

Benjamin o observou, sereno e indiferente, sorrindo cruelmente enquanto Daisuke apalpava o pescoço, retirando de lá um pequeno dardo e deixando-o cair em meio à terra fofa.

Crystal aproximou-se lentamente, como se já pudesse prever o inegável desfecho daquela batalha.

Droga! Mordi os lábios, se ao menos eu tivesse meus poderes...

- Funcionou? – questionou ela, estreitando os olhos cor de chocolate.

Benjamin assentiu com a cabeça, alargando seu sorriso ainda mais.

- Não se preocupe, isso é veneno de uma aranha teia de funil, até mesmo um Elemental cairia diante de algo tão potente.

Ela colocou ambas as mãos na cintura, observando enquanto Daisuke arfava, tendo dificuldades para respirar, e eu me desesperava, escondida atrás daquelas lápides.

Eu desejava poder correr naquele momento, mas minhas pernas teimavam comigo, e entorpeciam-se rapidamente, enquanto eu mesma gelava dos pés à cabeça.

- Levará horas para que os poderes curativos dele imunizem o veneno. Mas, devemos nos apressar. – comentou Benjamin, despreocupadamente, enquanto se aproximava da figura recurvada e atordoada de Daisuke, pronto para nocauteá-lo.

Eu tremi, não sabia o que fazer... Devia correr com Damien? Mas e Daisuke? O que faria? Maldição!

Apertei os olhos para a cena, preparando-me para correr com Damien o mais depressa possível, o mais rápido que pudesse, porém, enquanto Benjamin se preparava para desferir o golpe final em Daisuke, algo extraordinário aconteceu, em um último e desesperado movimento para salvar minha vida e de Damien, Daisuke levantou-se do chão, mesmo suando e arfando, surpreendendo Benjamin e Crystal.

- Idiota, cuidado! – ela berrou, preparando-se para se proteger do impacto final de seus poderes.

Benjamin, assustado como um gatinho, levou um dos braços ao rosto, protegendo-o, enquanto Daisuke cerrava os punhos, elevando seu corpo, deixando-o ereto, apenas para abaixá-lo violentamente depois, em um rompante.

Seus punhos chocaram-se com o solo, e algo incrível e fantástico aconteceu, uma onda de terra e rocha elevou-se do chão com o impacto, varrendo tudo ao seu redor como um grande e poderoso maremoto.

A onda varreu lápides e mais lápides, empurrou Benjamin violentamente para trás, e envolveu a figura pasmada de Crystal.

Nem mesmo eu esperava por aquilo, e não tive tempo para mais nada, a não ser, esconder meu corpo atrás da lápide na qual me encontrava, abraçando Damien, pronta para receber um possível golpe em seu lugar.

O maremoto de terra ainda destruiu muitas lápides depois de passar por mim, mas estranhamente, eu estava bem.

Depois que a movimentação cessou, restou em seu lugar apenas o silêncio e o vazio deixado pela devastação.

Abri meus olhos a fim de registrar o caos que agora se encontrava ao meu redor: lápides, túmulos e mausoléus destruídos, estátuas de anjos tombadas, e uma imensa cratera aberta onde Daisuke estava.

Fitei-o, vendo que o veneno já lhe consumia e esgotava as poucas forças remanescentes, e quando seus joelhos cederam, seu corpo tombou no solo, seu rosto – uma máscara contorcida pela dor e pelo cansaço –, os lábios franzidos, os olhos lutando para não se fechar, ele sussurrou suas últimas palavras antes que seu tronco desabasse no solo e sua face se enterrasse em meio à terra fofa e úmida:

- Agatha, corra...

Agindo por puro instinto, segurei na mão de Damien, levantando-me dali, deixando meu esconderijo e correndo, como jamais corri em minha vida.

Contornei lápides, sepulcros, estátuas de arcanjos e querubins, e obriguei minhas pernas dormentes a correrem, lutando desesperadamente para salvar minha vida e a vida de Damien. Por que se eu morresse, quem o protegeria?

As lágrimas embaçavam minha vista, prejudicavam-me em minha fuga desenfreada, e atrapalhavam-me em salvar nossas vidas.

Eu não precisava me virar para vê-los atrás de mim, os fantasmas, os demônios que naquele momento me perseguiam. Não. Eu podia senti-los. O calafrio em minha espinha, o hálito gelado em minha nuca, o gelo infiltrando-se em minha pele até alcançar meus ossos, a dormência alastrando-se por meus membros, tudo isso eram indícios de que estava sendo perseguida pela própria morte, por meus maiores e piores medos, por tudo do qual eu consegui fugir durante todos esses anos.

E agora, ali estava eu, encurralada por eles...

Subitamente, parei, cessando minha corrida desenfreada. Olhei em derredor, desesperada, e então, encontrei uma última e desesperada tentativa de salvar aquele menino.

Havia um mausoléu cuja tampa estava quebrada e lascada, um túmulo que datava de mais de um século atrás.

Usando de minhas forças, empurrei a tampa de granito lascada, abrindo um espaço tão pequeno que somente Damien poderia passar e se esconder lá.

Abaixei-me até ele, segurando em seus ombros pequenos, seus olhos – assim como os meus – encontravam-se chorosos e brilhantes pela despedida iminente.

- Preciso que se esconda ali e não saia até que seja seguro!

Damien entreabriu os lábios rosados, olhando-me com desespero e obstinação.

- Não! – ele sussurrou, a voz doce e infantil tomada pelo medo.

Respirei fundo, não havia tempo a perder.

- Eu prometo que tudo ficará bem, você precisa fazer isso, por mim, Damien, por favor...

- Você promete que a gente vai se ver de novo? – perguntou ele, inconscientemente fazendo com que meu coração se afogasse ainda mais em tristeza e saudades.

Dei um sorriso de incentivo a ele e afaguei seus cabelos macios.

- Eu prometo.

Ele engoliu o próprio choro e assentiu, encolhendo-se para passar na pequena fresta que eu havia aberto, escondendo-se dentro do túmulo.

Ainda vislumbrei aqueles olhos azul turquesa uma última vez antes de fechar a abertura, movendo a tampa quebrada e pesada.

Damien ficaria bem. Essa certeza era a minha única consolação, bom, porque eu, eu não. Eu não sairia dali bem, muito menos poderia cumprir a promessa que fiz a ele, porque meu destino havia me encontrado, era irrevogável. Era inevitável. Essa era a minha sina, a minha maldição.

Caminhei através dos túmulos decadentes, tendo a certeza absoluta de que meus dias de felicidade terminariam ali, e apenas o tormento e a opressão seriam meus parceiros agora. Talvez até a morte também se juntasse a mim.

Sequei os olhos com as costas da mão e esperei pela vinda da mão do destino. Pela vinda da espada, que recairia sobre a minha cabeça, inevitavelmente.

Olhei em derredor uma última vez, só então me lembrando do ferimento em meu braço, mas não me importei com ele. Que diferença faria? Eu estava morta de qualquer maneira.

Tola, o quão tola eu fui. Pensei que tudo daria certo, pensei que tudo ficaria bem.

Ingênua, pensei que pudesse fugir de meu destino. Pensei que pudesse driblar a morte mais uma vez. Mas apenas me iludi...

Porque meu destino é condenação, é perdição, é a morte...

E isto se provou a única certeza em meu caminho atribulado, em minha vida desgraçada.

A única verdade. Não, não há como negar isso.

Ao longe, passos ecoaram, e uma figura recuou das penumbras, envolta em seu manto vermelho, com seus olhos mortíferos e letais, caminhando de forma elegante com sua postura superior, Crystal havia me encontrado. Mas não encontrei o outro garoto.

Eu a encarei, olho no olho, face a face, sem me deixar intimidar. Porque embora o fogo da rivalidade queimasse em nossos corações, e nós duas amássemos o mesmo homem, nós duas o havíamos perdido, para sempre...

Ela sustentou seu olhar ameaçador para mim, franzindo o cenho, tanta mágoa, tanto ressentimento havia naquele olhar, e mesmo assim, ao fundo, ela sofria como eu, sofria a perda de seu grande e único amor.

O vento soprou, gelado e rude ao nosso redor, arrepiando minha pele, agitado meus cabelos.

- Sempre me perguntei o que ele viu em você. – murmurou ela, a voz carregada de amargura, por, obviamente, ter sido trocada por uma garota como eu, descendente de seus maiores inimigos em uma guerra infindável e sangrenta.

Crystal estreitou os olhos e trincou os dentes, enquanto eu nada esboçava, nada dizia, nada fazia, nem ao menos respirar corretamente, pois o ar em meus pulmões era pesado demais, denso demais, como o ódio de Crystal por mim naquele momento.

- Mas agora que a vejo, simplesmente não consigo aceitar... – terminou ela, sorrindo com amargura e baixando a face.

No instante seguinte, ela se movia como um fantasma, não me dando tempo nem mesmo para reagir corretamente. Uma de suas mãos fechou-se como uma algema de ferro em meu pulso, enquanto ela puxava meu braço violentamente para trás, postando-se atrás de mim, prendendo meu braço imobilizado em minhas costas, derrubando-me de joelhos no solo, fazendo-me cair por terra.

Ela apertou meu braço com tanta força que eu até mesmo pude ouvir o estralo de meu osso, reclamando do esforço, enquanto eu gemia de dor, mordendo a língua com força para não gritar.

- Você é patética! – exclamou, aumentando a pressão de suas mãos e por um triz não quebrando meu braço.

Ela aproximou seus lábios de meu ouvido, sussurrando maldosamente, divertindo-se com meu sofrimento:

- Eu farei da sua vida um inferno, Agatha. Você me pagará muito caro! E acredite em mim, a morte será a sua salvação, a sua única forma de se livrar de mim.

Trinquei os dentes com força quando ela puxou-me para si, ainda apertando meu braços nas minhas costas, e espalmando sua mão livre em meus ombros, fazendo-me caminhar pelo cemitério novamente.

Depois de alguns angustiantes minutos, nós duas chegávamos aos portões do cemitério, e eu vi quando Benjamin, tendo o corpo inconsciente e agonizante de Daisuke sobre os ombros, o depositou no porta-malas de um carro preto sedan, como se ele fosse um saco de batatas, e não uma pessoa.

Ele fechou o porta-malas, assobiando alegremente, quando nos viu, um sorriso cruel emoldurando seus lábios.

Depois ele olhou em derredor, parecendo-me confuso.

- Onde está o garoto?

Crystal deu de ombros, inconscientemente apertando mais meu braço imobilizado.

- Esqueça ele, não há tempo. Se demorarmos demais para levar esses dois até Lorde Ducian, o garoto pode se recuperar do veneno e então teremos sérios problemas.

- Tem razão. – Benjamin concordou e então abriu a porta do carro preto, com vidros tão escuros que mal se podia enxergar quem estava no volante.

Benjamin entrou no carro e Crystal forçou-me a entrar também, soltando meu braço dolorido e dormente, para o meu alívio, e sentando-me ao lado de Benjamin.

Olhei para a frente, e mesmo na escuridão que prevalecia dentro daquele automóvel, pude ver uma figura ao volante, um homem, cuja careca reluzia na pouquíssima luz noturna, oriunda da lua, nada mais.

Crystal entrou no carro, fechando a porta e retirando uma adaga reluzente de dentro de seu manto, apontando-a para mim, enquanto eu recuava, assustada pela proximidade da arma com o meu rosto.

- Se tentar alguma gracinha, eu corto a sua língua! Entendeu?

Assenti, sem desviar os olhos da lâmina afiada. Se tinha algo que descobri sobre Crystal é que ela não hesitaria em me machucar, ela podia muito bem decepar um de meus membros, contanto que eu não morresse ela não seria punida pela ousadia.

O homem careca deu a partida no carro, deixando a frente do cemitério segundos depois. Olhei para aqueles altos portões de grade uma última vez, Damien ficaria bem, era apenas isso que me importava.

Todo o trajeto foi dominado pelo silêncio, apenas alguns risinhos, piscadelas e olhares maliciosos por parte de Benjamin, sentado ao meu lado no banco, tiravam-me daquele silêncio letal.

O trânsito em Roma já não estava mais tão agitado, passava da meia-noite, e o homem careca ao volante pegava vários atalhos a fim de evitar o que restara do engarrafamento.

Quando paramos em frente a um prédio muito elegante e requintado, eu soube que havia chegado a Sillentya, ido de encontro ao meu destino.

A fachada imensa, e em uma arquitetura mais clássica lembrava-me dos filmes sobre o Império Romano. Os tijolos amarelados alinhavam-se para compor a estrutura do prédio. Muitas pilastras tratavam de escorá-la, mas a rigidez da construção era visível.

Mesmo antiga, ela transpirava vida.

Descemos do carro, Crystal ainda insistia em manter a ponta de sua adaga na base de minhas costas, camuflando-a na manga larga de seu manto, enquanto me conduzia para dentro do prédio.

Olhei o céu negro pela última vez, tentando gravá-lo em meu cérebro. Sabia que perderia minha liberdade no momento em que pisasse ali, e assim foi.

Através de um salão gigantesco, com pisos ladrilhados e lustrosos e obras de artes penduradas nas paredes, eu fui guiada.

Havia uma única porta, nos fundos do salão, e Benjamin a abriu para que nós duas passássemos por ela, enquanto ele ainda carregava o corpo inconsciente de Daisuke.

Então, uma escadaria que nos levaria para abaixo do nível do solo foi revelada, e logo Crystal me obrigou a descê-la, suas mãos agora grudavam em meus cabelos, puxando-os com violência, obrigando-me a continuar descendo.

Ouvi o som da porta lá em cima sendo trancada; o som de minha condenação.

Meus olhos foram tomados pelas lágrimas novamente, eu queria fugir dali. Queria sair dali, mas eu sabia que era impossível. Uma vez dentro, não se saía com vida.

Quando as escadarias terminaram, nós devíamos estar a uns vinte metros abaixo do nível do chão. O silêncio ainda me amedrontava.

Nós cruzamos um imenso corredor, onde no final havia grandes e entalhadas portas duplas, que assim que foram abertas, revelaram um gigantesco salão, muito maior que o anterior, mas este não se encontrava vazio; muito pelo contrário.

O fato de ter todos aqueles olhos sobre meu rosto fez aflorar um medo esmagador em meu coração.

Todos enfileirados, todos em mantos vermelhos, todos os rostos indiferentes e impassíveis, frios, sem expressão, sem vida, como estátuas tão bem esculpidas.

Meu medo foi tão grande, que eu cometi um ato impensado, tentei me libertar dos braços de Crystal, tentei fugir dali, tentei encontrar minha liberdade novamente, mas já era demasiadamente tarde, e essa guerra, eu perdi, irrevogavelmente.

Como conseqüência, Crystal aumentou a pressão de seus dedos em meus cabelos, fazendo-me gemer de dor, e arrastou-me consigo por vários metros, enquanto eu me debatia, tentando me libertar.

Porém, em determinado ponto, ela me soltou, jogou-me de joelhos no piso lustroso, enquanto meus cabelos recaíam sobre meu rosto, ocultando minha visão.

Olhei para ela, vendo-a fazer uma pequena mesura, um sinal de respeito para alguém, alguém que devia estar na minha frente. Sua fronte recurvada não me permitia ver seu rosto, mas eu nem mesmo precisava.

Ainda caída de forma desleixada no chão, elevei minha face, sustentei meu olhar, vendo através da cascata negra e densa de meus cabelos, para quem exatamente ela demonstrava seu respeito.

Foi então que realmente me desesperei. Não era apenas um. Eram sete.

Sete tronos luxuosos, com jóias incrustadas em sua madeira escura, e sete figuras assentadas sobre eles, todos em mantos vermelhos rubi, todos os setes pares de olhos sobre o meu rosto desolado e desesperado.

Todos me encarando com seus rostos impassíveis, indiferentes, como bonecos de cera, imóveis.

E então me dei conta.

Diante de mim, Sete Tristezas apresentavam-se.

Os sete maiores, mais poderosos, e temidos Mediadores.

As divindades que comandavam a sociedade de Sillentya.


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Notas finais do capítulo

Hmmmmm e agora hein???

Agatha caiu nas mãos do inimigo! Quem será que arquitetou isso? Ainda usaram o coitadinho do Damien para atraí-la para fora da mansão...

E pobre do Daisuke... É, eu sei que sou má...

Uma curiosidade: esse veneno que o Benjamin usou é de uma das aranhas mais venenosas do mundo todo, a teia de funil, e seu veneno é tão potente que a vítima pode entrar em coma, ou morrer se não procurar ajuda em uma hora após a mordida.

Próximo capítulo, Agatha conversará sabem com quem????

Pois é, acho que vocês sabem... A peste em pessoa!

Até...

Ah, E eu vou acelerar agora, decidi que não vou deixar isso me abater...

Não se esqueçam das reviews...

Beijinhos!!!!

PS: se tiver algum erro, volto mais tarde para corrigir, pois está armando chuva aqui na minha pequena cidade... E que chuva! *medo*