No amargo veneno das ilusões, me embriago

Mordo sussurros banidos

Gemidos contidos

 Deixando na boca o gosto desconhecido do seu beijo

E com uma tristeza que assusta

Retiro essa máscara, encaro minha farsa

E crio coragem para perguntar:

Então sigo?

Nem ao menos olho para trás?

*Úrsula*

Era muito difícil agir normalmente, fingir que nada tinha acontecido e que nosso professor de História não tinha tentado nos matar, mas todos estavam conseguindo.

Pelos corredores eu via os olhares e risinhos trocados entre o Dante e a Elli, e minha melhor amiga, Ariana, também estava superando muito bem aquela situação extrema que havíamos vivido. Apenas eu continuava acordando no meio da noite, gritando apavorada, chamando por socorro.

Minhas lembranças daquele dia são tão confusas, nem sei ao certo como tudo aconteceu. Vejo imagens distorcidas... Lembro que estava na sala dos meus treinamentos, a velha continuava me ajudando com uso da Visão, sempre pedindo que me concentrasse em alguém que era importante e a imagem da Ariana se formava instantaneamente na minha cabeça, eu já tinha melhorado bastante, era capaz de não perder seu rosto por um longo tempo. Mas não naquele dia.

Por mais que eu tentasse, a única imagem que se formava diante dos meus olhos era a de um garoto alto e de olhos verdes penetrantes. Procurei desviar meus pensamentos, mas algo sempre me trazia de volta, eu podia sentir um grande perigo se aproximando.

“Quem era aquele homem? Que lugar era aquele? Por que Dante estava preso?”

 Em uma fração de segundo todas essas perguntas dançaram na minha mente e mesmo que não saiba ao certo como controlei meu dom, foi isso que eu fiz. Quando fecho meus olhos ainda posso ouvir a velha me pedindo para não perder o foco, suas mãos enrugadas e frias segurando meus ombros, seu rosto sumindo e reaparecendo diante de mim.

Mas eu já não estava mais na sala, mesmo que meu corpo estivesse lá, minha mente partiu em busca do garoto convencido que me tirava o sono, era como se minha alma vagasse em desespero enquanto não pudesse encontrar a dele.

Enfim o encontrei!

Lá estava o Dante, preso, com o esquisito professor de História ao seu lado, no mesmo instante reconheci seu cativeiro e sai do meu estado de Oráculo. Parti em busca de ajuda para salvar sua vida.

Fiquei desesperada quando descobri que mesmo nós duas não éramos páreo para Barton, ele era imune aos nossos poderes e nenhuma de nós seria capaz de derrotar um cara como ele no combate direto. Uma nova onda de dor e fúria subiu pelo meu corpo, a morte era iminente e não havia nada que eu pudesse fazer. Teria trocado minha vida pela dos meus amigos se soubesse que era possível, mas nosso algoz era de Lemúria e tudo que ele desejava era a morte de todos os remanescentes da Linhagem de Ouro de Atlântida.

Pensei em tomar alguma atitude, no entanto não sabia como agir. Mesmo tendo aprimorado meus poderes ainda era uma inútil naquele grupo, foi quando Dante falou, ele deu a ordem, foi nítido que era uma ordem e a garota obedeceu. Elli acordou de seu aparente transe e acertou Barton sem que ele pudesse reagir.

Queria dizer que fiz algo heróico, talvez se eu tivesse dado minha vida pudesse desfrutar do prazer de receber um olhar tão apaixonado como o que ela recebeu. Aquela glória era só dela, a garota que salvou nossas vidas e conquistou o amor que não posso ter.

A única reação que esbocei foi chorar ainda mais e dar um sorriso agradecido para minha salvadora, apesar de sentir uma grande pontada de inveja e angústia por ela ter algo que eu desejava apenas para mim.

Depois desses acontecimentos meus pesadelos se tornaram mais frequentes, durantes as sessões de treino com a velha eu perdia o controle com facilidade e ela percebeu isso.

____ Menina, as coisas ainda ficarão bem piores e eu preciso que você pare de se assustar com o destino, apenas veja e aceite que as coisas são como tem que ser.

____ Eu quero impedir que as pessoas que eu amo sofram. É tão complicado de entender?

A senhora se aproximou mais de mim, suas mãos seguraram as minhas e vi uma lágrima se formar e sumir em seus olhos.

____ Seria bom se você fosse capaz de fazer isso, mas seus poderes não vão tão longe e muito em breve verá que esse é um desejo ruim.

____ É ruim querer o bem dos outros?

____ Sim! Todos devem ter sua cota de dor e sofrimento, pois só assim as pessoas ficam mais fortes e você, mais que os outros, vai acabar descobrindo isso sozinha.

____ Não sei se sou capaz de compreender isso agora.

____ Reconhecer suas limitações é uma boa maneira de se desenvolver. Logo você será capaz de entender muitas coisas que, por hora, parecem complicadas e misteriosas.

____ Como você pode saber tanto sobre mim, meu dom e meu futuro?

____ Eu já lhe disse que sou você, que vi o que você vai ver e vivi todos os momentos que irá viver.

____ Mas como?

____ Isso são mistérios que apenas o tempo terá condições de lhe ensinar.

____ Preciso saber agora e não com o tempo ou serei apenas um peso para todos os que me cercam.

Esses pensamentos de inutilidade e impotência diante de coisas tão grandiosas e secretas já vinham ocupando meus dias e aproveitei para falar de uma vez por todas o que estava me preocupando.

Meu velho eu apenas meneou a cabeça e deu um sorriso sem esperanças, mostrando que eu estava errada por pensar de uma maneira tão pessimista.

Percebi que não conseguiria mais nenhuma informação naquele dia, ela estava decidida a mudar de assunto e era muito firme nas suas decisões.

____ E o grande baile, já tem um par?

Tinha de ser uma piada. Afinal, como seria possível ter um par sendo a porcaria de uma aberração? O único sentimento que os garotos tinham por mim era medo, pânico, pavor... eles nem ao menos falavam comigo, exceto o Dante mas ele já tinha com quem ir ao baile.

____ Estou pensando em não ir para a festa...meu estômago está embrulhado desde que soube da tal Quadrilha... sou uma péssima dançarina!

De todas as coisas que eu sou incapaz de fazer dançar é a mais impossível. Sinto que tenho dois pés esquerdos, sou naturalmente desengonçada e não quero coroar minha passagem pela escola com mais um dos meus pontos fracos.

____ Não faça isso! Confie em mim, por pior que seja, é necessário, você aprenderá coisas importantes nessa festa, não falte.

Dizendo isso a minha nova mentora sumiu e me deixou sozinha com a incerteza de ir ao baile de formatura que seria naquela mesma noite e para o qual a maioria das meninas já estava quase pronta.

Segui para os dormitórios, sempre pensando se deveria ou não vestir meu vestido e colocar minha máscara. Abri caminho pela massa de rendas e sedas que se aglomeravam em volta da minha cama, todas as garotas da escola pareciam estar ali observando alguma coisa supostamente muito incrível.

Minha roupa estava estendida sobre meu colchão e era isso que elas estavam vendo. Por um momento não entendi o motivo da curiosidade afinal todas estavam com vestidos de festa, só depois me dei conta que meu traje era totalmente diferente do delas. Ele era longo e negro, mas não completamente, pois a parte de cima era composta por uma espécie de espartilho vermelho que deixava minhas curvas bem definidas e meus seios bem firmes, certamente era a roupa mais linda daquele quarto e a mais estranha também.

____ Úrsula, parece que você tem bom gosto, pena que os garotos não tenham visto isso antes.

____ Quem sabe algum deles perdesse o medo e resolvesse te convidar.

Garotas podem ser cruéis quando querem, mas as palavras das minhas companheiras de quarto não tiveram o efeito que elas desejavam, por mais que eu visse seus sorrisos debochados e ouvisse seus comentários maldosos, também conseguia distinguir uma gota de inveja e um leve desconforto diante da beleza do meu vestido.

Aquelas maldades ditas me estimularam para ir à festa, nem que fosse apenas para não dar o gostinho de me verem derrotada.

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A decoração estava incrível e a música alta deixava todos animados, até mesmo eu me senti um pouco mais feliz vendo Ariana tendo momentos bons, ainda que soubesse que eles não durariam muito.

Como eu queria esquecer o passado e o futuro e viver apenas aquele dia!

A Quadrille começou e me dei conta que seria um desastre maior do que esperava. Meu primeiro par sofreu com algumas pisadas em seus pés, mas ele não pareceu se incomodar, creio que meu decote o deixava satisfeito e não pude deixar de sorrir por me sentir desejada.

Acenei levemente para minha melhor amiga e ela me retribuiu, já tinha algum tempo que não conversávamos e eu sabia que a estava magoando com minha distância, porém a dança a deixava muito contente e eu também me deixei levar por vários momentos, me entregando aos rodopios e sorrindo sem me preocupar se estava errando os passos ou não.

Estava melhorando meu desempenho na Quadrille, afinal não era tão difícil e os garotos me ajudavam a prosseguir, eram bem melhores que eu.

Tudo corria bem até que senti o suave toque das suas mãos, Dante, eu conseguiria reconhecer mesmo sem olhar, então o drama começou. Ele era tão ruim naquela dança quanto eu e o nervosismo de estar perto daquele idiota me deixava ainda mais desastrada. Quase esmaguei os seus pés nos primeiros movimentos.

____ Desculpe Dante, acho que sou péssima nisso também.

Queria controlar minha timidez, fazer meu rosto permanecer no mesmo tom, mas já era muito tarde, o vermelho do vestido prosseguiu e se instalou nas minhas bochechas e não tinha condições de encarar aqueles malditos olhos verdes.

____ Parece que você não é a única!

Ele tinha acabado de pisar nos meus dedos também. Certamente éramos o par mais fora do ritmo em toda a coreografia e mesmo assim eu estava feliz. Meu coração batia na garganta, minhas pernas bambas e cada pedaço de mim ansiando para que a próxima troca de casais demorasse muito tempo.

Tenho certeza que ele falou mais alguma coisa que não consegui entender e muito menos dar uma resposta razoável, queria apenas encostar a cabeça no seu ombro e rodopiar pelo salão sem me preocupar com nada.

A troca aconteceu e já não tinha mais motivos para continuar dançando, permaneci apenas por mais uma música e depois saí acompanhada do meu par em busca de algum lugar tranquilo para sentar e conversar.

____ Úrsula, você está muito bonita!

O garoto que estava sentado ao meu lado me conhecia, mesmo que eu não fizesse ideia de quem ele fosse. Talvez alguém o tivesse mandado falar comigo para tirar uma onda com minha cara e aquele pensamento não era algo que me deixasse confortável.

____ Muito obrigada pelo elogio...

____ Você não deve me conhecer, sou Pietro, irmão mais velho da Patrícia.

Olhando através da máscara notei os olhos azuis que lembravam os da nossa líder de Conselho e os cabelos compridos e pretos também pareciam os dela.

O que diabos um cara mais velho queria comigo?

____ Prazer em te conhecer.

Eu estava levantando para trocar de lugar quando senti sua mão segurando a minha, virei na mesma hora disposta a dizer poucas e boas para ele. Mais velho ou não, ele não tinha o direito de me impedir de partir.

Antes de olhar para o garoto que me detinha vi algo que me fez estremecer... um casal... aquele casal... Dante e Elli!

A música pareceu ter sido escolhida a dedo para me fazer lembrar minha triste posição de garota que brinca com fogo e só consegue machucar a si mesma.

♫ Just gonna stand there and watch me burn...

That´s alright because I like the way it hurts

Just gonna stand there  and hear me cry

That´s alright because I love the way you lie

 I love the way you lie ♫

O choro entalou na minha garganta, engoli minhas lágrimas e meu orgulho ferido, não era surpresa nenhuma ver os dois juntos, eu sabia que eles tinham algo mais e mesmo assim doeu, e muito.

Instintivamente puxei Pietro para que ele me seguisse até o jardim, não tinha certeza do que iria fazer do lado de fora da festa, mas sabia que se ficasse mais um segundo ali tocaria fogo em mim mesma só para não ter que ver aqueles dois nunca mais.

Meu acompanhante me seguiu sem reclamar e tinha um largo sorriso no rosto.

Era esse o sofrimento que a velha havia dito?

Olhei para a cima tentando impedir as lágrimas de rolarem, a Lua estava linda, inundando o céu com sua imensidão prateada, mas minha vista foi impedida por um rosto junto ao meu.

Pietro entendeu tudo errado, não era nada daquilo que eu queria... sua mão segurou minha nuca e seu braço envolveu minha cintura, não tinha para onde fugir, foi uma questão de tempo até seus lábios tocarem os meus. Um primeiro beijo regado por lágrimas e tristeza, era disso que a velha estava falando quando avisou que meu caminho seria repleto de dores.

Enquanto ele me beijava só conseguia pensar que era a coisa mais errada que já tinha feito, eu não sentia nada pelo garoto e minha cabeça e meu corpo desejavam alguém que não era ele.

No entanto qualquer arremedo de amor devia ser melhor que amor nenhum! Fiquei ali, com um quase desconhecido, por um logo tempo, juntando os cacos da minha dignidade perdida e tentando me convencer que não era tão ruim quanto parecia.

___ Você se incomodaria de voltar para a festa? É que está tocando uma música que eu adoro!

Na verdade eu não fazia a menor ideia do que estava tocando, tudo que eu queria era uma desculpa para fugir dali e ir deitar na minha cama e me aconselhar com meu travesseiro. Pietro era muito gentil e não contestou meu pedido, sempre segurando minha mão ele me guiou de volta para o salão, dancei uma música e disse que estava cansada e com dor de cabeça e precisava ir dormir, mais uma vez ele foi um perfeito cavalheiro e me acompanhou até a porta dos dormitórios.

____ Foi muito bom ficar com você hoje, Úrsula. Será que a gente podia se ver mais uma vez?

Não queria magoar um garoto tão legal, porém sabia que tinha que ser o mais sincera possível com ele.

____ Pietro, foi uma noite bem divertida, mas creio que não vai se repetir. Eu amo uma pessoa e não é tão simples esquecer...

Ele me segurou novamente e me deu mais um beijo e esse foi diferente, mais intenso, mais completo, esse sim foi um beijo real. Agarrei seu cabelo na nuca e deixei que o fogo falasse por mim, sem reflexões, apenas físico...

Durou muito pouco o meu idílio, logo percebi que aquele não era um lado meu que eu queria despertar. A solidão certamente seria mais desejável que uma vida cheia de paixões vazias. Consegui me desvencilhar de seus braços e pedi que fosse embora, ele não se recusou, mas vi que estava desapontado, infelizmente teria que ser assim.

Depois de sua partida pude cair na cama e chorar baixinho, ainda completamente vestida, amargando a falta de sorte que era ser apaixonada pela pessoa errada e no momento mais errado ainda.

Uma frase ecoava em meus pensamentos: “Nem sempre as coisas acontecem como queremos, mas elas são exatamente como tem que ser!”. Foi essa constatação que velou meu sono e embalou meus sonhos. Não era nada muito animador, mas era a mais pura verdade.