Sobrado Azul escrita por Chiisana Hana


Capítulo 2
Capítulo II




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Os personagens de Saint Seiya pertencem ao tio Kurumada e é ele quem enche os bolsinhos. Todos os outros personagens são criações minhas, eu não ganho nenhum centavo com eles, mas morro de ciúmes.

SOBRADO AZUL

Chiisana Hana

 

—S -A -S -A -S -A -S -A -

Capítulo II

— Apaixonado, Ikki? Shiryu conheceu a Shunrei há umas duas horas! – Shun argumenta, dirigindo um olhar perplexo para o irmão.

— E daí? Essas coisas são assim mesmo – Ikki rebate, esticando-se sobre o sofá. – Quando está escrito, está e pronto. Eu bem sei que é assim...

— É... – Shun responde, agora olhando para o irmão com compaixão. – Aconteceu assim com você e...

— E a Esmeralda – corta Ikki. – Eu me apaixonei por ela quando a vi, por isso estou dizendo: Shiryu caiu de amores pela chinesinha.

— Pode ser... – Shun retruca, pensativo. – Mas você sabe, ele tem aqueles ideais de filantropia, justiça para todos, creio que faria isso por qualquer pessoa.

— Blá, blá, blá... – desdenha Ikki. – Shun, põe uma coisa na sua cabeça: Shiryu resolveria o problema de qualquer outra pessoa calmamente, pensando e tal, jamais sairia de casa furioso daquele jeito. Se ele saiu é porque ficou perturbado. Do contrário, ele não resolveria as coisas na porrada.

— Você tem razão e... porrada? Acha que ele vai bater no cara?

— São duas horas da manhã, Shiryu saiu daqui cantando pneu, acha que ele vai sentar no sofá do cara e argumentar? Ele vai descer o braço! Finalmente vai usar o que aprendeu nas aulas de kung-fu!

— Ikki! Pega o carro! Vamos atrás dele! – Shun exclama, nervoso e preocupado com o amigo.

— Shiryu sabe o que faz – conclui Ikki, virando-se para o lado. – Agora me deixa porque eu vou dormir aqui mesmo no sofá.

Shun bufa de raiva e sobe as escadas pisando duro, resmungando sobre como Ikki pode ser egoísta ao mesmo tempo em que reza para que Shiryu não faça nenhuma besteira irremediável.

—S -A -

Antes de ir até o subúrbio, Shiryu saca no caixa eletrônico a quantia que julga suficiente para pagar a dívida de Shunrei. Ao chegar no conjunto habitacional, estaciona o carro em frente ao primeiro bloco de apartamentos, sai pisando duro e bate à porta do 01 educadamente. Depois de alguns minutos sem resposta e já um tanto impaciente, ele bate com mais força, depois com mais força, até que finalmente alguém responde lá de dentro.

— Já vou! Vai tirar a mãe da forca? – grita o sujeito que abre parcialmente a porta. – O que é? Isso é hora de vir à casa dos outros?

— Por acaso você tinha uma inquilina chamada Shunrei? – Shiryu pergunta incisivo, empurrando a porta para abri-la um pouco mais.

— Nem me fale no nome daquela pequena vadia...

Shiryu responde ao insulto com um soco certeiro na face do sujeito.

— Vadia é uma coisa que eu tenho certeza que ela não é – ele diz, sem alterar o tom de voz.

— Que é isso, cara? Qual é? – O homem esfrega a mão no local atingido. – Por que tá fazendo isso?

— Eu vi o machucado que você causou no rosto dela – Shiryu responde, segurando o sujeito pela gola do pijama.

— Não... Não fui eu! Nunca encostei nela!

A cada palavra do sujeito, Shiryu perde um pouco mais de paciência.

— Se continuar mentindo – ele adverte –, eu te arrebento ainda mais! Melhor falar logo a verdade!

— Tudo bem, tudo bem. Fui eu.

Shiryu desfere outro soco no homem.

— Cara, você está ferrado! – ele grita. – Eu vou chamar a polícia. Vou denunciar você por agressão.

— Chama agora! Quero ver quem vão levar preso, se sou eu ou você – Shiryu provoca, segurando o sujeito pela gola outra vez. – Exigir favores sexuais como pagamento de uma dívida! Onde já se viu? Eu vou fazer tudo pra você não sair da cadeia nem tão cedo. Pode chamar a polícia. Estou esperando. Vou até soltar você.

— Calma aí, cara. Vamos conversar.

— Eu não converso com criminoso – Shiryu responde, tirando da carteira o dinheiro que sacou e jogando-o no chão do apartamento. – Aí está o pagamento do aluguel atrasado. Agora pega a chave do apartamento onde ela morava porque eu vou levar as coisas dela embora.

— Você que manda – responde o homem depois de recolher o dinheiro e colocá-lo embaixo de um vaso. – É aqui ao lado – ele diz e pega a chave. – Eu o levo até lá.

— Ótimo – Shiryu diz, ainda espumando de raiva, e acompanha o sujeito.

— Os móveis são do apartamento, tá? – o homem avisa. – Só os bagulhos são daquela va... daquela moça.

— Você está querendo levar outro soco, não está? – Shiryu indaga e pega uma mala que estava sobre o guarda-roupa. Ele abre e começa a colocar as roupas de Shunrei sem pensar muito, apenas vai jogando tudo que encontra. Constrangido, ele abre a gaveta de roupas íntimas e também as coloca na mala, tentando não olhar mais que o necessário.

Quando não cabe mais nada na mala, ele a fecha, leva para o carro, volta para o apartamento e pega uma grande caixa de plástico. Coloca nela os outros objetos pessoais que foi encontrando pelo pequeno apartamento, incluindo o porta-retratos com uma foto onde Shunrei aparece ainda criança, acompanhada de um velhinho da mesma estatura que ela. Pensa em deixar para trás as louças e outros objetos de cozinha, não havia nada que eles já não tivessem no sobrado, mas então se dá conta de que já está pensando como se ela fosse ficar morando com eles, mas a verdade é que ainda não sabe o que ela pretende fazer, então acaba resolvendo levar tudo que conseguir. Ela precisaria de duas coisas caso fosse morar em outro lugar. Por sorte, não há muita coisa, quase tudo cabe em uma grande bolsa de feira.

Shiryu leva o restante das coisas para o carro sob o olhar atento do dono do apartamento que parece checar se ele não está levando mais do que os pertences de Shunrei,

— A dívida está paga – Shiryu diz.

— Tudo certo. Não tem mais dívida.

— Isso. Esqueça que a Shunrei existe, nunca mais pense nela e... – Shiryu para de falar e desfere outro soco na face do homem. – Nunca mais chame nenhuma mulher de vadia nem tente obter favores sexuais da forma que tentou ou eu volto aqui e mato você de porrada.

Shiryu entra no carro e sai cantando pneu, perplexo consigo mesmo. Não teria como saber o que o desgraçado faria dali em diante, mas gostou de ameaçá-lo, certamente gostaria de bater um pouco mais nele e era isso o que o assustava. Era conhecido por ser calmo, equilibrado e prudente, nunca foi de briga, de repente perdeu o controle e saiu no meio da noite para bater em um cara que nunca viu na vida.

Quando finalmente chega em casa, o sol já está começando a nascer. Shiryu entra no sobrado tentando não fazer muito barulho e põe as coisas de Shunrei num canto da sala. Mesmo com toda cautela, Ikki, que ainda dormia no sofá, acorda.

— E aí, bateu no cara? – Ikki pergunta, esfregando os olhos e se espreguiçando.

— Bom dia pra você também – Shiryu responde e se joga na outra poltrona.

— Bateu? – Ikki insiste.

— Bati – Shiryu admite.

— Sabia! Muito? – Ikki se senta no sofá.

— Não muito. Alguns socos. Ele mereceu.

— Nunca imaginei que um dia ia ver você, o cara sereno, responsável e equilibrado, dando uma de Ikki! – ri o rapaz de cabelos azuis.

— É, eu também nunca me imaginei fazendo isso – Shiryu responde sorrindo e dá um longo suspiro.

— Finalmente as artes marciais serviram para alguma coisa, né?

— Você sabe que a violência não é um propósito das artes marciais, mas eu senti uma vontade imensa de partir a cara do safado. Eu não estava completamente descontrolado, estava só com vontade de dar uma lição nele.

— Hehehe! São as coisas dela? – Ikki pergunta, apontando para o canto da sala onde Shiryu as tinha deixado.

— São. Fiz ele abrir o apartamento para pegá-las.

— Você está gostando loucamente da chinesinha, não está?

— Eu não sei... – Shiryu diz corando ligeiramente. – Estou confuso…. O que eu sei é que sinto uma coisa aqui dentro, uma necessidade de protegê-la, de fazer aquela melancolia desaparecer dos olhos dela.

— Eu sei exatamente o que você sente... – Ikki diz, agora em tom sério. Depois de uma longa pausa, continua: – Tomara que você tenha mais sorte que eu.

— Bom, já que estou acordado, vou preparar o café – Shiryu declara, levantando-se e mudando de assunto. Sabe do que Ikki fala, bem como sabe que é melhor não se prolongar no assunto. – Me ajuda?

— Eu tenho cara de quem sabe fazer café, Shiryu? – o outro retruca.

— Eu sei que não, mas vamos para a cozinha, ok? Eu faço o café, você só me faz companhia.

— Não, essa eu passo. Vou deitar de novo e dormir mais um pouco.

— Por que será que isso não me surpreende? – Shiryu ri e vai para a cozinha.

Um pouco mais tarde, Hyoga acorda. Chegou em casa pouco depois que Shiryu saiu e quando Ikki e Shun já estavam dormindo, por isso nada sabia dos acontecimentos anteriores, e se assustou ao entrar no quarto e deparar-se com uma moça dormindo na cama de Shiryu enquanto Shun dormiu na cama que lhe pertence. Mesmo sem entender o que diabos estava acontecendo na casa, ele deixou os dois quietos e foi dormir no quarto de Shun.

Ao acordar, ele abre a porta do próprio quarto e nota que Shun e a garota continuam lá, e desce para preparar o café. Depara-se com Shiryu já fazendo isso.

— Poxa, aquela cama do Shun é uma tristeza – o russo reclama com Shiryu. – Não gosto de colchão mole...

— Você dormiu na cama dele? – Shiryu pergunta.

— Foi o jeito. Quando cheguei, ele estava lá na minha cama e aquela amiga dele na sua cama. Não entendi nada. Aliás, onde você estava que não sabe disso? Não saiu com a gente, mas saiu sozinho, safado?

— É uma longa história – Shiryu responde, pondo a garrafa térmica com café na mesa.

— Pois pode começar a contá-la – Hyoga diz, antes de morder um pão. – Esse pão é de que semana?

— De ontem. Ou anteontem. Sei lá. Só sei que ninguém foi comprar hoje – Ikki diz, chegando à cozinha e olhando acusadoramente para Shiryu.

— Ah, não me olhe assim! Não deu pra lembrar de comprar pão!

— Tá, mas comece a contar a tal história – pede Hyoga.

Shiryu explica a ele toda a situação, sendo sempre entrecortado por comentários espirituosos de Ikki.

— Então é isso: você se apaixonou pela menina à primeira vista, foi lá, bateu no cara e pagou a dívida que ela tinha? – Hyoga resume tudo, um tanto perplexo com a atitude de Shiryu.

— Eu não disse isso! – rebate Shiryu, bastante nervoso.

— Ah, disse sim, Shiryu! – Ikki provoca.

— Eu só quis ajudá-la! – Shiryu tenta explicar. – Sem nenhum interesse!

— Seeeeeeei! – Ikki e Hyoga cantarolam juntos.

— Juro! – Shiryu responde, profundamente envergonhado.

Logo em seguida, Seiya chega em casa com o cabelo desgrenhado e uma cara de sono.

— E aí? Estão preparados para fazer nosso pequeno campeonato de videogame? – ele pergunta, esfregando os olhos.

— Aconteceu tanta coisa que eu nem lembrava que você tinha marcado isso! – Shiryu diz.

— Pô! O campeonato é sagrado! – Seiya argumenta. Sempre que todos tinham o fim de semana livre ele organizava competições em casa para animar o pessoal.

— Sem videogame, Seiya. Hoje eu não consigo jogar nada – Shiryu diz e também esfrega os olhos. Estava cansado, morrendo de sono e com dor de cabeça.

— Ai, deixa de frescura! – Seiya diz. – Ei, mas o que é que está rolando aqui? Você e Ikki ainda estão com a roupa de ontem...

— Você reparou? Que interessante... – Shiryu diz irônico, já começando a perder a paciência.

— O que houve? – Seiya insiste. – Fala logo.

— O Shiryu... – Ikki começa, mas é interrompido pelo amigo cabeludo.

— Eu mesmo conto! Você vai distorcer tudo! Uma amiga do Shun estava com um problema, então ela veio pra cá e eu ajudei a resolver tudo. Pronto. Foi isso.

— Não entendi nada. Quer explicar direito? – Seiya diz.

— Não. Você entende depois – Shiryu diz, pois ao ver Shun descendo a escada, imaginou que Shunrei viria logo atrás dele.

— Bom dia, pessoal! – Shun diz, ainda bocejando, e todos respondem ao cumprimento.

— Cadê a branquelinha? – Ikki pergunta.

— Está no banheiro. Mais tarde vou falar com a June. Precisamos arrumar umas roupas para ela enquanto não conseguimos pegar as dela de volta.

— Não precisa – Shiryu diz, sem olhar para Shun. – As coisas dela estão lá na sala.

— Como? – pergunta o irmão Amamiya mais novo.

— Estão lá. Eu fui buscar.

— Aaah, é mesmo! Ontem você saiu daqui que nem louco... Mas que bom que convenceu o homem a deixar trazer as coisas!

— É, convenceu – Ikki diz, sarcástico. – Quem não convenceria daquele jeito, enchendo o cara de socos?

— Você fez isso, Shiryu? – Shun pergunta, sem acreditar que o amigo foi mesmo capaz de um ato violento.

— Fiz – envergonha-se Shiryu.

— Poxa, Shiryu, não se resolve as coisas desse jeito – Shun o repreende.

— Ah, resolve, sim, Shun! – Ikki comenta. – Um bom sopapo sempre funciona

— Violência só gera mais violência – Shun diz. Ikki dá de ombros.

— Ué? Como é que é isso? – questiona Seiya, que não está entendendo nada. – A sua amiga chinesinha veio pra cá pelada, então o Shiryu foi buscar e para isso encheu um cara de porrada?

— É mais ou menos isso – explica Shun. – Menos a parte do “pelada”.

— Mas por que o Shiryu foi buscar e não você? – Seiya quer saber. – A amiga não é sua? E se era para dar porrada, por que o Ikki não foi junto? Não é ele o lutador de vale-tudo? Não estou entendendo.

— Depois conversamos, Seiya – Shiryu apressa-se em dizer quando percebe que agora Shunrei realmente está descendo a escada. Observa que ela parece melhor, embora a marca do soco que levara no dia anterior esteja um pouco mais arroxeada, e que veste a mesma calça de ontem e uma camiseta vermelha emprestada por Shun.

— Bom dia... – ela cumprimenta um pouco envergonhada. Não é uma situação muito confortável estar numa casa com cinco homens. Sente-se grata por ter sido acolhida mas começa a se perguntar se procurar Shun foi a coisa certa.

Os rapazes respondem ao cumprimento dela e Shiryu prontamente oferece seu lugar à mesa.

— O café está pronto – ele diz a ela. – Pode sentar e se servir.

— Obrigada – ela responde, olhando timidamente para o chão.

— Ah, que bom! Café! Estou morto de fome! – Shun diz sorrindo, na tentativa de quebrar o visível constrangimento dela. – Você também deve estar, né, Shunrei?

— Um pouco... – ela responde, ainda olhando timidamente para baixo.

— Ei, pessoal, onde é que vamos almoçar hoje? – Seiya pergunta, sempre preocupado com a comida.

— Eu posso fazer o almoço – manifesta-se Shunrei. – Como forma de agradecer por vocês terem me acolhido essa noite.

— Você está cansada, Shunrei – Shun argumenta.

— Nós vamos pegar o almoço num restaurante aqui perto – Ikki diz. – Fazemos isso todos os sábados. Não se preocupe.

— Além disso, acho bom passar num posto de saúde para dar uma olhada nesse machucado – Shiryu completa.

— Não foi nada. E eu não estou cansada. Deixem, por favor! Eu quero ajudar!

— Melhor não, Shunrei – Shun diz. – E Shiryu está certo, você tem que ser examinada por um médico.

— Realmente não precisa...

— Precisa sim – insiste Shun. – Agora tome café que mais tarde vamos ao posto.

— O certo era passar também na delegacia e prestar queixa contra o sujeito – Shiryu fala, evitando olhar diretamente para Shunrei.

— Não, vamos deixar assim – ela responde. – Eu não quero mais confusão. Por favor.

— De tarde tem campeonato de videogame! – Seiya diz, bastante empolgado, para que mudassem de assunto.

— Eu já disse que não vou jogar – Shiryu diz e dá um longo bocejo. – Estou morrendo de sono.

— Ah... a culpa é toda minha – lamenta-se Shunrei, dessa vez olhando diretamente para ele e imaginando que o forçou a dormir no sofá. Quando o conheceu à noite, achou Shiryu um rapaz bonito, com belos olhos claros, e agora, à luz do dia, esses olhos ganhavam um tom azulado mais intenso e profundo. Só então ela se dá conta de que ele ainda está com a roupa da noite anterior.

— Não é culpa sua – ele diz, intuindo o que ela estava pensando. Os olhares dos dois se encontram e eles sustentam-no por alguns segundos, até corarem. Ao perceber que ambos estão envergonhados, Shun intervém antes que mais alguém perceba.

— Então, Shu – diz o rapaz de olhos verdes –, quer participar do nosso campeonato de videogame?

— Ah, eu não sei jogar nada– ela lamenta. – Mas talvez eu possa tentar.

— A gente ensina! – Seiya se oferece.

— Você vai gostar! – Shun continua tentando animar a moça. – A gente se diverte muito!

— Tá, tudo bem. Mas ainda estou com essa roupa de ontem... – Shunrei diz. – Acho que antes vou dar um jeito de ir buscar minhas coisas.

— Shunrei, as suas coisas estão lá na sala... – Shun avisa.

— Como? – ela pergunta, bastante surpresa.

Shun aponta para Shiryu.

— Foi ele – diz.

— Está tudo resolvido – Shiryu começa. – Fui buscar tudo ontem. E o cara não vai mais perturbá-la. Não se preocupe.

— Eu duvido muito – ela responde pensando na dívida do aluguel que com certeza ele cobraria.

— Não vai mesmo, não tem mais dívida – Shiryu diz. – Eu paguei. Não era muito. Usei umas economias e resolvi logo.

— Uau! Eu não tenho como agradecer! – ela exclama, bastante grata e comovida pelo gesto solidário. Em seguida, levanta-se e curva-se demoradamente como de costume no Japão. – Muito obrigada, muito obrigada mesmo. Quando arrumar emprego, prometo que pago tudo.

— Não precisa, ok? É um presente...

Shunrei olha ligeiramente desconfiada para Shiryu e dele para Shun, imaginando se há alguma intenção escusa, apesar de ele não parecer ser esse tipo de gente.

— Não se preocupe – Shun diz. – Esse aí é o cara mais justo, sensato e equilibrado que existe na face da terra, pode ter certeza. Ele só vai ser advogado por causa de seus ideais filantrópicos, não pela ganância.

— Defensor público – corrige Shiryu. – Quando me formar, quero fazer concurso para a defensoria pública.

— É a sua cara atender pobretões – debocha Ikki. – Devia pensar era em arranjar clientes poderosos pra ficar rico.

— E é a sua ficar numa obra dando gritos nas obras – um indignado Shiryu rebate.

— Eu não vou gritar com os caras, só vou botar moral. É diferente.

— Não me parece diferente – Shiryu diz.

— Não tô nem aí – resmunga Ikki.

— Shiryu, eu não sei mesmo como agradecer – Shunrei diz, com os olhos marejados, interrompendo os dois. Está tão acostumada a resolver tudo sozinha que agora, cercada de cuidados, acaba se comovendo.

— Não precisa agradecer – ele diz sorrindo e olha nos olhos dela por alguns segundos. Satisfeito, constata que a melancolia do dia anterior esvanecera um pouco.

— Bom, Shu, já que você vai ficar aqui com a gente – Shun diz –, vamos ter que mudar algumas coisas nessa casa, não é pessoal?

— Eu não acho certo, Shun... – Shunrei diz. – Vocês já fizeram demais por mim. Agora eu tenho que me virar sozinha.

— Vocês concordam que a Shu fique conosco? – Shun pergunta em voz alta, ignorando o que ela acabara de dizer.

— Por mim, tudo bem – concorda Hyoga.

— Por mim também – Seiya assente e completa: – É até bom, para falar a verdade. Ela vai dar um toque feminino na nossa casinha. É muito homem junto!

— Também acho uma boa idéia – concorda Shiryu, evitando olhar de novo para ela. Deseja intensa e sinceramente que ela fique ao mesmo tempo em que teme tamanha proximidade.

— E você, Ikki? – Shun pergunta ao irmão que ainda não deu sua opinião. Está apreensivo porque Ikki é sempre um mistério e a resposta pode variar muito a depender do humor dele no dia.

— Ela fica – Ikki finalmente responde e levanta-se da mesa. – Vamos tirar a tralha do quartinho da bagunça e transformar aquele lugar num quarto decente para ela. Cada um faz o que quiser com sua tralha, mas se ficar alguma coisa espalhada por aí, eu vou jogar no lixo.

— Não precisa, gente... – Shunrei diz, comovida.

— E você vai para onde? Para debaixo da ponte? – Shun questiona. – Nós não vamos deixar.

— Pois é – concorda Shiryu. – Você fica no quartinho. Vamos pintá-lo e arrumar pelo menos um colchão, mas enquanto isso você pode continuar dormindo na minha cama.

— Obrigada – ela murmura entre lágrimas. – Eu não sei como pagar tudo que vocês estão fazendo por mim.

— Que tal sorrir? – Shun diz, abraçando-a e enxugando-lhe as lágrimas. Ela sorri timidamente. Ele continua: – Bom, galera, vamos lá tirar as tralhas do quartinho. Mais tarde levo a Shu ao posto de saúde. Seiya, você lava os pratos!

— Eu? Mas por que eu? – ele protesta.

— Pode deixar que eu lavo, Seiya – Shunrei se oferece, dando um tapinha nas costeas dele.

— Ah, valeu, Shunrei! – ele agradece e sai correndo para evitar que ela mude de ideia.

Enquanto os rapazes passam o resto da manhã retirando as tralhas do quartinho que passará a ser dela, Shunrei lava a louça e limpa a cozinha. Não era sua intenção cair de paraquedas na vida daqueles cinco rapazes, não deseja mudar a rotina da casa deles nem incomodá-los, mas também não vislumbra outra solução imediata para sua vida, por isso sente-se imensamente grata pelo acolhimento e pela proteção.

No quartinho, eles remexem na estante empoeirada e nas caixas de papelão largadas no chão.

— Aqui dentro tem tanta coisa que é capaz de acharmos um dinossauro – comenta Hyoga, ao tirar uma caixa de cima da estante de metal.

— Um boneco do Kamen Rider! De quem é essa porcaria? – zomba Ikki, ao encontrar o brinquedo noutra caixa.

— É meu, caramba! – Seiya responde. – Me dá ele! Eu não sabia onde estava. É uma lembrança da minha infância. Me dá aqui!

— Esses livros chatos são do Shiryu, né? – mais uma vez Ikki alfineta apontando para livros de filosofia e sociologia do amigo.

— São meus, sim – confirma Shiryu pegando a pilha. – Vou doá-los para a biblioteca. Não tem mais onde colocar livro lá no meu quarto.

— Ah, minhas velhas luvas de boxe! – Ikki exclama ao encontrá-las no fundo de outra caixa. – Faz tanto tempo que não luto boxe... Vale-tudo é muito mais interessante.

— É mais violento – Shun corrige, já sabendo o que o irmão diria a seguir.

— Por isso mesmo é mais interessante – Ikki diz exatamente o que Shun esperava.

— As paredes estão meio feias, acho que precisam ser pintadas – Shun muda de assunto. Não conseguia entender essa história de Ikki lutar vale-tudo por diversão e não queria nem tentar. Ele sempre chegava das lutas com a cara amassada, sangrando. Que prazer havia nisso? Já está cansado de questioná-lo sobre isso e resolve deixar pra lá.

— Tem essa lata da tinta azul que usamos na fachada ano passado – Hyoga diz, tirando a lata de cima da estante. – Foi a que sobrou, nem foi aberta.

— Excelente! – exclama Shun – Acho que ainda deve ter pincel e rolo em alguma dessas caixas.

— Temos que começar ainda hoje para que amanhã tenhamos nosso quarto de volta, Shiryu – Hyoga comenta. O cabeludo concorda com um aceno de cabeça.

— Achei o rolo e os pincéis! – Shun exclama mexendo numa caixa que estava atrás da porta.

— Posso começar a pintar aquele lado que já está sem bagunça – oferece-se Hyoga.

— Vamos deixar essa estante aqui mesmo – Shiryu diz, limpando a estante com um paninho. – Dá pra ela guardar as coisas enquanto não arrumamos um guarda-roupa.

— Boa idéia, Shiryu. E onde ela vai dormir? – Seiya pergunta, ainda com o boneco do Kamen Rider na mão.

— Tenho aquele colchão para visitas – sugere Ikki.

— Aquele colchão é nojento! – exclama Shun. – Você o usa para suas coisas com as mulheres que traz aqui.

— E o que você sugere, senhor Pureza?

— Eu não sei, mas a coitada da Shunrei não pode dormir naquele colchão.

— Eu posso pedir um colchão novo a minha namoradinha linda – Seiya diz. – Ela não vai se importar.

— Faça isso, agora temos que pintar – Hyoga diz, abrindo a lata de tinta.

— Pedir colchão à namorada? – zomba Ikki. – Você é muito sem vergonha, Seiya

— O que tem demais? – ele retruca sério, enquanto Ikki continua rindo. – Ela é rica!

— Acho que vou comprar uma tinta de outra cor e pintar algumas coisas alegres. Pintar umas flores, talvez – Shun sugere, imaginando que Shunrei merecia um quarto alegre.

— Basta que fique limpo, Shun – impacienta-se Ikki . – Não precisa afrescalhar. E depois, sua namorada vai ficar irada quando souber que você anda cheio de cuidados com a branquelinha.

— Não vai, não. Conheço a Ju, ela vai entender que eu estou sendo solidário com uma amiga.

— Isso é o que você pensa. As mulheres são loucas. Todas elas.

Shunrei aparece na porta do quartinho trazendo uma bandeja com lanches e olha para Ikki desconfiada, pois ouviu as duas últimas frases.

— Você também deve ser – ele completa rindo.

— Rapazes, tomei a liberdade de preparar um suco para vocês – ela anuncia, ignorando o comentário de Ikki. – E fiz alguns biscoitos.

— Ah, obrigado, Shu! – agradece Shun pegando um dos copos.

— Opa! Lanche é comigo mesmo – Seiya comemora. Também pega um copo de suco e um punhado de biscoitos.

— Obrigado pela gentileza – Shiryu agradece sorrindo timidamente e serve-se de suco e biscoitos. – Seu quarto vai ficar bonito.

— Ah, vocês estão tendo tanto cuidado comigo – ela diz, sorrindo de volta pra ele. – O mínimo que eu poderia fazer era preparar esse lanchinho.

— Por falar em cuidado, você tem que ir ao posto de Saúde – recorda Shun. – Ikki ou Shiryu, um de vocês vai levá-la ao posto, já que são os que têm carro.

— O Shiryu vai – Ikki diz com um sorrisinho malicioso, empurrando o amigo para perto de Shunrei.

— É claro – ele responde.

— Depois passe no restaurante e traga o almoço – Shun acrescenta. – Use o dinheiro que sobrou das contas, e se não der, completa que a gente paga depois como sempre.

— Pode deixar comigo, Shun – Shiryu diz, depois se volta para Shunrei. – Vou só tomar um banho e trocar de roupa, certo? Estou assim desde ontem.

Shunrei balança a cabeça afirmativamente.

— Vai logo! – outra vez Ikki empurra Shiryu, que sai do quartinho e sobe para tomar banho.

— Acho que preciso tomar um banho também... – murmura Shunrei.

— Tem um banheiro pequeno aqui embaixo, pertinho do seu quarto – Shun diz, apontando na direção do banheiro. – Esse vai ser o seu banheiro, certo? Só seu. O de lá cima tende a ficar um tanto… bagunçado. Sabe como é, muitos homens em casa.

— Obrigada mais uma vez, Shun – ela agradece sinceramente e dá um abraço em Shun. – Vou pegar toalha e roupas na minha mala. Já dei uma olhada, Shiryu trouxe tudo mesmo.

—S -A -

No banho, Shiryu repensa tudo que fez nas últimas horas e não consegue se reconhecer. Acabara de fazer algo que jamais pensou ser capaz, por uma moça que mal conhece mas que não consegue tirar da cabeça.

Enquanto isso, no seu novo banheirinho particular, Shunrei pensa na generosidade dos cinco rapazes. Lembra-se de que Shun comentou que eram todos órfãos e se conheceram no orfanato. Acha que talvez por isso eles compreendam tão bem sua situação, seu abandono. De pronto, seu pensamento volta ao moreno de longos cabelos negros. Shun também lhe disse que ele é o único dos cinco que não sabe nada sobre os pais. Nos documentos dele, a palavra "desconhecido" repetia-se nos lugares onde deveriam estar os nomes do pai e da mãe. É a mesma situação dos documentos da própria Shunrei, já que o homem a quem chamava de avô não o era verdadeiramente. Ele a encontrou abandonada na floresta, com pouco mais de um ano de idade, andando sozinha, situação comum na China, onde havia a lei do filho único e a preferência dos casais por filhos do sexo masculino.

Ela tenta entender se Shiryu fez o que fez porque se identificava com a situação ou se havia algo mais nas atitudes dele. Quanto mais pensa, mais interessada fica no belo rapaz de cabelos longos e olhar tímido. Se algum dia sonhara em ter um amor, achava que seria exatamente igual a ele.

Depois de terminar o banho, Shunrei olha-se no espelho. A marca do soco está roxa e dolorida, mas já não é tão importante porque agora ela se sente protegida. Ela sai do banheiro e vai diretamente para a sala, onde Shiryu já a espera no sofá.

— Podemos ir? – ele pergunta, olhando-a nos olhos e oferecendo-lhe a mão num gesto impensado.

— Sim... – ela responde. Cora um pouco, sente-se envergonhada, mas segura firmemente a mão do rapaz.

Os dois andam de mãos dadas até o carro dele. São apenas uns poucos passos da sala até a garagem, mas o suficiente para ambos se sentirem perturbados com o calor das mãos um do outro. Entram no carro sem trocarem uma palavra. Shiryu respira fundo e dá a partida no motor, ainda pensando na razão de ter sido tão impulsivo e oferecido a mão, mas o silêncio começa a ficar incômodo, então Shunrei puxa conversa.

— Então você quer ser defensor público? – ela pergunta, esfregando as mãos uma na outra, sem olhar para ele.

— É, eu tenho muita vontade de ajudar as pessoas, sabe? – ele responde. – Parece que as pessoas só precisam de médicos, mas e aqueles sujeitos que foram presos injustamente e não podem pagar um advogado? Vão ficar mofando na cadeia? Eu não acho justo. Quero ajudar essas pessoas.

— Mesmo que signifique algumas vezes ter de defender um verdadeiro criminoso?

— Mesmo assim. É o preço a pagar.

— Entendo… – ela diz e outra vez o silêncio prevalece, mas agora é Shiryu quem o quebra.

— Então seu avô dizia que você tem vocação para ser psicóloga?

— É. Meu avô sempre disse que eu tenho vocação para ouvir e entender as pessoas. Porque somente ouvir não basta, né? Ele dizia que é como ouvir uma música numa língua que você não conhece. Você ouve, acha bonito ou interessante, mas não entende o que a letra quer dizer e, assim, só é capaz de emitir uma opinião parcial sobre ela.

— Seu avô parece ter sido um homem muito sábio.

— Ele era. E não apenas sábio. Ele era a melhor pessoa do mundo. Quando ele partiu, foi como se eu tivesse ido com ele. Eu só sigo em frente porque sei que é o que ele gostaria que eu fizesse.

— Tenho certeza que sim. Bom, chegamos ao posto de saúde.

— Ah, sim – ela diz, levemente desapontada. Queria continuar o caminho com ele, sem destino, apenas seguir em frente, conversando. O jeito de Shiryu lembra muito o do seu avô. Os mesmos ideais de justiça, a serenidade, o sorriso sincero. E isso está mexendo demais com ela...

Shunrei desce do carro e anda ao lado de Shiryu até a recepção do posto de saúde. Depois, entra sozinha no ambulatório, enquanto ele a espera do lado de fora. Durante todo o exame, só consegue pensar nele, imaginando-se em sua terra natal, com ele a seu lado.

— Não é nada, mocinha – o médico que a atende anuncia depois de examiná-la mas Shunrei nem ouve. – Mocinha?

— Ah, sim – responde, balançando a cabeça. – Desculpe, doutor. Estou distraída hoje.

— Percebi. Eu disse que não é nada. Em alguns dias a mancha vai sair.

— Eu sabia que não era nada, mas os rapazes insistiram para eu vir.

— Estavam certos esses rapazes. Podia ter acontecido algum dano, mas felizmente é só um hematoma superficial.

Shunrei agradece, sai do consultório e reencontra Shiryu do lado de fora.

— E então? – ele pergunta, aproximando-se dela.

— Não foi nada. Só vou ficar com essa "maquiagem" roxa por alguns dias – ela responde sorrindo.

— Que bom. Vamos? Ainda temos que passar no restaurante para comprar o almoço do pessoal.

— Espero em breve poder colaborar com o almoço – ela completa, envergonhada pela total ausência de recursos.

— Não se preocupe com isso.

— Como não? Vou ficar morando na casa com vocês, não é justo não colaborar.

— Quando puder, você colabora. Por enquanto, não se preocupe.

Ela agradece com mais um sorriso e os dois voltam ao carro. Já no restaurante, Shiryu faz o pedido e eles se sentam para esperar que preparem.

— Geralmente é o Seiya quem vem buscar no sábado – explica Shiryu. – Ele tem uma moto. Mas como hoje eu ia sair com você...

Um homem alto e forte, com cabelos negros arrepiados e grandes costeletas da mesma cor, aproxima-se da mesa e cumprimenta Shiryu.

— Como vai, discípulo? – pergunta o homem em roupas esportivas, com um enorme sorriso no rosto, e um sotaque diferente, do qual Shunrei não consegue definir a origem.

— Ah, muito bem, mestre! – Shiryu responde também sorrindo. – Shunrei, esse é o senhor Shura, meu mestre de kung-fu.

— Ah, sim, muito prazer – Shunrei sorri.

— Igualmente! Muito bonita a sua namorada! – Shura diz um tanto surpreso. Não imaginava que Shiryu estivesse namorando, visto que o rapaz é bastante discreto.

— Ela não é minha... somos... somos amigos... – Shiryu corrige um tanto desconcertado e mais vermelho que um pimentão.

— Ih... desculpa. Eu e minha indiscrição... mil perdões.

— Tudo bem... – Shiryu levanta-se, dando graças a Deus porque já estavam trazendo seu pedido. Shunrei também se levanta. – Temos que ir, mestre.

— Vejo você na próxima aula? – o professor pergunta, ainda envergonhado pela pequena confusão.

— Claro, mestre – Shiryu responde e deixa o restaurante acompanhado de Shunrei. Ainda está terrivelmente envergonhado mas não consegue evitar pensar que seria incrível se ela fosse mesmo sua namorada.

Continua...

—S -A -

Reescrito em 02/2019


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