Estrela Solitária escrita por AnaYukina


Capítulo 8
Capítulo 6: Murakami




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Capítulo 6:Murakami


Sweet Little Girl
I prefer
You behind the Wheel
And me the passenger
(Behind the wheel – Depeche Mode)


Kenichiro Fujiwara odiava Koenma Daiou,na forma concreta da expressão.Aos olhos do incansável defensor da justiça,aquele homem tolo,que gaguejava quando pressionado,que mascava sua estúpida chupeta quando desejava não ver o tempo passar,seria sempre o verdadeiro assassino de sua filha.

“Ela era uma menina...de 16 anos de idade...e você,com esse patético traseiro abancado em sua cadeirinha giratória,apontou o dedo na direção de Ayumi...e a mandou enfrentar bestas sanguinárias!”

Durante o funeral sem corpo de Ayumi Fujiwara,Koenma tivera o nariz quebrado pelo punho de Kenichiro.

Só freqüentava a casa na presença de Reiko.Agora estava tocando o interfone ciente de que não a veria atender ao portão,sorrindo e levantando os braços ao dizer “Não sem antes ler os meus direitos”.Isso machucava mais do que mil socos.

“Boa-noite.O que deseja?”—Reconheceu na hora o timbre natural de imponência ecoando pelo auto-falante.A seca polidez que o tornava quase intimidador deu à Koenma a certeza de que o promotor lhe observava através da câmera de segurança.

—Boa-noite,senhor Fujiwara.Eu...

“Sua equipe uniformizada de mal-educados esteve aqui mais cedo.Minha neta não está em casa.Pensei que o seu serviço de espionagem fosse mais eficiente...ou será que esqueceram de lhe informar?Eles costumam fazer isso,Senhor Koenma?Dar-lhe satisfações?”

Botan ergueu as sobrancelhas,mas permaneceu calada ao ver seu chefe ruborizar,bufando.

—Naturalmente,senhor...—O príncipe do Reikai mal conseguia disfarçar o aborrecimento que lhe causava o tom súbita e forçosamente simpático do outro.—Sei que Reiko não está em casa...por isso eu vim...precisamos falar sobre ela...pessoalmente,de preferência.

Aqueles encontros lembravam à Koenma ligeiramente as tensas reuniões que costumava ter com o Rei Enma.

“Qual o assunto?Não falarei sobre minha própria neta às escondidas,Sr. Koenma,não sou um dos seus espiões atrofiados”.

Ele se referia às criaturas anãs que faziam relatórios acerca de Reiko,seguindo-a por todo o dia à todos os lugares.

Espiões atrofiados...!Com esse vozeirão ia ficar tão esquisito!.Nervosa,Botan conteve uma alegre risada.Se não conseguisse passar no exame para guia espiritual,tentaria uma vaga de secretária no escritório,e a seleção era feita pelo chefe em pessoa!

—Pelo amor de Deus!,houve um problema com Reiko!,é o que estou tentando dizer!,deixe de graça e abra logo!

O portão destravou automaticamente.Exasperado,Koenma rumou à porta de entrada,seguido por uma preocupada Botan,que já ouvira falar do péssimo relacionamento entre aqueles dois.Nunca permitiria que o patrão apanhasse!Trouxera o remo do teste de vôo consigo (sem o conhecimento do instrutor) e se fosse preciso aquele seria, quase que literalmente, seu passaporte rumo à um futuro melhor!

—O que houve?

Fujiwara tinha atravessado o pátio,indo ao encontro da dupla.Mesmo estando ele em roupas informais,o choque imediato com aquela aura inabalável de autoridade,embalada pela tensão que transparecia no semblante,apenas realçando sua força,inspirou receio em Koenma,acompanhado de uma antecipada certeza de derrota.
—Ela teve outro ataque...pelo jeito foi...mais intenso...

O Sr. Fujiwara e Koenma Daiou estavam há quase um metro de distância um do outro.Botan,ao lado do chefe,fitava o outro homem com uma séria timidez que jamais fizera parte de seu comportamento.

—Ela se feriu?

—Talvez...mas ainda não recebi informações concretas à respeito.

—Ela feriu alguém?

—O Serviço de Inteligência está cobrindo o ocorrido...não há detalhes...

—Ela já foi resgatada?

—Já deve ter sido,sem dúvida...mandaram-me avisá-lo,enquanto as demais providências estão sendo tomadas.

Koenma se arrependeu de ter dito mandaram-me.De repente,ele viu no rosto daquele homem invencível toda a angústia,a raiva,e o temor que a sensatez tentava controlar.Era algo parecido com o que já tinha visto antes,há anos atrás.Sentiu-se ainda mais insignificante,e até mesquinho,egoísta.

—Existe alguma coisa da qual você tenha conhecimento absoluto?

O príncipe não se aborreceu.Comoveu-lhe sentir que a dor atacava a imponência impiedosamente.

—Eles serão bem sucedidos,senhor...—respondeu,com respeitosa amenidade.—Se tiverem de salvá-la,eles a salvarão.

—Não duvido!Ayumi também deve estar à salvo em algum lugar,não está?Ainda não deve ter voltado para casa por falta de transporte!

—Eu entendo a sua...

—Leve-me até minha neta,Senhor Koenma.

O herdeiro de Enma lembrou-se das ordens enviadas pelo Serviço de Inteligência:1-Reportar ocorrido.2-Permanecer à espera.Vão para o inferno!

—Agora mesmo,senhor.

—Dê-me um instante...preciso falar com minha esposa...não posso deixá-la sozinha,mas também não quero que veja qualquer coisa que possa prejudicá-la.

O homem deu-lhe as costas,aproveitando para recuperar o fôlego.

—Senhor Fujiwara!

Ele parou de andar e voltou,enquanto Botan se aproximava dando passos miúdos.

—Se...o senhor quiser,eu posso fazer companhia à ela,até o senhor voltar!Podemos conversar sobre um monte de coisas relaxantes,nada de preocupações,eu garanto!Sabe,quando era pequena,eu costumava brincar com as almas dos anciões enquanto minha mãe despachava os documentos...não que eu esteja chamando sua esposa de anciã!,eu nem sei quantos anos ela tem!,mas acho que posso ajudar porquê...

—Botan,já chega!—Koenma suplicou,sussurrando urgentemente.Porém,o avô de Reiko fitou-o de queixo erguido,com seu ar imperioso outra vez tomando o controle.

—Extraordinariamente, o senhor tem razão, já chega.Esta jovem, com palavras simples e um único gesto,mostrou-se mais útil do que o senhor jamais se mostrou em todo o tempo em que tem contato com minha família.—Ele então olhou para a garota.—Muito bem...!Seu nome é Botan,correto?Sou Kenichiro Fujiwara,senhorita,muito prazer.

—Prazer,senhor!—Ela coçou a cabeça,dando um sorrisinho meigo.

—Você trabalha com este homem?

—Sou uma estagiária esforçada quase contratada!

—Por favor,termine o que ia dizer antes de ser interrompida.

A moça olhou para o alto,de boca aberta,pensando.—Ah,sim!Eu ia dizendo que posso ajudar porquê os velhinhos gostavam muito de mim,bem,pelo menos os que não eram muito rabugentos!Um deles disse que eu era meio maluquinha,mas conseguia deixar as pessoas relaxadas até nos piores momentos...eu...eu queria fazer isso pela sua esposa.

—Dentre todos os rostos infelizes desta equipe de trabalho,o seu me parece o único genuinamente gentil e bem-intencionado...pois muito bem!Minha esposa hoje é uma mulher frágil e triste ao extremo,senhorita Botan.Não toque em assuntos relacionados à este caso ou à minha filha,Ayumi,pois a senhora Naomi certamente não terá essa iniciativa.Isto lhe causa muito sofrimento.Acompanhe-me,vou apresentá-las...quanto ao senhor,espere aqui mesmo.

Botan olhou para trás.Dando um suspiro cansado,Koenma encorajou-a com o olhar.

***


Isamu Ishida jamais cogitara a louca idéia de abandonar a organização Hisamatsu.Mas pela primeira vez,ele tinha vacilado,não em sua lealdade,mas em seu talento para fingir cegueira diante de certos fatos...

O homem fizera conforme seu amigo Kenkaki desejava:fora saber notícias de Norika Motomiya.Se a moça já estivesse morta...tudo bem!Teria de esperar por isso!Não haveria nada de anormal...tecnicamente falando,ele pensara...!O próximo passo seria procurar um local adequado onde pudesse ‘despejá-la’.

Mas havia um outro problema de ordem técnica esperando-o:Masanori Kato tinha esquartejado o cadáver à machadadas e não tencionava livrar-se imediatamente de nenhuma das partes.O grande banheiro de seus aposentos enquanto estivesse no Hisa Fighters Temple—como chamavam a ‘casa de eventos’ clandestina—,trazia paredes e piso cobertos de sangue e pedaços de carne esfacelada grudadas nos azulejos.

Houvera um longo instante de aturdimento para Ishida após alcançar a porta aberta e aventurar-se de supetão...quase escorregou na sujeira,apoiando-se à tempo nos portais...

A garçonete que sempre o atendera com um sorriso no rosto tivera suas pernas,pés,mãos,e braços amontoados sob o chuveiro,próximo ao ralo.Seu tronco jazia aberto em toda a extensão,sobre uma bancada fixa à parede,exibindo os ossos acetábulos manchados de vermelho,nas extremidades dos quadris...

Vestindo apenas calças,expressando absoluta serenidade,Kato mantinha-se junto à profunda banheira de mármore,usando um comprido facão ao remexer seu conteúdo:em água quente,temperados com sais de banho,seus próprios fluidos e vísceras,os órgãos internos de Norika faziam parte da ‘sopa de almas’.O vapor que subia da mistura avançou fétido contra as narinas do incrédulo Isamu Ishida.

—SEU...SEU...SEU MALUCO DE UMA PORRA!

A voz trêmula,desvairada e reprovadora não produzira efeito na atitude do outro.Ele apenas pousara o facão sobre a borda,antes de ergueu-se.

—Você já experimentou banhos medicinais,Isamu?—Masanori fizera a pergunta com certo ar de curiosidade,começando a desabotoar a única peça de roupa que vestia.

—VOCÊ...!VOCÊ FEZ MERDA,CARA!—O rosto contorcido pelo repugnância hesitava.—MUITA MERDA!OS TIRAS VÃO ENCANAR VOCÊ,VÃO DESCOBRIR SOBRE O LUGAR...PORRA,KATO,PORQUÊ FAZ ESSAS COISAS?!

—As ervas fazem bem ao corpo,já que vem da natureza...—Masanori despira as cuecas,ficando inteiramente nu,sua postura ereta e paciente.—...nós,os humanos,também fazemos parte da natureza...então,isso quer dizer que podemos fazer bem uns aos outros,como as ervas...acho que com maior eficiência!A essência é mais complexa!Podemos conversar uns com os outros através da carne...

Ishida jamais tinha visto algo tão monstruoso.Sempre achara Kato esquisito,ria daquele costume idiota de trepar com cadáveres como quem ria de uma piada estúpida e nojenta.Seu choque não se dera pelas conseqüências que o ato em si acarretaria...o mórbido quadro perturbava-lhe o senso de um modo pessoal.Mais do que ninguém participava de uma das muitas facetas selvagens que o mundo podia oferecer...mas aquilo era inconcebível.

—PARE!

Masanori Kato mergulhara em sua pavorosa sopa.Desaparecia e reaparecia com intestinos escorregando-lhe do alto da cabeça e pelos ombros,o coração deslizava por sua pele como se fosse uma esponja macia...

Isamu voltara-se bruscamente.Fora vomitar sobre o elegante tapete do quarto,diante da TV de 29 polegadas.

Momentos depois,descera,devorado por desespero e indignação.Naquele ínterim,o youkai Arago,sob o codinome Andy Lau,derrubava seu quarto adversário.Hiroshi Kenzaki supervisionava o funcionamento de um amplo escritório,com divisória no centro que separava os bastidores e os guichês de apostas.

—Nada de misturar notas,hein?Ei,vá recomendar mais uma vez aos atendentes que avisem os seguranças sobre quem está devendo além do limite...para ficarem de olho,mas com calma,sem deixar que percebam,não é para espantar os caras...só os que tem histórico recente,é claro,idiota!

Kenzaki acomodou-se no sofá,descansando as pernas sobre a mesinha mais próxima.Acendeu o cigarro sem dar importância ao homem que sentara ao seu lado.

—Sabe,eu nunca podia imaginar que vocês fossem tão profissionais...hoje eu vejo os humanos de um outro jeito...

—Engraçado,os da sua raça também me surpreenderam hoje...através de você...—Só então Kenzaki o fitou,de esguelha.—Achei que youkais resistissem à grande quantidades de bebida,porrada,fodas,chantagem emocional,enfim...você deixou que ela se mandasse?Teve pena dela,Gotaru?

Era um rapaz alto,magricela,mas tinha olhos verdes muito vivos e ar confiável,com longos cabelos negros servindo-lhe de moldura.Seu sorriso deu à Hiroshi Kenzaki a impressão de que apenas pensamentos bastariam para que se divertisse horrores.—Ela realmente foi uma boa transa...eu a fodi até não poder mais...foi o melhor presente que já ganhei de você.

—E a velharia do museu?Você estava tão animado...

—Eu me enganei,desculpe tê-lo feito perder tempo...não é a coisa que estou precisando,à longo prazo...

Kenzaki ofereceu-lhe um cigarro,mas recolheu-o após uma recusa gestual.—O que você quer à curto prazo?

—Trepar mais uma vez com aquela menina de hoje à tarde...para onde será que ela foi?—Ele inquiriu-o com um rápido erguer do queixo.O humano deu de ombros,sorrindo.

—Deve estar chorando no ombro de alguém...tomara que não seja no da polícia...

—No seu mundo é crime dormir com mulheres gentis?

—No meu mundo,nós dormimos com mulheres gostosas e nos casamos com as gentis,quando há oportunidade...não que as duas coisas tenham de andar separadamente,mas é uma questão de pré-requisito...aquela garota é gostosa...gentil...mas ela não transaria com você de novo,sendo assim,duvido que role casamento,então esqueça...

De repente,Isamu Ishida escancarou a porta,pálido e nervoso.

—Fodeu-se tudo,Hiro!Desta vez eu estou fora,completamente fora!

Antes que ele se aproximasse,os dois homens dissiparam o ar de conversa íntima entre si olhando para direções contrárias com expressões de vazio.Kenzaki foi o primeiro a fitar o recém-chegado.

—Diga do que pretende pular fora para que eu possa te matar tendo um motivo,de forma justa!

—KATO!Aquele esquizofrênico psicopata,seja lá o que você quiser chamar,pode ser até a polícia,eu não me importaria!

—Pare de falar merda,seja objetivo!

Isamu Ishida gargalhou falsamente,cheio de sarcasmo.—Nossa irmão mais velho decidiu abrir um açougue e não quer ter gastos com a matéria-prima!Vamos,venha ver!Você também,Yamamoto,venha ver como se abre um bom negócio poupando um bom dinheiro!

Em fila,os três homens se dirigiram ao andar superior.


***


Cercada por quatro figuras trajando uniformes brancos, a maca deslizou silenciosamente pelo corredor.Um rapaz aparentando não ter mais que vinte anos de idade caminhava alguns passos adiante, suave e célere, examinando relatórios.

Gaspard Murakami estivera entediado em relação ao trabalho por todo aquele mês.Agora, tinha no rosto claro uma sobrancelha erguida e um discreto interesse acendendo pouco a pouco.De repente, ele parou à frente do portal eletrônico, sorrindo para si mesmo ao fechar a pasta.

—Sun Tzu diz “O objetivo da guerra é a paz”.Veremos se a senhorita Fujiwara poderá fazer-se tão valente...enfrentando uma batalha espiritual extremamente dolorosa...mas que servirá sem dúvida para o seu próprio bem...quanto se faz ao enfrentar a invencível ignorância social!

O Terceiro Assistente-Geral do Setor de Biopsicocibernética e Medicina sobrenatural submetera-se à scanners de energia sobrenatural e saliva afetando um pedante ar de grandiosidade.

Dois de seus colegas divertiram-se,rindo abertamente,enquanto um dos restantes apenas sorriu ao passo em que o último não tolerou:

—Depressa,seu irresponsável!

Murakami posicionou-se diante do Identificador de Voz,sussurrando gravemente:— Un de personnes glamouriza la poltronnerie!

O intolerante revirou os olhos ante à perfeita pronúncia em francês.—Vou reportar à diretora essa sua falta de comprometimento,Gaspard!

—Ora...—O rapaz continuou à frente do grupo ao adentrarem a zona proibida.—...deixe-me reportar primeiro à você,Yukio...nesta situação inexiste risco de morte uma vez que a ofensiva foi intrínseca e abstrata no campo do organismo,de modo que a moça está apenas em estado suspenso...é como se fosse um centro operacional sobre-carregado,superaquecido,precisando dissipar o calor,reorganizar suas funções...no caso da senhorita Fujiwara,ocorreu uma sobrecarga emocional...ou excesso de comprometimento,se assim você o preferir...

Yukio ficou vermelho.—Não é à isso que me refiro!Apesar da questão não exigir urgência,se não agirmos com serenidade e concentração,não podemos ser eficientes porque nossa atenção se dispersa com bobagens,acabamos tratando a coisa como se fosse mais um caso qualquer,e não do modo particular e cuidadoso com que cada acontecimento deve ser tratado!

—“Coisa”?—Gaspard Murakami sorriu.—Mas o relatório sobre a questão cita um nome específico, ‘Reiko Fujiwara’...curioso,a verbalização da sua idéia foi monótona e deselegante,mas você deseja muito assegurar-se dela,não é?Você tem medo de não estar sendo eficiente,e que a diretora ou qualquer um de nós perceba isto...é por demais desapegado às sutilezas,Yukio...mastigue mais devagar...sinta a consistência,o sabor...descubra suas peculiaridades,aprenda a diferenciá-los dos outros...assim poderá descobrir o que há de mais especial na vida,escapar da insignificância à qual possui tanto temor...o que chama de ‘seriedade e concentração’ nada mais é do que uma pressa desesperada e desnecessária...está irritado e ansioso,porquê ainda não aconteceu coisa alguma,você quer de imediato a glória,a admiração,saltando etapas,como se tivesse nascido rei...seria mais fácil construir uma ferramenta e fazer com que algo acontecesse...mas seja gentil,e avise antes,pois nosso dia-a-dia tomado pelo stress do trabalho precisa um pouco de emoção e suspense...

Os demais nada comentaram,mas um deles deixou escapar uma sombra de riso.

—De onde tirou isso,você não me conhece...!—Yukio tremia,cheio de dignidade.—Jamais conversamos intimamente!Você não tem direito e nem razão para...

—Não conversamos intimamente...mas temos uma longa convivência...todos os dias você fala e age ao meu redor...é impossível não notar certos fatos.Apesar de nunca ter entrado em seus aposentos,sei que deve ter uma bola de futebol americano oculta,provavelmente presa por tiras ao estrado da cama,onde ninguém pode encontrá-la pois nossos leitos possuem largas coberturas laterais e hastes longas...lá você deita,depois do expediente,girando-a em suas mãos,perdido em pensamentos acerca daquele mundo lá fora,ao qual só podemos observar e proteger...você diz para si mesmo que nenhum dos seres humanos sabe o quanto deveria ser grato à todos nós,em especial à você,por vivermos à seu serviço...mas garanto-lhe uma coisa,Yukio,com o conhecimento de quem é humano...mesmo que soubessem,eles não agradeceriam...e digo mais...enquanto estivesse prisioneiro da sua falta de opções,não daria importância alguma à qualquer agradecimento...mas você adoraria ser bajulado,ou até odiado,se este ódio fosse proveniente de um grande ato que lhe concedesse autonomia...e é isto o que tem perseguido deste que saiu do Reikai para enterrar-se aqui...no Reikai.

Durante a conversa,eles tinham prosseguido com os trabalhos:Reiko jazia imóvel sobre uma estrutura metálica alimentada na parte inferior por cabos transmissores de energia artificial,que funcionava como o soro e os tranqüilizantes aplicados nos hospitais aos doentes comuns.Penetrava o corpo através do metal,possuidor de propriedades absorvedoras e de estabilização.

Aos seus aparatos de contenção,tinham conectado detectores para monitorar as alterações.Reiko estava cercada pelos mais diversos equipamentos e substâncias,tratada pelo quarteto.

—Sabem de uma coisa?Eu morro de pena.—O assistente chamado Akira estava resignado.—Muito linda...inteligente,pelo que dizem...tinha tudo para ter uma vida extraordinária...a paranormalidade não seria problema!Mas graças à droga de sua metade demoníaca não vai poder tirar muito proveito...

Emi,a única mulher do grupo,assentiu.—É como se já tivesse nascido amaldiçoada...o clã do pai lhe tem repudia...o Reikai acolheu,mas com um pé atrás...e nunca poderá integrar-se de todo aos humanos comuns...

—Não entendo como podem mantê-la no Ningenkai—Yukio soou neutro.—Está certo,é parte humana...mas sua porção youkai tem um peso maior...e se os Kadaisha invadirem o mundo dos homens para matá-la?A Guarda Expedicionária vencerá...mas não sem um grande tumulto!

Gaspard Murakami não poderia se aprofundar satisfatoriamente no assunto,achando melhor aguardar.

—O laudo está sendo decodificado...—Observou Emi,aproximando-se de um dos monitores.—...vamos,leitura,vamos...há um canal da mente emitindo ondas de comunicação externa...

—Ela arranjou algum modo de resistir,valeu,garota!—Murmurou Akira,checando os aspectos biológicos.—Sem dano cerebral...a atividade não cessou,está apenas cercada pela barreira psíquica...é como se estivesse tentando filtrar o que entre e o que sai,tentando repelir uma informação indesejável...ou expulsar...

—Isso não faz sentido!—Yukio franziu a testa,muito intrigado.—Deveria normalizar apenas com a terapia primária...

—Muito bem,estabeleceremos contato com a alma...vamos separá-la do corpo...conversaremos civilizadamente,mas receio que não haverá tempo de servirmos um chá...devemos atingir um grau de intimidade suficiente para explorarmos o espírito e encontrar a causa do distúrbio e,é claro,estirpá-lo...

—Você está louco...!—Yukio sacudiu a cabeça.—Ainda nem testamos as demais possibilidades padrões,não pode partir para uma solução tão drástica!

—Possibilidades padrões?—Murakami ergueu uma sobrancelha.—Tentar comunicar-se com um físico lacrado através de artifícios mundanos que jamais transpassarão os limites da alma?Talvez possamos fazer uma feitiçaria ‘danada de boa’ à base de mantras dos nossos ancestrais...

—Você já tem uma idéia clara do que esteja acontecendo?—Akira sempre usava de cautela,mas não se opunha de todo ao processo.Emi deu apoio à Gaspard através de um olhar determinado antes de se dirigir aos monitores.

—A telecinesia não é hereditária...

—Não temos tempo para suas teorias absurdas!Vamos chamar o Dr. Oikawa...

—Nosso doutor ficaria encantado em unir-se à nós se alguns drinks não estivessem refrescando sua imaginação...Akira e Emi já ouviram minha tese no último seminário,Yukio,mas vou repeti-la exclusivamente em sua honra...veja bem,todos os seres com poderes especiais manifestam a capacidade em grau insignificante no início de seu ciclo de vida...quando jovem,o Rei Yomi de Gandara foi um ladrãozinho de sétima classe...ao longo dos séculos ele desenvolveu seus poderes de modo a se tornar um dos três soberanos do Makai ...do zero,o Sr. Koenma vem armazenando energia há tempos em sua simpática chupeta...a telecinesia é um dom extraordinário:provém do estado psicológico,e é uma força originariamente avassaladora,seu poder de destruição depende apenas do temperamento e não de séculos de treino exaustivo...!Em termos próximos à sua realidade,é como se os sentimentos do paranormal fossem gasolina despejada sobre as chamas naturais do espírito,que é a fonte guardiã do reiki e do youki...

Murakami ficou em silêncio,fitando Yukio com serenidade.

—Sim,e daí?É só isso?

—Ora,eu estava esperando sua absorção e entendimento dos fatos...fica para o final?Pois muito bem,acredito que a telecinesia não se trata de mover matéria,mas sim de queimar a peculiar sensibilidade do indivíduo à um nível sobrenatural...não é,portanto,hereditária,como crê a maioria...é um fenômeno de personalidade traduzido pelo poder espiritual...a senhorita Fujiwara é uma criatura esplêndida:suas emoções ardem com tanta paixão que escapam do seu âmago imbuídas de vida própria graças ao Ki,carregadas de ímpetos assassinos e destruidores,dependendo da ocasião...Ayumi Fujiwara.Ela foi um anjo violento,como deve ser a sua filha...

—Que evidências consistentes...

—Todos os estudos sobre telecinesia feitos até hoje me levaram a concluir que o fundamento de tais estudos são apenas observações superficiais...os estudiosos anotaram o que viram em suas pranchetas enquanto sua incompetência nata descartou o que não podiam ver...e é tão simples...a telecinesia não é um dom a ser desenvolvido,mas controlado...

—E quanto ao seu uso em batalha?—Perguntou Akira,curioso.—Não é uma forma de desenvolver o poder,dando forma à ele e utilidade além da expressão agressiva de sentimentos?

—Você é muito competente, meu caro!—O rosto branco de Gaspard iluminou-se.—Paranormais de natureza ofensiva, quando espertos,jamais se desnudam psicologicamente diante dos demais...caso contrário,podem ver suas vulnerabilidades caírem nas mãos de um pessoal nada confiável...tornar-se-ão fantoches se capturados...a partir daí,através de métodos artificiais,é muito fácil incutir-lhes na mente os estímulos que potencializarão seus poderes,ou seja,a doma dessa capacidade é feita cientificamente,alheia à vontade do seu detentor enquanto este vegetará até a morte,ou pior,o retardamento mental...portadores de telecinesia independentes só conseguem controlar seus poderes em batalha quando movidos por razões muito relevantes em seus aspectos moral e sentimental,como ambição,ódio,amor,orgulho,bondade,raiva,enfim,tudo o que mexer profundamente com o ‘eu’ interior...por exemplo,certa vez,ainda em meu cativeiro,presenciei uma batalha entre paranormais...os capangas do homem que apostava num deles à todo momento exibiam ao seu respectivo jogador os tesouros que ganharia se vencesse...

—O que aconteceu?

—Um desenrolar muito cômico:os dois lutadores morreram e ninguém ganhou tesouro algum!

—Isso não muda o fato de que eles desenvolvem técnicas de luta!—Atalhou Yukio,quase zangado.

—O inexistente não poder modificado!—Murakami ergueu uma sobrancelha.—A senhorita Fujiwara só não pôde controlar seus poderes porquê devia estar se afogando em desespero,o que é fatal para alguém com esse tipo de poder...afinal,ela não estava em batalha,sofreu um choque emocional somente!Já vi cérebros de muitos passionais desta linha explodindo,senhora e senhores...

Quase consternado,Akira olhou para Emi e depois para Yukio.—Então...o método que você propôs teria o intuito de apagar o incêndio do espírito,pois foi através dele que a sensibilidade transbordou,tornando-se concreta?

—Exato.

—O que acha,Emi?

—Acho que já devíamos ter começado!Ela ainda pode ficar em suspensão por uma semana,já que o corpo dos youkais tem mais resistência à essas anomalias,mas se já temos a solução,para quê perder tempo?A família dela deve estar desesperada...não concorda,Yukio?

—É um procedimento arriscado demais para ser feito com base numa tese!Olhe,sei que você adquiriu muita experiência enquanto viveu escravizado por aqueles loucos...—Yukio se dirigiu à Gaspard de modo ligeiramente suave.—...mas se der alguma coisa errada...

—Não dará,eu garanto.—Murakami retribuiu a cortesia implícita do colega.

Reiko foi transferida para o dispositivo apelidado pelo staff de ‘cápsulas trigêmeas’: o componente que acomodava a garota possuía formato horizontal, enquanto o vertical não contava com barreira alguma em relação ao meio externo,pois somente quando a alma estivesse pronta para ser retirada,um campo magnético tratado para funcionar como uma espécie de analgésico e capa térmica tornaria-se a única fronteira,evitando sua dispersão e quaisquer alterações danosas.

A terceira cápsula,a mais especial e complexa dentre as ‘irmãs’,interligada às demais,abrigaria o espírito,desvendando seus aspectos,capacidades,os frutos e suas fontes,também projetando suas condições de acesso e os caminhos a percorrer,sem no entanto,desmembrá-lo.

Era uma verdadeira expedição,realizada através de uma ciência meticulosa ao extremo.Eles entrariam em contato direto com a essência de Reiko Fujiwara.Se conduzida de forma abrupta e superficial,se qualquer substância ou energia inadequadas fossem injetadas no ambiente estéril,havia risco do Ki maligno se expandir,vitimando tudo o que pudesse alcançar.

—A cabine de Transcomunicação Instrumental está pronta...quem se arrisca?

Alguém sorriu para Yukio,satisfeito.—Posso ter o privilégio?

—Eu já esperava por isso...vá em frente!

Gaspard Murakami instalou-se no centro da estranha máquina,muito à vontade.O que poderia desesperar os leigos parecia-lhe excitante ao extremo.Ele sentou-se na cadeira de metal,muito concentrado.

La douleur passe...la beauté est...!


***


Mini-dicionário:

1. Un de personnes glamouriza la poltronnerie – Um povo glamouriza a covardia.

2. La douleur passe...la beauté est...!— A dor passa...a beleza fica...!

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