Filhos da Luta escrita por elizia
Filhos da luta
Kanon entrou carregando um caderno surrado, cheio de orelhas de burro e um buraco redondo na contracapa, de tanto apoiá-lo no dedo, para girá-lo no dedo, como uma bola de basquete. Um menino peladinho atravessou-lhe a frente, enquanto uma professora o perseguia, no mínimo com a intenção de esfolá-lo.
O rapaz lembrou-se que aquela não era a primeira vez que o tal moleque fugia do banho.
Apressou o passo. Foi quando ouviu uma voz balbuciante repetir uma frase em mau inglês.
-Ái... Ái-me fái... fái... ne.
Riu. Será que era tão difícil dizer “I’m fine”?
Lembrou-se do trabalho que tivera para aprender o inglês, maldito inglês, domínio do mundo, os filhos da puta dos americanos, queria mais é que se fodessem mesmo.
Ouviu a própria voz, ou melhor, a de Saga, repetir:
-How are you?
Ainda vagando pelo passado, viu o irmão mais velho chorar baixinho ao ouvir uma voz sádica:
-Your parents are died.
Saga não entendia uma palavra, mas sabia o que significava: seus pais estão mortos.
- Died for americans!
Agora, ensinava inglês pr’aqueles garotos, pobres crianças,não sabiam por que aquela língua enrolada lhes era enfiada goela abaixo.
-Saga! – entrou no quartinho. O gêmeo, ao vê-lo, sorriu:
-Como foi a aula?
Aula? Que aula? Ah, é verdade. Estivera numa classe de espanhol ainda pouco. Pelo menos em teoria. Na verdade, estava com uns amigos, planejando derrubar o World Trade Center de novo. Suspirou.
-Kanon?
-Ahn?
-Eu te fiz uma pergunta.
-Ah, foi... Foi... Muito boa! Estamos estudando os verbos irregulares.
O pequeno rabiscava uns bigodes no Tio Sam estampado na capa do livro.
-O que está fazendo?!- perguntou o improvisado professor de inglês, alarmado.
O gêmeo mais novo riu:
-Deixa ele. Tá ficando engraçado.
-Ridículo, você quer dizer.
-Ridículo já é. O garoto tá é arrumando.
-Kanon! Sabe o que fariam com você se te ouvissem?
Claro que sabia. Desde que os EUA tinham ganhado a Terceira Guerra Mundial, infinitamente mais violenta e destruidora que as outras duas juntas ( mais a Guerra do Vietnã, a do Paraguai e as ditaduras de Hitler,Stalin e Mao Tsé Tung ), dominavam o restante do mundo, cobrando tributos, serviços e soldados, ditando-lhes as leis, direitos e deveres.
Mas o pior era a censura. Puniam os anti-americanos pior que os regimes ditatoriais, eles que se achavam a nação mais democrática da história.
Não havia exílio. Ou melhor, havia, e o asilo político era no inferno. Isso depois de uma sessão de tortura violenta.
-Sei. Saga, como você pode baixar a cabeça assim?
-Kanon, já pedi pra você parar de querer ressuscitar Marx.
-Isso, se acovarda. Medinho dos ianques, é?
-Que droga! Você é a única família que eu tenho, vai se matar por um orgulho besta?
-Besta? Eles assassinaram nossos pais, jogaram isso na nossa cara durante todos esses anos e tudo que você quer é que continue assim?
O menino não ouvia: desenhava uns cornos no Tio Sam.
-Kanon – disse Saga, tomando-lhe as mãos – prometa-me que não vai fazer alguma asneira.
“Merda.” O mais novo dos gêmeos sabia de uns guerrilheiros anti-ianques, queria se juntar a eles, preferia a morte a ficar subjugado pelos filhos da puta que mataram seus pais, mas Saga sempre impedia. Não queria deixar o irmão só. E tinha, ele próprio, mais medo da solidão que ódio daqueles assassinos.
-Prometo – e essa palavra lhe cortou o coração.
-Muito obrigado – disse o mais velho, levando as mãos que tinha entre as suas à boca, para beijá-las. Kanon interrompeu o gesto com frieza e se abaixou ao lado do menino, que o fitou com dois enormes olhos azuis:
-Kanon?
-Apague isso, Afrodite – disse em francês. O pequeno, ao ouvir a língua-mãe, sorriu:
-Apago – disse. – Mas por quê? Você estava gostando.
- O livro é do Saga. Ele não gosta.
O “professor” interrompeu os dois com uma exclamação abafada:
-Vocês não podem falar francês! – Sem querer, na mesma língua.
-Por quê? – indagou Afrodite.
-É crime! Eu não quero que nenhum de vocês morra por uma bobagem dessas!
Afrodite levantou-se da cadeira, correu para ele e o abraçou:
-Desculpe, desculpe – disse, quase chorando. – Eu vou aprender inglês direitinho, eu nunca mais vou falar francês.
Saga presenteou-o com um afago nos cabelos.
-Kanon, você...
- Eu também não – e foi saindo.
-Aonde vai?
-Estou enjoado da caretice de vocês. Vou procurar alguém que faça outra coisa além de bajular os ianques.
Bateu a porta com violência. Saga rendeu-se, atirando-se na cadeira com um suspiro.
O menino ajoelhou-se sobre outra, apagando os bigodes e os chifres do tio Sam e repetindo baixinho:
-Ái... Ái-me... fái... fái... fáine...
-Chega de inglês por hoje, Afrodite. Pode ir.
Ele continuou a apagar os rabiscos, apenas parou de falar.
Kanon ouviu os insultos a Deus, em italiano e se aproximou daquele que praguejava:
-O que foi?
-Aqueles filhos da puta. Ou, como eles mesmos preferem, “sons of bitches”.
-O que houve?
-Me bateram. Outra vez.
Eles tinham o maior prazer de descontar nas crianças suas frustrações. E todos fechavam os olhos àquela violência, afinal, tratava-se de órfãos de subversivos. E quem iria querer comprar briga com os chefões?
-Bateram só em você?
Antes que Alexandre pudesse responder, entrou, lacrimoso, o pequeno Mu, que correu para o colo de Kanon:
-Dói... – Gemia.
O irmão de Saga abraçou aquela criança tão indefesa, tão...
-Calma, já vai passar.
Aioria e Aioros chegaram em seguida, os rostos um pouco inchados, marcas de hematomas pelos braços nus, os cabelos em desalinho e muito ódio.
-Vocês também?
-Aqueles animais têm prazer de maltratar a gente. Não pensam antes de bater – respondeu o mais velho. O caçula olhava o movimento pela janela, até exclamar:
-Olhem, um táxi.
-Grande coisa, Aioria. Vai dizer que nunca viu um táxi.
-É que está parando aqui.
Aioros se colocou ao lado do irmão:
-Puxa, é mesmo. Quem será?
-Uma moça. Que linda!
--Bobagem – interrompeu Kanon. –Mulher bonita não pára aqui.
A moça desceu do carro com elegância. Um homem carregou-lhe as malas para dentro do orfanato.
-Ih, ela entrou.
Kanon ficou intrigado. Por que uma moça bonita entraria ali? Subversiva? De táxi? Não, não.
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-Oh, disse o diretor do orfanato, em inglês, ao ver aquela modelo de elegância. – Como foi a viagem, senhorita Barbie?
-Ótima.
-Entre, entre, por favor. – Ela o seguiu. Atrás, um homem carregava as malas da beldade. – Recebi o e-mail de Washington agora há pouco, e ele não explicava a razão de sua vinda, senhorita.
-As crianças.
-Que crianças?
-Isto não é um orfanato?
-Ah, essas crianças – disse o cara com desprezo. – São marginais, delinqüentes. Também,o que mais se poderia se esperar de filhos de subversivos?
-Eu penso o contrário. São crianças, e precisam de amor.
O diretor só não riu porque se tratava de uma protegida do presidente dos EUA:
-Amor? Esses monstrinhos não sabem o que é amor.
-Exatamente. Mas porque não lhes foi mostrado. Eu pretendo mudar isso. Creio que poderão ser reintegrados à sociedade como cidadãos comuns em breve.
-Utopia de seu grande coração, senhorita. “Bobagem de quem não tem o que fazer. Volta pro shopping que eu sei tocar muito bem isto aqui sozinho.” Seu quarto já deve estar pronto. É melhor repousar por hora.
-Não, quero ver as crianças.
-Amanhã. A senhorita deve estar exausta da viagem. Melhor descansar agora.
-Quero ver os meninos!
Bom, ela era unha e carne com o presidente. Melhor não contrariar.
-Pois não – e a levou para o quartinho onde Saga ensinava inglês ao Afrodite.
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E aí? Desculpem pela Barbie, eu sou péssima pra inventar nomes de personagens.
Mandem reviews, só assim vou ter ânimo pra continuar a escrever.
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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!Notas finais do capítulo
o que será que vai acontecer?