Crônicas Saxônicas Três escrita por Didi8Dedos


Capítulo 4
897 DC - ANO OITO - Primeira Parte




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A criança nasceu na primavera. Uma das aias saiu com ele para o pátio e a mostrou a Dagfinn, que sorriu, erguendo os braços, e recebeu uma salva de palmas ao dizer: Finalmente uma menina! A algazarra aumentou e os homens trouxeram mais cerveja. Mas então, mais aias saíram pela porta da casa, pareciam apavoradas e corriam buscando mais panos e água quente. Dagfinn postou-se diante da porta de sua casa, as aias tentaram fazê-lo circular, voltar à companhia dos amigos, mas ele era um homem muito grande e forte, e também muito respeitado, logo estava diante da cama onde a mulher dera a luz a sua primeira filha. Os lençóis estavam ensangüentados, o chão estava ensangüentado, e também a parteira. A mulher, imóvel e macilenta, jazia sobre a cama.

— O que está acontecendo? - ele urrou, querendo uma explicação.

Ninguém respondeu.

— O que foi que aconteceu aqui? - repetiu a pergunta. A parteira se aproximou, meio que amedrontada, e murmurou algumas palavras. Dagfinn se virou para ela e a encarou com olhos arregalados, surpresos e cheios de raiva. - Você - disse Dagfinn com os olhos cheios de lágrima -, trate de fazê-la ficar boa ou mandarei enforcá-la!

— Senhor - a mulher se ajoelhou e beijou as botas dele -, não posso... ela... ela... a senhora...

Dagfinn desembainhou a espada e a apontou para a parteira.

— Senhor, era sabido que essa gravidez não deveria seguir adiante.

O braço trêmulo de Dagfinn desceu, enquanto seus olhos fitavam os cabelos oleosos da esposa. Num rompante, ele atirou a espada a um canto, correu para fora de casa e pulou sobre seu cavalo, fazendo-o galopar para longe da vila.

As aias cuidaram da senhora, limparam-na e vestiram-na com sua melhor roupa. Mas ela continuava a sangrar, e já estava tão pálida que não poderia sobreviver a mais uma hora. A parteira deixou a vila, com medo da morte certa pela espada de seu senhor. Enquanto as mulheres dos homens de Dagfinn rezavam ao redor da cama da moribunda. Vieram padres, que brigaram para ver quem daria a extrema-unção à senhora, mas então veio Gunnar, o filho mais velho de Dagfinn, conduzindo uma velhota pelas mãos. Era uma figura sinistra, de pouco mais de um metro de altura, curvada e corcunda, com o cabelo completamente branco, e a pele enrugada, que se sentou na cama da senhora e alisou-lhe os cabelos. Os padres estremeceram, reclamaram e teriam atirado pedras na velhota, se não fosse por Gunnar.

Alguns dos homens de Dagfinn o seguiram de longe. Muitos conheciam a dor dele, mas a maioria não fazia idéia do que era amar e perder, a não ser que se tratasse do amor pelos filhos, porque mulheres eram descartáveis. Mas eles sabiam que a senhora Grisilla era muito amada, eles próprios a amavam porque ela era uma mulher alegre, divertida, conquistadora, estava sempre disposta a ajudar em tudo o que estivesse a seu alcance. Agora ela não tinha a ajuda de ninguém. Estava deitada no leito de morte, sem a presença de quem mais amava ao seu lado. Por isso os homens seguiram Dagfinn, para levá-lo até ela, para que ela morresse em paz.

Mas Dagfinn não queria companhia. Estava furioso com seus deuses. Fora desiludido por eles. Estava desarmado e delirante. Cavalgou até o promontório e atirou-se no chão, de joelhos, e rezou para o Deus cristão pela primeira vez em sua vida.

Where were you when I was burned and broken
While the days slipped by from my window watching
Where were you when I was hurt and I was helpless
'Cause the things you say and the things you do surround me
While you were hanging yourself on someone elses words
Dying to believe in what you heard
I was staring straight into the shining sun

Lost in thought and lost in time
While the seeds of live and the seeds of change were planted

Outside the rain fell dark and slow
While I pondered on this dangerous but
I took a heavenly ride through one silence
I knew the moment had arrived
For killing the past and coming back to life

I took a heavenly ride trough our silence
I knew the waiting had begin
And headed straight... into the shining Sun¹

Grisilla parou de sangrar na mesma noite, minha mulher não saiu do lado dela. Eu não via esperanças, e Gisela também não, porque voltava para casa exausta e por vezes chorava baixinho, na intenção de não me perturbar. No terceiro dia, porém, Grisilla abriu os olhos. Foi Gunnar quem a tirou do sono da morte. O garoto estava de joelhos, ao lado da cama da mãe, com uma imagem do Jesus crucificado apertada entre as mãos. Ele rezava a oração que ouvira com atenção a mãe rezar todas as noites antes de colocá-lo na cama. Começava assim: Pater Noster quio est in ceali, santificetur nomen tuum, adveniat regnun tuum, fiat volunctas tua sicut in celo e in terra...

— Meu... amor...

Gunnar ergueu os olhos ao ouvir a voz da mãe, levantou e a encarou como se não fosse verdade que estivesse falando. A velha se aproximou e os olhos de Grisilla pousaram na estranha mulher.

— Eu sou Daena - a velha disse e enfiou uma colher com um líquido pela boca de Grisilla adentro.

— Não se preocupe, mãe, Daena é amiga. Ela está ajudando.

— Onde... está... seu... pai?

A pergunta ficou no ar, mas os ânimos melhoraram depois que Grisilla recobrou os sentidos. No entanto, ninguém sabia lhe dizer onde estava seu marido. E ninguém falava no assunto, até que, no sexto dia, Grisilla tentou se levantar da cama. Daena a segurou pelos ombros, com gentileza, e pediu calma, uma segunda mulher, Gisela, se aproximou, fazendo-a se acalmar por fim.

— Onde... está meu... marido? - ela quis saber.

Foi quando me chamaram. Eu, Uhtred de Bebbanburg, um homem da guerra, um homem que vivia de batalhas, eu tive que dizer a ela onde estava o marido. Entrei com a cabeça baixa, os olhos nas tábuas do chão, e parei ao lado dela. A mulher sempre tão bela estava agora pálida, sem cor alguma, doía nos olhos e no coração vê-la naquele estado.

— Senhor Uhtred - ela murmurou com a voz ainda entrecortada pela falta de ar, continuava sem suas forças.

— A senhora há que perdoar seu marido - eu disse sem fitá-la. - Ele saiu da vila logo depois que a senhora deu a luz. Assim como todos nós, ele acreditou que a senhora estivesse morta.

Ela franziu as sobrancelhas.

— E onde... ele está agora?

— Onde ele está - repeti tentando ganhar tempo, mas ela estava impaciente, queria saber do paradeiro dele. E eu também iria querer saber naquela situação, porque Dagfinn era um homem importante. - Não sabemos onde ele está, senhora.

— E ninguém... foi atrás dele?

— A senhora acredita que algum dos homens o contradiria?

— Não... contradiriam?

— Senhora - eu queria lhe dar uma resposta, mas qualquer que fosse não a satisfaria. Ela fechou os olhos, provavelmente exausta pelo esforço, e adormeceu.

Resolvi sair em busca de Dagfinn. Em seis dias muita coisa poderia acontecer, muito longe dali ele poderia estar, mas eu duvidava que ele tivesse ido embora, porque, não obstante tivesse perdido a esposa, gostaria de ter os amados filhos também sob sua proteção. Então, talvez, estivesse escondido pela mata, ou nas ruínas logo abaixo do promontório, na pequena praia, colocando a cabeça em ordem. Era o que um homem sensato faria. Claro que não durante seis dias seguidos.

Eu estava certo, alguém, provavelmente Dagfinn, esteve nas ruínas, pela madeira queimada, durante três ou quatro dias, mas agora não havia outro sinal de vida. A maré alta tinha apagado quaisquer rastros. Fitei o mar e me lembrei de Iseult, ela teria gostado daquele lugar mais do qualquer outra pessoa, era tão calmo e belo... Tornei a pensar em Dagfinn. E se estivesse morto? Não, os deuses não seriam tão perversos comigo. Eles sabiam que eu precisava da ajuda do earl para entrar em Bebbanburg e derrotar meu indigno tio, usurpador do meu trono, depois que eu não fosse mais jurado a Alfredo. Dei uma última olhada no mar e subi o olhar para o promontório. Era muito alto, não havia outra saída senão vir pelo caminho que eu tinha vindo, mas nem mesmo ali havia marcas dos cascos de outro cavalo que não o meu.

De que adiantava todo aquele amor? Era capaz que ele jamais tornasse a vê-la novamente, se ela morresse naquela noite; mas ainda assim a amava e deveria estar chorando a morte que não aconteceu. E morreria por ela se pudesse. Fitei as rochas empilhadas pela encosta... Que haveria de ser agora? O earI estava fora de casa havia dias porque acreditava que sua mulher tinha ido para sempre, enquanto ela perguntava por ele, talvez no intento de vê-lo ainda uma última vez. Senti agonia por não poder encontrá-lo, resgatá-lo daquele pesadelo e lhe mostrar que a amada esposa vivia.

Foi então que vi logo acima donde as ondas quebram: uma entrada. Era uma caverna. Mergulhei nela ansioso e segui por um corredor cheio de limo e espinhas de peixes até um grande hall, onde se formara uma piscina natural de água transparente. De um dos lados, um grande buraco deixava entrar a luz do sol, do outro, uma pedra achatada servira como base de uma fogueira quase extinta. Então ele apareceu.

— Uhtred - cumprimentou-me de mau humor -, notícias de invasores?

— Não, senhor - respondi me curvando numa pequena vênia. Ele estava quase irreconhecível, se bem fosse escuro, no entanto, a barba e os cabelos estavam sujos e desgrenhados e ele fedia a peixe.

— Então por que me incomoda?

— É sua esposa.

Ele me encarou estático, mas em seguida, com o peito arfante.

— Ela pede pelo senhor.

— Ela... está viva? - quis saber correndo até mim.

Eu sorri.

— Está sim, senhor. E se não aparecer logo...

Não terminei a frase. Ele correu para fora da caverna e subiu com incrível rapidez as rochas, depois atravessou o campo de trigo com igual velocidade, chegando à vila quase ao mesmo tempo em que eu, que estava a cavalo. Parou diante de sua casa, as pessoas ao redor estancaram para observá-lo: ele chorava. Dagfinn entrou na casa e viu Grisilla deitada na cama, ajoelhou-se ao lado dela e tomou sua mão. Ela abriu os olhos e sorriu para ele, apertando-lhe a mão.

— Meu amor - murmurou Grisilla e acariciou o rosto dele. Dagfinn caiu num choro desesperado. - Já passou, está tudo bem agora. - Mas ele não conseguia parar, encostou a cabeça no peito dela e se deixou aninhar. - Saiam todos - ela falou com voz energética e depois gemeu. Os empregados e escravos saíram primeiro. Também saí e os observei pela janela. Não ouvia o que diziam, mas ela o estava acalmando. Não o reprovava por ter fugido, se desesperado, ao invés de manter-se no que todos pensaram ser seu leito de morte. Grisilla abraçou o marido, beijo-lhe os olhos molhados, depois a boca e acariciou os cabelos imundos.

O amor é uma coisa estranha. Pode levar um homem ao êxtase e no instante seguinte, à loucura completa. Pode fazer um homem mover montanhas e no instante seguinte fazê-lo abrir os portões do inferno. É o certo e o errado ao mesmo tempo, o bem e o mal. E me peguei desejando o que Dagfinn e Grisilla tinham, era uma coisa única e de grande valor, era um respeito imenso um pelo outro, era um grande amor.

Naquela noite, Grisilla pediu a uma das escravas que preparasse o banho de seu marido, enquanto ele jantava e era servido com muita cerveja. Grisilla pediu à escrava que usasse uma de suas roupas e que escovasse bem os cabelos para que ficassem lisos como os seus. Depois, parecendo Grisilla, a escrava foi dar banho em seu amo. No princípio foi apenas um banho ingênuo, mas a bebida e a saudade de se deitar com a esposa fizeram com que Dagfinn a visse na escrava. E enquanto era banhado por ela, enquanto era acariciado por mãos delicadas que o limpavam, bebia, e quanto mais bebia, mais vislumbrava Grisilla. Seu desejo fez com que ele beijasse a escrava, e fez com que as mãos dela descessem até seu baixo ventre, onde seu amor estava pronto para ser mostrado. A escrava sabia o que precisava fazer, então fez seu amo levantar da banheira e ir se deitar na cama. Ela se despiu e deixou que ele a tocasse. Ela o beijou e ele a puxou para cima de seu corpo. Ela deixou-se penetrar pelo amor dele e o abraçou enquanto ele saciava o corpo exausto e o coração pesaroso. Quando ele enfim dormiu, a escrava se retirou, não deixando vestígio algum de sua presença no aposento.


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Notas finais do capítulo

Nota do Autor

Nota 1: Tive que colocar uma "musiquinha" naquela parte, porque não me conformei com o corte ríspido de um parágrafo a outro. ¹ Coming Back to life - Pink Floyd

Nota 2: Também tive que dividir os capítulos porque, como todos sabem, eu não gosto deles muito longos.



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