Crônicas Saxônicas Dois escrita por Didi8Dedos


Capítulo 5
VERÃO DE 895 DC - MÉRCIA




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Atravessamos a Mércia e chegamos a Tamworth no último dia de verão. Estava quente, e suávamos feito porco por baixo da malha de metal. Mas a caminhada precisava continuar, não queríamos ser vistos antes de chegar perto da cidade, e não deveria faltar mais uma ou duas milhas até a fortificação, mas conseguíamos vê-la nitidamente dali, incrustada nas paredes da montanha. Kaetilla, então, decidiu que acamparíamos na floresta a leste da entrada secundária. Altos freixos e carvalhos proteger-nos-iam se houvesse chuva e a margem limitada por altos arbustos que cresceram de forma indiscriminada não permitiriam que ninguém nos visse.

Kári esperou que armássemos acampamento antes de sair com quatro de seus homens para conferir a região. Ragnar foi com eles. Eu fiquei com a guarda de Alfredo, fizemos três pequenas fogueiras para espantar os animais e outros bichos noturnos, enquanto os homens comiam pão mofado e tomavam cerveja azeda. Não víamos a hora de entrar em Tamworth e comer bem, porque certamente seríamos bem recebidos, já que o próprio rei de Wessex estava conosco.

Não tardou e Kári e Ragnar retornaram ao acampamento, os outros homens ficaram além da floresta montando guarda.

— Kári diz que a senhora desconfia de Aethelred, o futuro genro de Alfredo, acha que ele vai sair do acampamento para falar com Athelstan... Talvez enfiar caraminholas em sua cabeça saxã idiota - Ragnar disse, antes de morder um pedaço duro de pão mofado. - Ficaremos de olho nele.

— Aethelred está do lado de Alfredo, e Alfredo deu a palavra que colocaria os noruegueses diante do rei Athelstan.

— Kári diz que Kaetilla acredita que Aethelred convenceu Alfredo a lutar contra ela, e acredita que entrará em Tamworth e homens a desarmarão.

— Acha que Alfredo quer matar os noruegueses? Bom, seriam quase cem a menos...

Ragnar baixou os olhos e entendi o que ele quis dizer.

— Alfredo não vai fazer isso. Se ele deu a palavra, está dada. Ele não é um traidor - eu disse com veemência, mas nem eu mesmo me convenci.

Não dormi naquela noite. Nem Ragnar. Muito menos Kaetilla. Ela rondou o acampamento a madrugada inteira. Kári tentou convencê-la a descansar, mas ela relutava e, eu sabia, vigiava Aethelred, o mércio. Logo cedo pela manhã, Kaetilla chamou Alfredo para uma conversa.  Os dois se encontraram sozinhos na tenda.

— Vamos entrar na cidade amanhã - ela disse.

— Athelstan provavelmente já sabe que estamos aqui.

— Se sabe é porque você mandou, sem meu consentimento, que o avisassem.

— Você fez um trato com Guthrum sem que eu soubesse.

— Não achei aquilo importante. - Houve silêncio. - Então devo presumir que mandou avisá-lo.

— Não, não mandei ninguém.

— Obrigada. - Outra pausa. - Depois que eu falar com meu irmão, você não precisará se preocupar com outra invasão por parte de meus homens. Partiremos para a Noruega. Precisarei apenas de outro favor.

— Navios, suponho.

— Dinheiro para comprá-los - ela corrigiu.

— Foi o que lhe prometi, não foi?

— Sim, senhor.

— Então não há mais o que discutirmos. Cavalgaremos juntos a Tamworth amanhã ao meio-dia.

Alfredo saiu da tenda e nos fitou, depois andou para longe. Em seguida, Kaetilla saiu, fechou os olhos por um instante, respirou fundo e veio se sentar conosco. Ela logo adormeceu encostada num tronco de árvore. Kári pigarreou, espreguiçou-se e também adormeceu. Fiquei observando-os por um longo tempo. Mas Ragnar estava eufórico, rindo a toa, ciente de que depois dali, iria voltar para sua vingança. Eu queria ir com ele, mas tinha um juramento a cumprir.

Haakon foi quem nos recebeu, e ele era só sorrisos. Havia anos que não via a irmã mais nova, mas não estava surpreso com o que ela se tornara. Bem conhecia o pai e os irmãos, e o fruto não cai longe da árvore nunca. Ele nos levou até a presença do rei. Comemos e bebemos do melhor, dormimos em camas quentes e secas, e nos deitamos com as mais belas escravas. No entanto, nem todos estavam felizes. Kári era um deles. Depois de entrar no castelo, ele se afastou de sua senhora. Ele era apenas um guerreiro sem nome ou terras, por tal, deveria permanecer na presença de iguais. Em batalha era diferente, porque, em batalha, os melhores guerreiros deveriam lutar com o senhor, mas quando se tratava da vida num castelo, cada qual retornava ao seu lugar no status quo.

Não pude imaginar sua decepção até descobrir o objeto de seu desejo. Mas pude compartilhar de sua dor porque sabia que o que ele desejava jamais iria possuir. Kaetilla entrou no salão de festa, onde todos ainda se assentavam para o jantar. Haakon a recebeu e ela se sentou entre ele e o rei, que estava maravilhado com a norueguesa. Era uma mulher alta - jamais gostei de mulheres altas, pareciam masculinas demais para mim -, mas Kaetilla era alta num corpo proporcional, com curvas que deixariam o mais casto dos homens devaneando sobre seus encantos. Até mesmo Alfredo a fitava de forma diferente. Os cabelos tinham sido escovados e caiam lisos sobre os ombros, exceto por duas finíssimas tranças que vinham da testa e se uniam atrás da cabeça. Era outra pessoa. Antes de se sentar, ao passar por Ragnar, ela lhe deu uma piscadela e um sorriso, o que divertiu o dinamarquês. Depois disso, ela pertencia a Haakon e ao rei.

Na tarde do dia seguinte, vi Kaetilla e o irmão conversando enquanto andavam pelos jardins. Atrás deles ia Athelstan e Alfredo, seguidos por uma dúzia de padres, entre eles Asser, Beocca e Pyrlig. Kaetilla certamente contava o que se passava na Noruega, onde o irmão mais velho, Eirik, trucidava os inimigos e a própria família em nome do poder. E ficava mais prestigioso a cada dia e a cada corte de cabeça. Haakon parecia abalado, mas conhecia Eirik, e disse à irmã que seu irmão mais velho já era conhecido na Inglaterra como Machado Sangrento porque eles estavam cientes de que ele decapitara doze dos dezoito irmãos. Haakon assentiu que talvez tivesse sido covardia fugir, mas na época não estava preparado para lutar, era novo, fraco e inábil com armas de guerra. Kaetilla consentiu com um sorriso e afirmou ao irmão que também não foi por medo que partiu da Noruega, mas para dar uma lição no pai, que tanto a amava, e que amava ainda mais o filho homicida consangüíneo. Ela rodou a Inglaterra em busca de Haakon, porque, em seu entendimento, ele era o único que poderia enfrentar Eirik por igual, sem injustiça, e era direito e dever de Haakon porque ele odiava o irmão mais velho e sabia que aquela matança não iria terminar sem que alguém exterminasse Eirik desse mundo.

Haakon, o bom, como era chamado na Mércia, foi liberado pelo rei Athelstan de seu juramento, e prometeu ao rei que seu país jamais iria mandar homens contra a Mércia, porque Haakon amava Athelstan e amava e acreditava no Deus crucificado. Athelstan lhe dera abrigo, lhe dera educação e lhe ensinara a viver. Lembrei-me de Alfredo e o fitei. Ele é o motivo por eu ser rico e poderoso, mas jamais gostou de mim ou eu dele. Se eu fosse liberado de meu juramento naquela noite, jamais tornaria a ver Alfredo na minha frente outra vez.

Acordei cedo, rindo da noite passada, outra noite entre bebidas e mulheres bonitas. Mas eu não estava feliz, minha cabeça doía. Logo mais Ragnar, meu amigo, partiria com Kaetilla e eu teria de retornar ao casamento arranjado em Wessex e à devoção a Alfredo. Sentei sobre uma mureta, do lado de fora do alojamento dos guerreiros, e me espreguicei. Vi Kári estacado logo adiante, de pé, olhando o nada. Fui até ele, parando ao seu lado.

— Você poderia ganhar muito dinheiro em Wessex - disse a ele, que se espantou ao me perceber. Deve ter pensado que eu era um fantasma. - Você é um ótimo guerreiro.

— E para ganhar dinheiro eu deveria me ajoelhar aos pés de seu deus?

— Do deus deles? - apontei para um saxão. - Sim. Mas é só faz de conta.

— Você, Uhtred, não venera o crucificado?

— Ele não tem importância para mim, mas não me intrometo nos assuntos dele com minha mulher.

— Ouvi dizer que há muito dinheiro em Wessex.

— Assim que a tomarmos de volta das mãos dos dinamarqueses, haverá tanto dinheiro que vamos poder limpar a bunda com ele.

Kári sorriu, baixou os olhos, e depois olhou para trás, na direção do castelo.

— Ela vai se casar com Ragnar.

— O que? ­- perguntei gaguejando.

— Kaetilla vai se casar com o earl Ragnar.

— Ele já tem mulher! - quase exclamei.

— Não de verdade, pelo que ela me disse. É apenas uma amante.

— E por que ela se casaria... - mas minha pergunta ficou no ar. Eu sabia a resposta. Ragnar era earl e Kári não era nada. Kaetilla era uma princesa norueguesa, deveria se casar com alguém de classe igual ou superior. Além disso, Ragnar era excelente guerreiro e um homem muito bonito. Fiquei idealizando os filhos deles correndo pelo gramado. Depois pensei em Brida e senti que precisava falar com Ragnar.

— Vou esperar por sua resposta - disse a Kári. - Preciso de homens como você.

Voltei para o castelo, passando pela cozinha, onde roubei um pedaço de pão, e subi a escadaria até o quarto onde Ragnar tinha sido hospedado. Bati na porta e ouvi movimentação lá dentro, esperei um pouco e então meu amigo a abriu. Tinha um sorriso escandaloso no rosto, mas logo que me viu, ficou circunspecto.

— Podemos conversar? - pedi tentando espiar para dentro do quarto, mas Ragnar mantinha a porta semicerrada.

— Não é... - ele murmurou, fez uma breve pausa e prosseguiu: - Já desço, está bem?

Assenti com a cabeça e caminhei pelo corredor, mas algo me fez parar, me fez voltar, e me escondi atrás da estátua de um romano pomposo. A porta do quarto de Ragnar se abriu e ele saiu primeiro, depois saiu Kaetilla, que lhe deu um beijo suave nos lábios e sorriu.

— Tenha um bom dia - ela sussurrou e lhe deu as costas, mas Ragnar a agarrou pelo pulso, a trouxe perto de si, envolvendo-a com seus braços fortes e roubou-lhe um beijo apaixonado. - Ragnar - ela o censurou olhando para os lados.

— Vou levar algum tempo antes de poder beijá-la novamente, minha querida. Tenho que aproveitar.

Ela sorriu, ele também; despediram-se e me agachei atrás da estátua.

Ragnar estava me esperando no hall. Abraçou-me e segurou meu rosto, encarando-me.

— Antes de qualquer coisa, vou à Noruega.

Balancei a cabeça, assentindo.

— Quando eu retornar quero você comigo para ir atrás de Kjartan.

— E Brida também? - perguntei com raiva. Ragnar estancou.

— Briga já é bem grandinha, sabe o que quer.

— Ela é sua mulher.

— Não. É minha amante. Mas eu a amo e não vou deixar que viva na miséria.

— Kaetilla vai permitir isso? - pedi. Ragnar arregalou os olhos e soltou meu rosto. O ar de felicidade lhe fugiu do semblante. - Acreditou mesmo que eu poderia ser tão tolo a ponto de não perceber? - indaguei a ele de forma ferina. Ele desviou os olhos para o chão.

— Eu a amo - falou e depois ficou em silêncio.

— Kári também a ama! - Não sei por que lhe disse isso, afinal, Ragnar merecia todo e qualquer amor que lhe dessem, eram um homem surpreendentemente bom com todos. Era meu melhor amigo.

— Eu sei - ele disse, me surpreendendo. - Mas ela não pode se casar com ele. Ela é uma princesa...

— E ele é um mero guerreiro - ironizei.

— De que lado você está afinal?

— Do lado de Brida.

Ragnar riu alto, com escárnio, e isso me deixou nervoso. Ele me deu as costas e andou para longe. Brida tinha sido minha mulher durante anos, crescemos juntos, aprendemos juntos. Então, quando fui obrigado a fazer o juramento a Alfredo, ela me deixou para ficar com Ragnar. Eu chorei por ela, me desesperei, mas amadureci. Agora era Ragnar quem deixava Brida, e eu achava aquilo repugnante, porque ela era a mulher dele, querendo ele ou não.

Na tarde do dia seguinte Kári me procurou. Tinha recebido ordens de embarcar todos os noruegueses e quem mais estivesse disposto a receber como pagamento um arrendo na Noruega, quando Haakon vencesse o rei usurpador Eirik Machado Sangrento.

— Vai com ela mesmo assim? - perguntei.

— Ao rei Haraldr fiz o juramento de que nada deixaria acontecer a sua filha.

— Certo. Se mudar de idéia - deixei a frase pairando no ar porque Kaetilla entrou no pátio chamando a atenção de Kári. Pouco depois, os dois saíam juntos em direção ao cais.

A história de Ragnar e Kaetilla não continua, porque naquele mesmo dia, partimos para a Ânglia Oriental, onde juntaríamos mais homens, porque um arauto entregou a Alfredo sete pergaminhos de sete senhores de Wessex dizendo que estavam a caminho de Lundene, juntamente com a rainha e seus filhos, os quais foram resgatados dos pântanos de Wintaceaster. Athelstan cedeu a Alfredo outro montante de homens, e quando todos estivessem juntos, em Lundene, avançaríamos sobre os dinamarqueses e tomaríamos Wessex de volta. Mas antes, à Ânglia Oriental, e com ela, Kjartan. Com o vislumbre da realização de sua vingança, Ragnar não partiu com Kaetilla, apesar de parte dele morrer toda vez que fitava a solidão do mar.


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